segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Zizek e a China


Filósofo esloveno diz que o maoísmo criou as condições para o capitalismo autoritário

O novo livro do filósofo e crítico cultural esloveno Slavoj Zizek, First as Tragedy, then as Farce (Verso, 2009, 157 páginas) – ou Primeiro como Tragédia, depois como Farsa –, traz um conjunto de ideias que valem uma reflexão. Entre elas, a mais polêmica é a que formula a hipótese de que estaríamos assistindo à consolidação de uma nova etapa na evolução do sistema capitalista, na qual os laços entre democracia e livre mercado (mesmo sujeitos a lapsos ditatoriais) seriam definitivamente rompidos e a face autoritária do capitalismo abertamente revelada. De acordo com Slavoj Zizek, esse capitalismo autoritário, que encontra na China o seu maior expoente, seria herdeiro da mão de ferro de antigos governos asiáticos totalitários, fossem eles comunistas ou monárquicos, os quais, a partir da emergência dos chamados Tigres Asiáticos (Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan), na década de 1990, se mesclaram com o modo de produção que se consagrou vitorioso no Ocidente no último século.

A China parece ter aprendido a lição dos grandes felinos. Tomemos Cingapura como exemplo e veremos que a expressão “capitalismo de valores asiáticos” foi cunhada pelo líder que praticamente reinventou aquele país, Lee Quan Yew. Antes de colocar em prática as reformas que frutificam até os dias de hoje, Deng Xiaoping elogiou o crescimento de Cingapura, afirmando que esse seria um modelo para a China naqueles tempos em que todos os partidos comunistas do mundo entravam em um processo de luto pela ideologia perdida com o fim da União Soviética. A partir do modelo de Cingapura, a China encontrou a sua versão do capitalismo autoritário, uma que não exigia grandes mudanças políticas, com estados altamente centralizados e ditatoriais, que controlam a liberdade de expressão e utilizam de forma quase sumária a pena capital.

De acordo com Slavoj Zizek, seriam ingênuos aqueles que acham que o legado da Revolução Cultural Chinesa poderia promover minimamente uma contenção dos excessos do capitalismo. A suprema ironia é que, segundo esse autor, foi justamente o maoísmo que criou as condições para a explosão capitalista da moderna China. A Revolução Cultural, que objetivou o desmoronamento de tradições e introduziu o comunismo naquele país, paradoxalmente, também criou as condições ideológicas para o seu atual desenvolvimento capitalista, reforçando o que Marx afirmava em relação ao colonialismo europeu no sentido de que esse, minando as bases agrárias e tradicionais dos povos colonizados, instituiria a luta de classes e, subsequentemente, o socialismo.

Apesar de polêmica, essa afirmação é coerente com o pensamento de Marx quando fez o elogio da dominação britânica na Índia, escrevendo que a Grã-Bretanha deveria cumprir no subcontinente indiano uma dupla missão – uma destrutiva, outra regeneradora, ou seja, a aniquilação da velha sociedade asiática e o estabelecimento dos fundamentos da sociedade ocidental na Ásia. Para Marx, as idílicas aldeias que existiam antes da dominação britânica eram também vítimas do despotismo oriental, da ignorância e da alienação religiosa, e a situação colonial, por pior que fosse, ajudaria esses povos em sua evolução.

Slavoj Zizek lembra igualmente que, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx cita Hegel quando o filósofo alemão afirma que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E acrescenta a sua famosa frase: “A primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Herbert Marcuse completa que a repetição de um evento como farsa pode ser ainda mais terrível do que a tragédia original. Dentro dessa lógica, não podemos entender a atual situação chinesa como uma farsa das etapas iniciais e trágicas da revolução industrial, mas sim como a instauradora de uma nova ordem que se alastra para outros países, sendo a Rússia de Putin e a Itália de Berlusconi seus exemplos mais marcantes.

Posto isso, não é de se espantar que o país se torne um ícone tanto para os neoliberais quanto para alguns membros do campo das esquerdas. Em relação a esses últimos, a associação frequente da China como uma possível alternativa à hegemonia americana supõe, imaginariamente, algo que ela não é, a não ser que seja para tornar o modelo ainda pior. Francis Fukuyama nos fala de um suposto “consenso de Pequim”, o qual substituiria o conhecido “consenso de Washington”, lançando novas regras e diretrizes para o capitalismo global, no qual seria possível fazer negócios e ganhar dinheiro sem dar importância à democracia e aos direitos humanos. Fukuyama não acredita que esse modelo capitalista autoritário irá substituir o modelo democrático liberal pelo fato de sua eficiência estar restrita a uma estrutura asiática que pressupõe um conjunto de valores culturais específicos. Não obstante, Fukuyama concorda com o editor do semanário internacional Newsweek, Fareed Zakaria, quando este identifica a emergência do modelo chinês como representativo do mundo que ele chamou de “pós-americano”.

