domingo, 31 de janeiro de 2010

Slavoj Zizek - Rules, Race, and Mel Gibson, EGS (2006)


http://www.egs.edu/

Slavoj Zizek fala sobre o explícito, a verdade, as regras, a política, Mel Gibson, a sociedade, raça, racismo, anti-semitismo e descreve uma psicanálise da cultura e das sociedades. A palestra aberta aos alunos da European Graduate School EGS, 2006. (Video dividido em 8 partes)


Ano: 2006
Audio: Inglês
Legendas: Não

sábado, 30 de janeiro de 2010

Estante Virtual


A partir de agora os leitores contam com uma ferramenta de busca da Estante Virtual. A estante virtual é hoje o maior site de buscas de livros novos e usados à venda na internet e merece a divulgação, pelo excelente trabalho que realiza. 

Você encontra a caixa de busca no menu à direita.

A divulgação da Estante Virtual aqui não conta com nenhum tipo de vínculo financeiro, apenas quisemos unir os leitores e o acesso aos livros de Slavoj Zizek disponíveis para compra em inumeros Sebos e Livrarias on-line.
Se quiser fazer uma busca dos livros de Slavoj Zizek na Estante virtual, clique aqui.


sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Anti-semitismo, anti-semita e judeu


 
No total são oito videos, que podem ser conferidos um de cada vez através deste player. Após cada video, o seguinte começará imediatamente.

European Graduate School, 2009.
Fonte: http://mariborchan.com/2009/09/29/slavoj-zizek-anti-semitism-anti-semite-and-jew/




Ano: 2009
Audio: Inglês
Legendas: Não


quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Transcrição do Debate "What does it mean be a revolutionary today "


"What does it mean be a revolutionary today "
"O que significa ser um revolucionário hoje?[1] "



Eu gostaria de começar com Adorno que, no início de seus “Três estudos sobre Hegel”, rejeita esta tradicional e condescendente questão: “o que ainda está vivo? O que está morto em Hegel?”. De acordo com Adorno, tal questão pressupõe uma posição arrogante de um juiz que pode graciosamente considerar "Sim, isto ainda é atual para nós." Mas Adorno aponta que, quando estamos lidando com um filósofo verdadeiramente grande, a questão a ser levantada não é "o que este filósofo ainda pode nos dizer?", mas, o oposto: "como nossa situação contemporânea aparece aos seus olhos? Como nossa época apareceria ao seu pensamento?". O mesmo deve ser feito com o comunismo, em vez de perguntar a óbvia e estúpida questão: "A idéia de comunismo ainda é pertinente hoje? Pode ainda ser usada como ferramenta de análise e prática política?"; deveríamos perguntar, acredito, a pergunta oposta: "Como a nossa situação atual aparece da perspectiva da idéia comunista?”. Esta é a dialética do velho e do novo.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Democracia corrompida

O potencial autêntico da democracia vem perdendo terreno hoje para a ascensão de um novo capitalismo autoritário.


