domingo, 16 de setembro de 2012

Slavoj Zizek - Entrelinhas 19/06/2011

sábado, 15 de setembro de 2012

Intervenção de Slavoj Zizek no comício da Syriza

sábado, 8 de setembro de 2012

Para ler Slavoj Žižek além do mito


Por: Alexandre Pilati - 31/08/2012.

Vale popularizar filósofo esloveno. Mas ao fazê-lo, certas obras tentam convertê-lo em “enfant terrible” aburguesado e sem potência. Há antídotos

Por Alexandre Pilati*

Recém lançado na última Bienal do Livro de São Paulo, o quinto volume da pouco convencional série “Entendendo”, da Editora Leya, apresenta ao leitor brasileiro um pouco da filosofia também pouco convencional de Slavoj Žižek. Na primeira página da obra, escrita por Christopher Kul-Wanti¹ e ilustrada por Pieroii², o tratamento descontraído e provocativo da abordagem do pensamento de Žižek fica patente. O esloveno é apresentado como “o filósofo mais perigoso do ocidente”, seguindo a avaliação da revista New Republic (um periódico ultraconservador americano).

De fato, há muito de otimismo ao se considerar um filósofo radical como Žižek perigoso. Na verdade, os filósofos que caminham contra a corrente da tardia modernidade capitalista pouco podem fazer contra suas leis mais elementares. No mais das vezes, ocorre de o pensamento radical ser arrastado pelas corredeiras simplificadoras e brilhantes do mundo do espetáculo, que tomou conta de modo visceral da própria vida acadêmica dos grandes centros de pesquisa mundo aforaiii. O mundo do espetáculo, é perigoso para os filósofos, mais do que estes o são para aquele. Marx já enunciara no desfecho das famosas Teses sobre Fauerbach: os filósofos têm tratado de interpretar o mundo, mas é preciso transformá-lo. A transformação é perigosa, pensá-la, tantas vezes, ajuda mesmo a manter as coisas como estão. E não sejamos inocentes: o pensamento de esquerda é permitido por e às vezes até útil à manutenção da dinâmica de alienação e reprodução do alto capitalismo. Tudo está em risco de ser açambarcado pelo espetáculo que, conforme Guy Debord, é essencialmente um acúmulo de capital em tal grau que se torna imagem. Ora se o pensamento progressista se torna imagem, sua potência transformadora esvai-se também em grande medida.

Reflexões como essas podem ser provocadas pela leitura de Entendendo Žižek. Lendo a obra poderíamos imaginar uma transformação do pensamento radical de Žižek em guia que encontramos na seção de autoajuda das livrarias? Parece-me o livro da dupla Kul-Want e Piero assume esse risco com dignidade e o ultrapassa, embora deixe rastros de equações complicadas que são exigidas quando se elabora um “guia-pop” com o intuito de “apresentar” e “ajudar a compreender” um pensamento duro e tantas vezes indigesto como o de Žižek. Vamos a apenas três exemplos dessas difíceis equações, tendo em vista o livro por um lado e, por outro, a complexidade e a força política da obra do filósofo esloveno.

A primeira dessas equações tem a ver com a necessidade de tornar Žižek um filósofo palatável no Ocidente. Uma tal operação de ocidentalização do filósofo implica caracterizá-lo como um pensador que foi e é reativo às imposições de partidos e regimes comunistas com os quais conviveu ao longo de sua formação e nos primeiros anos de sua vida profissional. A recuperação e a elevação desta “rejeição fundamental ao fundamentalismo comunista”, de forma astuta, acaba por equilibrar as coisas entre comunismo e capitalismo e entregar aos comportados culturalistas da esquerda ocidental um filósofo que é “perigoso” também (e sobretudo) quando põe em xeque “as estruturas jurássicas do mundo comunista”. Todavia, quem conhece a obra de Žižek, sabe que suas “reservas” à ordem social, econômica, política, subjetiva e cultural do mundo capitalista são de uma ordem imensamente maior que aquelas que ele faz ao mundo comunista, onde se originou a sua mirada original e radical sobre nosso mundo e sobre nosso tempo. Tornar Žižek um enfant terrible é uma forma de ocidentalizar seu pensamento, aburguesando-o, fazendo dele uma espécie de Nietzsche da filosofia globalizada. Mas embora Žižek se influencie pelo pensamento nietzscheano, em sua obra não se encontra o baixo pesado do niilismo como no autor alemão. Ver a radicalidade em Žižek é ir além de sua postura pouco convencional, descortinando, no âmago desta, o anseio pela superação do capitalismo.