Alguns farão a ressalva de que as democracias liberais seriam efetivamente apenas uma máscara suave que outorgaria ao cidadão uma liberdade imaginária. Slavoj Zizek não se furta a criticar de forma contundente nossas supostas “liberdades de escolha”, argumentando que essas existem apenas para legitimar aquilo que o sistema já previamente escolheu, tais como a opção entre Pepsi ou Coca-Cola ou entre um candidato à presidência e outro. Entretanto, existe uma diferença marcante com relação à China: o prescindir de disfarces e o escancarar do autoritarismo como um dispositivo legal e estatal. A necessidade de reconhecer (e discutir) a magnitude de tal diferenciação reside no poder de atração ideológica (com desdobramentos políticos, econômicos e militares) que esse país possui, fruto de seu espetacular desenvolvimento econômico, o que pode representar um perigoso precedente à refração de conquistas sociais duramente conquistadas ao longo do século 20.


* Mestrando em Sociologia pela Universidade de Paris X
POR CLÁUDIO CÉSAR DUTRA DE SOUZA *

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Slavoj Zizek: Por que temer o espírito revolucionário árabe?

O que não pode deixar de saltar aos olhos nas revoltas Tunísia e Egito é a notável ausência do fundamentalismo islâmico. Na melhor tradição democrática secular, as pessoas simplesmente se revoltaram contra um regime opressivo, sua corrupção e pobreza, e demandaram liberdade e esperança econômica. A sabedoria cínica dos liberais ocidentais - de acordo com os quais, nos países árabes, o genuíno senso democrático é limitado a estreitas elites liberais enquanto que a vasta maioria só pode ser mobilizada através do fundamentalismo religioso ou do nacionalismo - se provou errada.

Quando um novo governo provisório foi nomeado na Tunísia, ele excluiu os islâmicos e a esquerda mais radical. A reação dos liberais presunçosos foi: bom, eles são basicamente a mesma coisa; dois extremos totalitários - mas as coisas são simples assim? O verdadeiro antagonismo de longa data não é precisamente entre islâmicos e a esquerda? Ainda que eles estejam momentaneamente unidos contra o regime, uma vez que se aproximam da vitória, a sua unidade se parte e eles se engajam numa luta mortal, frequentemente mais cruel do que aquela travada contra o inimigo comum.

Nós não testemunhamos precisamente tal luta depois das eleições no Irã? As centenas de milhares de apoiadores de Mousavi lutavam pelo sonho popular que sustentou a revolução de Khomeini: liberdade e justiça. Ainda que esse sonho tenha sido utópico, ele levou a uma explosão de criatividade política e social de tirar o fôlego, experiências de organização e debates entre estudantes e pessoas comuns. Essa abertura genuína, que liberou forças de transformação social então desconhecidas, um momento no qual tudo pareceu possível, foi então gradualmente sufocada pela dominação do controle político e do establishment islâmico.

Mesmo no caso de movimentos claramente fundamentalistas, é preciso ser cuidadoso para não perder de vista o componente social. O Talibã é usualmente apresentado como um grupo fundamentalista islâmico que impõe suas leis pelo terror. No entanto, quando, na primavera de 2009, eles tomaram o Vale de Swat no Paquistão, o The New York Times noticiou que eles arquitetaram "uma revolta de classe que explora profundas fissuras entre um pequeno grupo de ricos donos de terra e seus inquilinos desprovidos de um chão". Se, ao "se aproveitar" dos apuros dos agricultores, o Talibã estava criando, nas palavras do New York Times, "um alerta sobre os riscos ao Paquistão, que permanece sendo largamente feudal", o quê impediu os democratas liberais do Paquistão e dos Estados Unidos de, da mesma forma, "se aproveitarem" desses apuros e de tentarem ajudar os agricultores sem terra? Ocorre de as forças feudais no Paquistão serem aliados naturais da democracia liberal?