Slavoj Zizek


O filósofo alemão Peter Sloterdijk (que, definitivamente, não é um de nós e tampouco um completo idiota) observou que, se há uma pessoa para quem farão monumentos daqui a cem anos, ela é Lee Kuan Yew, o líder de Cingapura que inventou e colocou em prática o chamado "capitalismo de valores asiáticos". O vírus desse capitalismo autoritário tem se espalhado de maneira vagarosa porém certeira pelo globo.
Antes de dar início a suas reformas, Deng Hsiao-Ping visitou Cingapura e enalteceu expressamente aquele país como um modelo que toda a China deveria seguir. Essa mudança tem um significado histórico mundial: até agora, o capitalismo parece inextricavelmente ligado à democracia – viu-se, é claro, de tempos em tempos, o recurso da ditadura direta, mas, depois de uma década ou duas, a democracia se impôs de novo (lembre-se, por exemplo, apenas dos casos da Coreia do Sul e do Chile). Agora, no entanto, a ligação entre a democracia e o capitalismo está rompida.
Diante da atual explosão do capitalismo na China, os analistas com frequência perguntam-se quando a democracia política, como acompanhamento político natural do capitalismo, se fortalecerá. Não obstante, uma análise mais detida rapidamente desfaz essa esperança – e se o prometido segundo estágio democrático que se segue ao autoritário vale de lágrimas nunca chegar? Talvez seja isso o que há de mais inquietante sobre a China de hoje: a suspeita de que seu capitalismo autoritário não é apenas uma sobra do nosso passado, a repetição do processo de acumulação capitalista que, na Europa, deu-se do século 16 ao 18, e sim um sinal do nosso futuro.
E se "a perniciosa combinação do açoite asiático com a bolsa de valores europeia" (a velha caracterização de Trotski da Rússia tsarista) provar-se economicamente mais eficiente que o nosso capitalismo liberal? E se ela sinalizar que a democracia, como a entendemos, não é mais condição e mola propulsora do desenvolvimento econômico, mas seu obstáculo?
Salto adiante
Há aqui ainda um paradoxo adicional: existe, para além de todos os comentários maliciosos e analogias superficiais, uma profunda homologia estrutural entre o permanente autorrevolucionamento maoísta, o permanente combate contra a ossificação das estruturas estatais, e a dinâmica inerente ao capitalismo. Aqui torna-se tentador parafrasear o trocadilho de Bertolt Brecht "o que é o roubo de um banco se comparado com a fundação de um novo banco?": o que são os ímpetos violentos e destrutivos de um membro da Guarda Vermelha durante a Revolução Cultural se comparados à verdadeira Revolução Cultural, a dissolução permanente de todas as formas de vida necessárias à reprodução capitalista? Hoje, a tragédia do Grande Salto Adiante [campanha de Mao Tsé-tung para tornar a China uma nação desenvolvida e socialmente justa em tempo recorde] está se repetindo como a comédia do acelerado Grande Salto Adiante capitalista para a modernização, com o velho slogan "fundição de ferro em cada vilarejo" ressurgindo como "um arranha-céu em cada rua". Ou, para dizer de uma maneira brutalmente irônica, a liquidação dos inimigos nos expurgos maoístas dá lugar à liquidação total dos estoques nos centros de comércio.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Palestra de Slavoj Zizek no SESC Vila Mariana, São Paulo

Em 14 de outubro de 2008, Slavoj Zizek realizou a palestra no SESC Vila Mariana, em São Paulo.

1ª Parte:




2ª Parte:



3ª Parte:



4ª Parte:



5ª Parte:



6ª Parte:



As falas de Zizek estão em inglês, e ainda não foram legendadas.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Entre o mal e o pior - Silvia Pimenta Velloso Rocha

A obra de Slavoj Zizek ocupa posição singular no pensamento contemporâneo. Sua escrita se caracteriza por um estilo prolixo e provocador. Combina a reflexão teórica mais rigorosa com a análise de fenômenos da cultura midiática. Aborda conceitos da tradição filosófica por meio de exemplos inteiramente prosaicos - o Kinder Ovo, o sistema de descarga nas latrinas européias, a prática da cunilíngua -, alternando livros de caráter fundamentalmente acadêmico com outros de caráter mais polêmico - ensaios, entrevistas e intervenções.

Ele não hesita em utilizar a mídia como espaço de expressão. Colabora regularmente com jornais e dá entrevistas na TV. Essa aproximação com o universo pop, aliada a uma persona extremamente carismática, faz com que o filósofo seja considerado por alguns como mero fenômeno da mídia, mas a consistência e a densidade de sua produção teórica desmentem isso.

Zizek nasceu em 1949 em Liubliana, na antiga Iugoslávia. A partir dos anos 80, aproximou-se do pensamento francês, em especial da obra de Lacan. Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Paris VIII, sob a orientação de J acques- Alain Miller. Em 1990, candidatou-se pelo partido Democracia Liberal Eslovena à presidência da Eslovênia nas primeiras eleições livres do país - segundo declarou, para impedir que o país seguisse a tendência nacionalista que prevaleceu na Sérvia e na Croácia.