Já que falamos de “reservas” de Žižek ao mundo alto capitalismo, uma outra equação que sói acontecer no processo de empacotamento do pensar žižekiano para o consumo da esquerda ocidental via academia e mercado editorial é a inversão da ordem dos fatores “legado da psicanálise” x “legado marxista”. Ao contrário da lei matemática básica da multiplicação, neste caso alterar a ordem é alterar o produto. Normalmente vê-se Žižek como um filósofo que se dedica a psicoanalisar a cultura e a política do mundo capitalista. Entendendo Žižek reproduz um pouco dessa inversão. São muitas páginas em que vemos conceitos operativos fortíssimos na obra de Žižek, buscados seja na tradição marxista seja na psicanálise, esmaecerem ao serem travados numa espécie de princípio subjetivizante dos movimentos históricos e políticos. Ao contrário do que é o núcleo da obra de Žižek, quando se trata no livro de ideologia ou de “transgressão embutida”, parece que estamos vendo pelos olhos do filósofo esloveno uma sociedade que não tem corpo, mas que se configura nos moldes do clássico sujeito burguês, de alma problemática, sádica, pervertida ou neurótica; mas sempre Uma, individualizada, à mercê de um difuso embora onipresente superego. Mas atentemos bem: em Žižek não se trata de ver um mundo como um “eu”, que é, no limite, feito como você leitor (note-se o risco de degringolarmos para a auto-ajuda). Trata-se, por outra, de verificar como a topologia do espaço curvo de Lacan, a célebre “Faixa de Moebius”, (fundamental para a compreensão da ótica de Žižek acerca da contemporaneidade) tem a sua materialidade política e histórica escavada pelas reflexões radicais do filósofo esloveno. Assim, é a materialidade radical do psicanalítico e não a egotização da política que marca a relação entre tradição marxista e tradição psicanalítica no caso de Žižek. Na ordem dos fatores da equação de desmontagem da ideologia do mundo ocidental, o fator materialismo histórico vem sempre primeiro, ou seja, comanda a análise.

É nesse sentido também que Entendendo Žižek desradicaliza as abordagens de obras de arte e de cultura pós-moderna realizadas pelo filósofo ao longo de sua produtiva carreira intelectual. O livro, por exemplo, cita as análises das óperas Carmen, Don Giovanni, de textos de Franz Kafka e do filme hollywoodiano A noviça rebelde. Muito rápidas, entretanto, as menções acabam docilizando um pouco o viés crítico e a pluralidade de ilações que pode vir à tona na leitura dos textos originais de Žižek. Ao fazer referência às análises sem citar as obras onde elas se encontram em português, por exemplo, corre-se o risco de simplesmente elencar um conjunto de afirmações curiosas sobre produtos culturais de um amplo arco de origem. Pouca coisa parece ser mais agradável à dispersão da crítica no mundo do espetáculo pós-moderno do que esse tipo de ritual chistoso de elencar comentários ácidos sobre obras pops e da alta cultura. Em suas obras, Žižek faz isso a sério, no livro de Kul-Want, tudo cheira um pouco a histrionismo. E, vigilantes, somos incitados a perguntar: cadê o filósofo perigoso que estava aqui?