A conclusão inevitável a ser delineada é que a ascensão do islamismo radical sempre foi o outro lado do desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos. Quando o Afeganistão é retratado como sendo o exemplo máximo de um país fundamentalista islâmico, quem ainda se lembra que, há quarenta anos atrás, ele era um país com uma forte tradição secular, incluindo um poderoso partido comunista que havia tomado o poder lá sem dependência da União Soviética? Para onde essa tradição secular foi?

É crucial analisar os eventos em andamento na Tunísia e no Egito (e no Iémen e ... talvez, com esperança, até na Arábia Saudita) em contraste com esse pano de fundo. Se a situação for eventualmente estabilizada de modo ao antigo regime sobreviver, apenas passando por alguma cirurgia cosmética liberal, isso irá gerar um intransponível retrocesso fundamentalista. Para que o legado chave do liberalismo sobreviva, os liberais precisam da ajuda fraternal da esquerda radical. De volta ao Egito, a mais vergonhosa e perigosamente oportunista reação foi aquela de Tony Blair noticiada na CNN: mudança se necessário, mas deverá ser uma mudança estável. Mudança estável no Egito, hoje, só pode significar um compromisso com as forças de Mubarak na forma de ligeiramente alargar o círculo do poder. Este é o motivo pelo qual é uma obscenidade falar em transição pacífica agora: pelo esmagamento da oposição, o próprio Mubarak tornou isso impossível. Depois de Mubarak enviar o exército contra os protestantes, a escolha se tornou clara: ou uma mudança cosmética na qual alguma coisa muda para que tudo continue na mesma, ou uma verdadeira ruptura.

Aqui, portanto, é o momento da verdade: ninguém pode arguir, como no caso da Argélia uma década atrás, que permitir eleições verdadeiramente livres equivale a entregar o poder para fundamentalistas islâmicos. Outra preocupação liberal é de que não existe poder político organizado para tomar o poder caso Mubarak parta. É claro que não existe; Mubarak se assegurou disso ao reduzir a oposição a ornamentos marginais, de forma que o resultado acaba sendo como o título do famoso romance de Agatha Christie, "E Então Não Havia Ninguém". O argumento de Mubarak - é ele ou o caos - é um argumento contra ele.

A hipocrisia dos liberais ocidentais é de tirar o fôlego: eles publicamente defendem a democracia e agora, quando o povo se rebela contra os tiranos em nome de liberdade e justiça seculares, não em nome da religião, eles estão todos profundamente preocupados. Por que aflição, por que não alegria pelo fato de que se está dando uma chance à liberdade? Hoje, mais do que nunca, o antigo lema de Mao Tsé-Tung é pertinente: "Existe um grande caos abaixo do céu - a situação é excelente".

Para onde, então, Mubarak deve ir? Aqui, a resposta também é clara: para Haia. Se existe um líder que merece sentar lá, é ele.

(*) Nota do Tradutor: o título original do livro de Agatha Christie é "And Then There Were None", conhecido aqui no Brasil como "O Caso dos Dez Negrinhos".

Referências feitas pelo autor:
http://www.guardian.co.uk/world/2010/feb/02/iran-mousavi-dictatorship-khameini-protests

http://www.nytimes.com/2009/04/17/world/asia/17pstan.html?_r=1

Fonte: Anncol. Traduzido por Henrique Abel para o Diário Liberdade.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Zizek e a importância das causas perdidas

Slavoj Zizek projeta-se como um dos pensadores mais conhecidos no cenário intelectual mundial contemporâneo: suas obras têm alcançado repercussão em muitos países, despertando atenção por sua visão insólita e peculiar a respeito da política, da filosofia, da psicanálise e de temas culturais como o cinema. Justamente pela sua condição de filósofo pop, tem sido aclamado e odiado. Sua trajetória intelectual é bastante específica. Sua formação se dá próximo da psicanálise lacaniana, abeirando-se, no mundo francês, de uma leitura estrutural da sociedade. A partir de sua base lacaniana, Zizek terá em Hegel um dos elementos centrais de sua visão filosófica. 