Professor titular de sociologia da Universidade de Liubliana, é regularmente convidado como conferencista pelas principais universidades em todo o mundo.

Ao aproximar Hegel e Lacan, Zizek elabora uma ontologia e uma teoria do sujeito fundadas na idéia de negatividade: o real é impossível de ser totalizado ou plenamente simbolizado, e o sujeito é constituído por uma falta estrutural, que decorre de sua inscrição na linguagem.

Essa ausência radical de fundamento nos situa na impossibilidade de atingir uma plenitude ontológica ou subjetiva, representada pelo conceito de gozo. A ideologia (no campo social) e a fantasia (no campo subjetivo) têm a função de cobrir essa falha, sustentando uma ilusão de totalidade: elas não atuam como um véu que oculta ou recobre a realidade, mas como aquilo que a estrutura, sem o qual não haveria "real" para nós. A partir daí, Zizek desenvolve uma críti ca da ideologia e uma clínica da fantasia, voltadas para a análise de fenômenos contemporâneos. Um dos elementos fundamentais dessa análise é o diagnóstico lacaniano de uma inversão do supereu, que deixa de funcionar como instância repressora e passa a ordenar diretamente o gozo. Ao instaurar um prazer compulsório, o superego dissolve, em última instância, a própria oposição entre prazer e dever. É o que ocorre com a celebração contemporânea do sexo - por um lado, a maratona que se deve cumprir para desfrutar esse prazer está inscrita no regime do dever: ser belo, manter-se jovem e em forma etc. Por outro, a própria atividade sexual se toma compulsória, já que a culpa não decorre mais da presença de desejos proibidos, mas da incapacidade de satisfazê-Ios. A mídia e a esfera do consumo surgem como campo privilegiado dessa incitação ao prazer, pela oferta permanente de produtos que renovam a promessa sempre adiada desse goro impossível.

Outro aspecto marcante do pensamento de Zizek é a crítica à tolerância multicultural e ao politicamente correto. Essa postura esconde duas falácias: a primeira é que, ao recusar a superioridade da cultura ocidental, o multiculturalismo afirma indiretamente a superioridade de sua própria posição de enunciação - a única que reconhece a validade de toda prática cultural, religiosa etc. O que a tolerância politicamente correta não tolera é precisamente a adesão incondicional representada pelo fundamentalismo. Ela constitui assim um exemplo de racismo riflexivo, "que assume a forma de desprezar o Outro como racista, intolerante e assim por diante", como diz em Bem-vindo ao deserto do real.

A segunda falácia é que o Outro é geralmente reduzido a seus traços exóticos, sendo esvaziado de tudo o que poderia constituir um problema - ou seja, de sua alteridade. Tem-se assim um "outro idealizado que nos encanta com suas danças fascinantes, com sua abordagem holística e ecologicamente sensata da realidade, desde que não atentemos para algumas de suas outras práticas, como bater em mulheres e quejandos...", como diz em Paixão na era da crença desccifeinada.

É preciso, portanto, pôr em questão a própria posição relativista. Aquele que percebe o conflito político-ideológico atual como o embate entre os valores democráticos e a intolerância fundamentalista já está numa posição equivocada. A questão não é apoiar o terrorismo ou combatê-Io em nome da democracia liberal, mas perceber que ambos resultam de um mesmo processo: o fundamentalismo é já um efeito da globalização, "a Jihad já é McJihad", como explica em Bem-vindo ao deserto do real. Assim, é preciso "aceitar a necessidade de lutar contra o terrorismo mas redefinir e expandir os termos, de forma a incluir também (alguns) atos dos americanos e de outras potências ocidentais".