Como nada é imune às contradições, está lá também na obra de Kul-Want o filósofo radical. Lembrando o Nietzsche de Além do bem e do mal, Kul-Want retoma um Žižek que reflete sobre revoluções, tomando como base a revolução francesa. Lá está o sêmen radical, que areja um pouco o descontraído e bem comportado perfil construído de Žižek. Lê-se, à página 146: “Para Žižek, a existência de um excesso além de qualquer forma pré-estabelecida de moralidade ou lei é uma marca característica de uma verdadeira política revolucionária [...]. Numa revolução tudo é derrubado, incluindo a ideia de que há um modo independente de julgar o que é certo e o que é errado”. No fundo, aqui Žižek está colocando o dedo na ferida em nosso mundo saturado de conservadorismo, moralismo e, no limite, fascismo travestido de matéria pop. Esse é o filósofo radical nos provocando, como quem acerta um pontapé no peito do oponente: “Que horizonte verdadeiramente revolucionário é possível hoje, num momento em que queremos empacotar na moralidade bestial do alto capitalismo até os mais perigosos e radicais filósofos?”

Se vamos ao dicionário, entendemos que o termo efervescente refere-se a algo que ferve, que está em efervescência, que é agitado, buliçoso, convulso, excitado, irascível e tempestuoso. Žižek, como filósofo radical e não convencional nos termos ocidentais é de fato tudo isso. Entretanto, todos que já fizeram uso de uma aspirina ou de um remédio para azia sabem quem que ao ato de ferver que se dá no contato do comprimido com a água no copo segue-se a diluição. A leitura de Žižek na academia pós-moderna pode fazer o efeito pharmakon da densidade política de seu pensamento esvair-se entre os dedos do capital espetacularizado dos nossos tempos. O antídoto é: leiamos o original.

*Alexandre Pilati é professor de literatura da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de A nação drummondiana (7letras, 2009). Para ler todos os seus textos em Outras Palavras, clique aqui

1. Diretor do mestrado do Curso de Teoria da Arte e Filosofia na Central St. Martins College of Art and Design, University of Arts, Londres.

2. Ilustrador, artista e designer gráfico.

iii. Não nos esqueçamos de que Žižek declarou várias vezes que odeia Harvard.

Fonte: http://www.outraspalavras.net/2012/08/31/slavoj-zizek-alem-do-mito/

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Slavoj Zizek - Da Tragédia à Farsa




"Entendendo Slavoj Zizek", quinto volume da premiada Coleção Entendendo, chega ao Brasil durante a Bienal do Livro de São Paulo


Livro explica as ideias do pensador mais polêmico da atualidade, considerado pela crítica o filósofo mais perigoso do Ocidente


Com temas que circulam entre ciências, artes, filosofia, psicologia, política, sociologia, religião, literatura, economia, antropologia e estudos culturais e humanos, a Coleção Entendendo traz ao leitor livros ilustrados e com linguagem objetiva sobre os pensadores e os temas mais importantes da história.
O quinto volume, “Entendendo Slavoj Žižek” – lançado na Bienal do Livro de São Paulo – explica com clarezaa habilidade do filósofo esloveno em transformar ideologias desgastadas – como o marxismo, o comunismo ea psicanálise – e combinar cultura popular, política e ideologia, debatendo tópicos tão díspares quanto filosofia e ética, religião e arte, mecânica quântica e realidade virtual.
A intenção de Žižek é intervir no discurso político por acreditar que isso afeta as ideias das pessoas e ajudar atransformar a sociedade. Uma de suas maiores preocupações filosóficas é a sensação generalizada de uma iminente catástrofe mundial e suas causas ideológicas subjacentes. Seu trabalho é focado principalmente na atual crise política, econômica e ambiental.
Ao procurar entender a ascensão meteórica da popularidade de Žižek, o autor Christopher Kul-Want e o ilustrador Piero apresentam as análises do filósofo, sociólogo e teórico crítico esloveno a respeito das atuais crises globais ligadas ao meio ambiente, pobreza, guerras, desordens civis e revoluções.
Considerado o “filósofo mais perigoso do Ocidente” pela revista New Republic, e o “messias superstar da nova esquerda”, pelo jornal Observer, Slavoj Žižek inspira manchetes radicais. Mas qual é realmente o seu pensamento? “Entendendo Slavoj Žižek” revela um polemista provocador, cuja extensa obra apresenta uma imensa preocupação filosófica da sociedade moderna e suas causas ideológicas subjacentes.
Os próximos volumes da Coleção Entendendo serão psicologia e psicanálise.