O marxismo está presente em Zizek como caldo de cultura de sua própria vida na Iugoslávia, embora, com o desmoronamento do país, tenha se candidatado à presidência da Eslovênia com base em uma plataforma liberal, apoiando medidas de choque de capitalismo. Mas, ainda nos anos 90, volta a carregar o marxismo como uma de suas mais importantes ferramentas teóricas e práticas, ainda que de modo próprio. 
Desde os tempos de sua formação intelectual, Zizek se põe num diálogo próximo com a corrente que foi denominada “pós-marxismo”, destacadamente com Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Mas é exatamente este diálogo que revela mostras das trilhas próprias construídas por Zizek em sua filosofia política. Enquanto nos últimos tempos Laclau erige uma teoria da razão populista, buscando um diálogo de assimilação da tradição política de Chávez, Morales e Kirchner, Zizek tem persistido pelo campo da crítica mais contundente e da desconstrução das alternativas hoje postas em campo pela política progressista já estabelecida. Pode-se argumentar que a posição de Zizek seja, para o jogo presente, ao mesmo tempo mais exigente teoricamente, porque não se contenta com a reforma, mas conservadora na prática, na medida em que a falta de apoio ao progressismo em marcha pode ser confundido com uma resistência que é, no fundo, uma preferência circunstancial pelas políticas de cidadania liberal. Se esse perigo se põe na sua posição política prática, Zizek dele se afasta, no entanto, quando de sua proposição teórica. 

Em seus livros recentes, a filosofia de Zizek se encaminha por um cântico de politicidade radical. Em obras como Bem-vindo ao deserto do Real! (São Paulo, Boitempo, 2003) e Às portas da revolução (São Paulo, Boitempo, 2005), Zizek investiga, no evento plenamente revolucionário, a chave para a saída do impasse da própria sociedade capitalista, liberal e democrática, cuja forma é a reprodutora das estruturas da exploração do presente. Por essa razão, é na volta a Lênin que Zizek encontrará meios de retomar a plena caminhada política contemporânea. Suas incursões, nos últimos tempos, sobre o pensamento de Mao e de Robespierre vão pela mesma linha de interesse. 

O resultado de sua crescente busca pela forma política radical como elemento de resolução do impasse contemporâneo exponencia-se em seu novo livro, Em defesa das causas perdidas (São Paulo, Boitempo, 2011). Nesta obra, síntese de sua visão filosófica e política atual, Zizek alia a sua formação psicanalítica e sua crítica cultural à construção de caminhos políticos revolucionários concretos. Contra as lutas que se pautam dentro do possível, Zizek aponta ao impossível como forma de superação do presente. 

Num cenário no qual o capitalismo se apresenta como único horizonte possível, em que a cidadania e o liberalismo econômico são pilares tidos como alternativas necessárias do bom-senso e da responsabilidade, é preciso dar um passo atrás para ganhar o futuro. Por isso a obra se intitula Em defesa das causas perdidas. O marxismo e as revoluções socialistas foram experiências que eletrizaram a humanidade desde o final do século XIX e durante boa parte do século XX. Hoje, são dadas como causas perdidas. É preciso, no entanto, buscá-las e defendê-las, dirá Zizek. 

Das experiências radicais do passado, acusadas pelo presente de nefasto radicalismo, Zizek inverte, neste livro, os termos. Contra a contenção liberal, dirá que é o radicalismo que foi incompleto. A postura leninista, de abrir as portas da revolução mesmo contra o bom-senso, é o mote zizekiano para romper a paralisia do presente. Para tanto, as filosofias da radicalidade, como a de Heidegger, serão revisitadas por Zizek. Em razão desse horizonte de defesa da radicalidade, Zizek atrela a si, além do marxismo, um largo campo de tradições filosóficas e políticas de extrato não-liberal. Heidegger é o caso mais exemplar dessa perspectiva que se afasta dos cânones da reprodução da forma política liberal. O amálgama que Zizek estabelece entre a tradição do marxismo e as visões existenciais e radicais é bastante insólito, porque não se assenta num programa de sistematização interna, mas numa necessidade processual de combate. São as ocasiões presentes que levantam a aliança entre as frentes radicais que buscam causas perdidas. 
Aponto, em meu livro Filosofia do Direito (São Paulo, Atlas, 2010), a possibilidade da leitura da filosofia do direito e da filosofia política contemporâneas a partir de três grandes caminhos. O primeiro desses eixos é um vasto campo majoritário, liberal, institucionalista e juspositivista, formando um arco que vai do ecletismo, passando pelo estrito jusnormativismo, até chegar às filosofias liberais éticas do presente. De outro lado, as filosofias não-juspositivistas, não-liberais, que aqui podem se definir pelo negativo, como as de Nietzsche, Heidegger, Gadamer, Carl Schmitt ou Michel Foucault. E, por fim, um terceiro campo, de crítica, que é o do marxismo e todas suas vertentes. Se o juspositivismo é o campeão do atual mundo neoliberal, de um eterno presente a ser sempre repetido sem variações, alguns não-juspositivistas, em certas circunstâncias, foram o esteio do radicalismo reacionário, apontando para o passado. Só o marxismo foi a base de sementes de um futuro diferente. Zizek aponta para o contraste veemente entre as radicalidades reacionária e marxista. A primeira, fascista, tem por mote a divisão, a segregação, o ódio. O socialismo tem o mote justamente contrário, a luta pela universalidade da classe trabalhadora e pela sua apropriação em comum da riqueza socialmente construída. O socialismo é o único mote radical que olha ao futuro. 