O que resta para o sujeito além das promessas de felicidade encarnada em bens de consumo? O que nos resta para além de uma ética fundada no relativismo e no respeito ao outro? O que resta para além de uma política fundada na democracia e nos direitos humanos? Zizek responde a essas questões com base no conceito de ato. Ao contrário das ações correntes, um ato se situa sempre além do bem e do mal- ou, mais precisamente, reconfigura aquilo que se entende por bem e mal. ''Um ato não se restringe a aplicar os parâmetros éticos dados, ele os redefine. Com relação ao problema da escolha, isso significa que uma escolha se toma um ato quando sua efetuação muda o valor de seus ter mos", diz em L'intraitable. Do ponto de vista subjetivo, um ato ocorre quando um sujeito aceita perder a si mesmo e põe em questão aquilo que, a seu ver, o define - experimentando uma destituição subjetiva. No plano político, um ato ocorre quando alguém assume o risco de agir sem garantias, "engajando-se numa espécie de aposta pascaliana de que o ato em si há de criar as condições para sua própria legitimação democrática 'retroativa"': é o que se chama revolução. O ato revela a inexistência do grande Outro, ou seja, de toda instância capaz de garantir nossos atos e fundar nossa vida. O resultado dessa aposta é um salto no abismo, único sentido válido da palavra liberdade.

Felicidade, gozo, democracia, tolerância são valores que operam como um axioma, constituindo o fundamento de nossa ideologia e de nossa fantasia. É precisamente esse axioma que se deve pôr em questão, é esse fundamento que devemos estar dispostos a perder. Ao contrário do ditado corrente, Zizek diz que é preciso jogar fora o bebê e ficar com a água suja do banho. Não se trata portanto de uma escolha entre o bem e o mal (democracia X fundamentalismo, prazer X dever, goro X repressão), mas da escolha entre o mal e o pior, que opõe de um lado a crença num grande Outro capaz de legitimar nossas ações e viabilizar nosso goro, e de outro lado a renúncia a essa crença, que nos leva a uma vida sem fundamento e a uma existência sem garantias.

Disponível na internet, no link: http://www.boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?isbn=85-7559-035-9&veiculo=Entrelivros


terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Slavoj Zizek e a renovação do marxismo - Christian Ingo Lenz Dunker

A queda do muro de Berlim não representou a derrocada do comunismo nem o fim da história, muito menos a abolição da esquerda. Para a maior parte dos movimentos sociais e pensadores ligados à tradição crítica ou marxista, esse fato simbólico foi o pretexto que faltava para a formação e radicalização de um novo discurso. A revista britânica New Left Review foi um ponto de encontro para essa esquerda alternativa, que havia passado por sucessivas decepções: o humanismo marxista, a reação estruturalista de Louis Althusser, o ativismo maoísta, as inúmeras formas de troskismo, sem falar no socialismo real. A Nova Esquerda tem em comum a desconfiança do fetichismo do Partido, a crítica do economicismo marxista clássico e a recusa da concepção ingênua da ideologia considerada como uma espécie de erro cognitivo da consciência. No lugar soberano e onipotente do Partido, a Nova Esquerda se preocupa em mostrar a precariedade da noção de política em Karl Marx bem como sua ligação instável com políticas claras e definidas que deveriam ser seguidas em obediência silenciosa. No lugar do reducionismo econômico, a Nova Esquerda pretende redescrever a noção de classe, levando em conta o gênero, a cultura e o consumo, e não apenas o paradigma da produção. Finalmente, no lugar da ideologia, entram em cena complexas estratégias de desconstrução, crítica e resistência discursiva ao lado do reconhecimento de que faltaria ao marxismo clássico uma boa teoria sobre a subjetividade. 


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Os excessos do imaginário - Maria Rita Kehl

Por Maria Rita Kehl

Em "Bem-Vindo ao Deserto do Real!", Slavoj Zizek discute as transformações ideológicas ocorridas nos EUA e na Europa depois do 11 de Setembro

Logo na introdução aos cinco ensaios que compõem este livro, Slavoj Zizek adverte o leitor: ao contrário do que rezam os pressupostos liberais, a liberdade de pensamento não é o fundamento da liberdade política. Talvez ocorra aos leitores brasileiros a frase que encabeçava a coluna dos aforismos de nosso grande filósofo Millôr Fernandes: "Livre pensar é só pensar". 