Ficha técnica
Título: Entendendo Slavoj Žižek
Autores:  Christopher Kul-Want e Piero
Formato: 14x21
Nº de páginas: 176
Preço: R$ 24,90

Sobre os autores
Christopher Kul-Want é diretor do curso de mestrado de belas-artes da Byan Shaw School of Art, em Londres. Escreve artigos sobre teoria, história e crítica da arte. É autor de outros livros dessa coleção, comoKant.
Piero é ilustrador e artista gráfico, cujos trabalhos foram expostos no Royal College of Art, em Londres. Ilustrou outros livros dessa coleção, tais como Barthes, Nietzche e Shakesperare.

Ditadura do proletariado em Gotham City: Artigo de Slavoj Žižek sobre “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”


Por Slavoj Žižek.

Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado com exclusividade pelo autor para a Boitempo publicar em seu Blog.

Adverte-se aos leitores que o texto contém detalhes da trama de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge.

For the english version, click here.

Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da saga Batman, a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente erradicou o crime violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham) e planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A lindíssima Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne Enterprises, convence Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.

Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência, Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar Batman gravemente ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é praticamente impossível fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a história da única pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela necessidade e pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai para o subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá; depois provoca explosões que destroem a maioria das pontes que conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer tentativa de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do qual se apoderou e transformou em uma bomba.

Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane revela publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a “tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as elites sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma sequência mostra  uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar a bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.

Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City, enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à própria vida para encontrar uma nova. [...] Como máxima figura de Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].

Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 da Bíblia de Jerusalém). O sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred, que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan, como todo bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que essa preocupação impregnou o filme:

O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. [...] A ideia de justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. [...] E segundo, há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das ferramentas analíticas para saber o que está acontecendo. [...] Não acho que existe uma perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas que nos preocupam.[4]

Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida na “desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem “honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato mais angustiante de uma civilização reconhecível e descritível que se desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores em Paris, na França daquela época, não é difícil imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo levante populista no filme (uma multidão sedenta pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a descrição de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar “honestamente” os revolucionários como fanáticos possuídos, e assim fornece

a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o que o establishment quer que saibamos – que os revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum respeito pela vida humana. Apesar da retórica emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto, quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]

Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do establishment na forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” – na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos, o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de uma atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com tanta mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:

O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado, representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. [...] Sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]

No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:

O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.

Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.

Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido que restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda sobre a natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].

Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman Begins, ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto, Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude e terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até Leônidas em 300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo: Wayne foi formado como Batman por ele.

Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houve violência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta: o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se espera que a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme, portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais protestos antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este representa a imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e homicida dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da auto-organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.

Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta para a afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. [...] Mas todos os nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a França inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo e verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.

Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para a violência irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os comunistas “negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto sócio-político mais profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a democracia”: seu projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse “negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz de imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais” de emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas coordenadas da antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.

E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos eventos na capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a manhã do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o governante partido da direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico, enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas certo de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e declara estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas: os cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital, proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim, fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando quase normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de resistência não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que desperta reações de pânico brutal nos detentores do poder.

Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora) que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização tem de se fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para defender o sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o herói é simplesmente uma figura clássica do vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a polícia não pode; o problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição das leis, relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman: contra a vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato de que, quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman, Dent o interrompe e se apresenta como Batman – ele é “mais Batman que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era capaz de resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói popular que incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de Dent.

Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de modo que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar diretamente o sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas inibições e está pronto para usar toda sua brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento dessa figura muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos lidando não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.

Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É como o inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não é um juízo negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ AQUI, encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir dos oponentes habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres e terroristas).

Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com acusações de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o bastante para explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não admira que o funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente: nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria ordem).

É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.) Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.

[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”, Hillsdale Natural Law Review, 21 de  julho de 2012.

[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”, Society and Culture, 21 de julho de 2012.

[3] Tyler O’Neil, cit.

[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.

[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.

[6] Karthick, cit.

[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de julho de 2012.

[8] Karthick, cit.

[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997, p. 636-637.

[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao islamismo.