Em face desse quadro, Zizek constrói sua reflexão tendo por base dois dos três grandes eixos do pensamento filosófico contemporâneo. O seu não-liberalismo faz de algumas das correntes existenciais-decisionistas e da psicanálise aliadas do marxismo, constituindo o pano de fundo da busca e da defesa das causas perdidas socialistas. O que tem identificado Zizek teoricamente, em suas últimas obras e em especial neste Em defesa das causas perdidas, é um amálgama filosófico forjado sob o esteio comum da ruptura com o liberalismo e as visões da reprodução democrática automática sob forma eleitoral e representativa mergulhadas no contexto capitalista. A dosagem de seu marxismo em face da psicanálise lacaniana ou dos excertos de filosofia não-juspositivista é fluida. Em determinadas horas, toma a frente das causas perdidas uma perspectiva existencial-decisionista. Em outros momentos de seu novo livro, é o marxismo, como crítica inclusive à forma mercantil, que pauta sua leitura de mundo. Marcelo Gomes Franco Grillo, no livro O direito na filosofia de Slavoj Zizek: perspectivas para o pensamento jurídico crítico (São Paulo, Alfa-Ômega, 2011), analisando as estratégias jurídicas implícitas do discurso de Zizek, aponta para as dificuldades resultantes de uma ampla frente de combate por ele construída contra o bem-estabelecido, imbricando ao mesmo tempo em contradições teóricas mas também, quiçá, em riquezas de múltiplos apoios e estratégias para a prática política. 

Se nesta sua nova obra, Em defesa das causas perdidas, Slavoj Zizek, retoma o ontem radical, na verdade mira no amanhã: romper com a cínica estabilidade do hoje é sua busca teórica sôfrega, explosiva, original e sempre dinâmica. Construindo-se conforme a intervenção no presente, Zizek exprime uma face de ponta do pensamento crítico hoje, insólito no cenário filosófico porque persiste por apontar a causa socialista como meio de transformação dos impasses do presente. Opondo-se ao pensamento conservador, para o qual a estabilidade liberal decreta o fim da história, conforme o adágio Roma locuta, causa finita (Roma falou, a causa está encerrada), Zizek pauta seu livro pela proposição invertida: Causa locuta, Roma finita. Contra a aparentemente invencível Roma do capitalismo, Zizek entoa para que a causa socialista radicalmente fale. 


*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP e do professor do Programa de Pós-Graduação em Direito do Mackenzie.

Fonte: http://operamundi.uol.com.br/opiniao_ver.php?idConteudo=1371

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Boitempo Editorial: Em defesa das causas perdidas

Título: Em defesa das causas perdidas
Título Original: In defense of lost causes
Autor(a): Slavoj Zizek
Prefácio: Alysson Leandro Mascaro
Tradutor(a): Maria Beatriz de Medina
Páginas: 480
Ano de publicação: 2011
ISBN: 978-85-7559-163-5
Preço: R$ 69,00
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Um dos grandes filósofos políticos do nosso tempo, Slavoj Žižek investiga nesta obra o cerne das chamadas “políticas totalitárias” do passado. A fim de examinar os dilemas do momento presente e propor alternativas, coloca-se como observador da história para, calcado nas bases teóricas críticas da psicanálise e do marxismo, resgatar o que ainda podemos aprender com as chamadas “Causas perdidas”. Momentos de mudança radical ocorridos a partir de grandes causas são férteis, candentes de idealismo e capazes de abrir e iluminar caminhos, ainda que seus meios provem-se equivocados.


Com seu estilo sempre contestador e sagaz, Žižek desfaz ponto a ponto a trama das análises prontas e desgastadas, elaborando sua defesa das causas perdidas para, de acordo com ele, não “defender, como tal, o terror stalinista, mas tornar problemática a tão facilzinha alternativa democrático-liberal”.


De acordo com o jurista e filósofo Alysson Leandro Mascaro, que assina o prefácio da obra, Žižek faz a passagem entre a constatação factual e a plena intervenção política, alcançando o estágio que denota a maturidade política de um filósofo: o apontar dos caminhos. Tudo isso sem deixar de lado as provocações que o tornaram conhecido do grande público, articulando Lacan, Hegel e Marx, o cinema, a música, a cultura popular e os objetos de consumo.


O livro consolida uma perspectiva de filosofia política que ganha ares de proposição específica: a defesa das causas perdidas e o encontro das visões filosóficas não liberais existenciais e marxistas. Para além de Lacan e Marx, Žižek alinha Heidegger e Foucault em sua empreitada política. Ao discorrer sobre as formas de luta pela emancipação universal e a iminente crise ecológica global, reivindica a possibilidade de reinvenção do terror revolucionário e da ditadura do proletariado.


A proposta de ruptura teórica com o bem-estabelecido tem em vista que o capitalismo só pode vicejar em condições de estabilidade social básica. Esse pano de fundo ideológico precisa ser gerido por um forte aparelho cultural e educacional que mantém a confiança simbólica intacta, produzindo indivíduos que não só aceitam a própria responsabilidade por seu destino, como também confiam na “justiça” básica do sistema.


Repetir o passado não é provar a fraqueza do que se busca novamente, mas sim demonstrar a necessidade premente de concretizar sua grandeza, buscando no mínimo errar menos nessa nova retomada do processo revolucionário. A defesa das Causas perdidas não está envolvida com nenhum tipo de jogo desconstrutivo, seu objetivo é aceitar com coragem a concretização total de uma Causa, inclusive o risco inevitável de um desastre catastrófico. “Parafraseando a memorável frase de Beckett, à qual voltarei várias vezes adiante, depois de errar pode-se continuar e errar melhor, enquanto a indiferença nos afunda cada vez mais no lamaçal do Ser imbecil”, conclui Žižek. De acordo com Mascaro, “Em tempos dinâmicos que chegam até a plena manipulação tecnológica da natureza, onde a única grande estabilidade é a própria exploração capitalista, contra a qual já se luta e já se perde há tempos, trata-se de mostrar que é possível fazer a defesa das causas perdidas, para agora perder melhor ou, quiçá, plenamente ganhar”.


Trecho


Restam somente duas teorias que ainda indicam e praticam essa noção engajada de verdade: o marxismo e a psicanálise. Ambas são teorias de luta, não só teorias sobre a luta, mas teorias que estão, elas mesmas, engajadas numa luta: sua história não consiste num acúmulo de conhecimentos neutros, pois é marcada por cismas, heresias, expulsões. É por isso que, em ambas, a relação entre teoria e prática é propriamente dialética; em outras palavras, é de uma tensão irredutível: a teoria não é somente o fundamento conceitual da prática, ela explica ao mesmo tempo por que a prática, em última análise, está condenada ao fracasso – ou, como disse Freud de modo conciso, a psicanálise só seria totalmente possível numa sociedade que não precisasse mais dela. Em seu aspecto mais radical, a teoria é a teoria de uma prática fracassada: “É por isso que as coisas deram errado...”. Costumamos esquecer que os cinco grandes relatos clínicos de Freud são basicamente relatos de um sucesso parcial e de um fracasso definitivo; da mesma forma, os maiores relatos históricos marxistas de eventos revolucionários são descrições de grandes fracassos (da Guerra dos Camponeses Alemães, dos jacobinos na Revolução Francesa, da Comuna de Paris, da Revolução de Outubro, da Revolução Cultural Chinesa...). Esse exame dos fracassos nos põe diante do problema da fidelidade: como redimir o potencial emancipatório de tais fracassos evitando a dupla armadilha do apego nostálgico ao passado e da acomodação demasiado escorregadia às “novas circunstancias”.


Sobre o autor


Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real!, em 2003, Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917), em 2005, A visão em paralaxe, em 2008, e Lacrimae rerum, em 2009.


Fonte: http://www.boitempoeditorial.com.br/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-163-5