Para Zizek, esse "só pensar" de que nos ocupamos na sociedade pós-moderna -criticando, questionando, desconstruindo as convicções que sustentam estratégias do poder- pode ser condição não de nossa liberdade, mas de nossa servidão. A falta de referências dogmáticas, a falta de um mestre inquestionável a quem enfrentar, a doce indiferença com que a cultura pós-moderna acolhe toda contestação, fazem do livre pensamento uma atividade intelectual ociosa e agradável, mas inútil. "O único modo de assegurar a servidão social é através da liberdade de pensamento", escreve o filósofo esloveno que compreende -com Chesterton, mais do que com Kant- que o engajamento subjetivo é o modo mais eficiente de fazer com que as pessoas colaborem com sua própria dominação. Assim, inauguramos a leitura de "Bem-Vindo ao Deserto do Real!", questionando a validade da própria empreitada; se o livro de Slavoj Zizek convoca o leitor a pensar, questionar e desconstruir suas idéias e convicções, isso não lhe garante nenhum acréscimo de liberdade para intervir na esfera pública, na estrutura dos poderes que, esses sim, determinam de fato até os limites da vida mais privatizada.

O que o pensamento de Zizek critica é a própria noção de liberdade privada, tão cara à vida "civilizada" contemporânea em oposição à qual ele vai resgatar o sentido forte da ação política. A reclusão à esfera da intimidade, hoje, é toda ela preenchida por "fórmulas de autenticidade privada propagadas pela indústria cultural", cuja expressão mais recente são as "confissões públicas de segredos íntimos nos shows de televisão". Contra a generalização desse eficiente dispositivo de alienação, Zizek não se constrange em propor que "hoje, a única forma de romper com as restrições da mercadização alienada é inventar uma nova coletividade" (pág. 105).

Cinema e TV

Os analisadores da "mercadização alienada" utilizados pelo autor neste livro, como em todas as suas obras, são os produtos da indústria cultural no sentido adorniano do termo. São notícias de jornal, programas de televisão, peças de publicidade e principalmente o cinema, representado pela produção hollywoodiana recente. A frase que dá título ao livro, por exemplo, é tomada do filme "Matrix", dos irmãos Wachowski. Lembra a passagem em que os protagonista desperta da realidade virtual controlada pela matriz. Ao se confrontar com o "deserto do real", a reação dele não é de libertação, mas de horror. 

Esse é o paradigma da sedução operada pela ideologia: ela nos faz desejar a dominação e repudiar o alto preço cobrado pela liberdade. Ninguém melhor do que Zizek, um filósofo que leu e compreendeu Lacan à luz de Hegel, para nos confrontar com os significantes mestres da ideologia que impregnam nosso modo de vida nos menores detalhes, de modo a tornar a alienação mais fascinante que a liberdade. Nos cinco ensaios que compõem este livro de 2002, editado recentemente no Brasil pela editora Boitempo, Slavoj Zizek analisa as transformações ideológicas que se produziram na Europa e nos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, sem dissociá-las do panorama psicossocial que produziu as condições do próprio atentado. O mundo contemporâneo estaria mergulhado na "paixão pelo real" (expressão tomada do filósofo francês Alain Badiou), da qual o terror fundamentalista é apenas a expressão mais espetacular. O real é o elemento traumático que resiste a ser integrado simbolicamente na vida social e/ou na realidade psíquica.

A impossibilidade de integração compele à repetição, como no caso dos pesadelos recorrentes que levaram Freud a indagar: se o sonho é realização de desejos, por que queremos repetir, no pesadelo, a experiência do horror? Só que paixão pelo real não é o avesso da ideologia: é a força propulsora das formações imaginárias que recobrem todos os aspectos da vida que não podemos compreender. É precisamente do imaginário que se alimenta a ideologia. Aliada a todas as formas de gozo, tal paixão gera o impulso cego que nos precipita, em ato, a intervir diretamente sobre o real, nos casos em que todo o campo simbólico parece estar tão perfeitamente recoberto pelo imaginário que nenhuma mudança substancial parece possível.

Sacrifício

O suicídio de Antígona e o atentado que destruiu as torres gêmeas do WTC em 2001 possuem essa característica em comum: são intervenções diretas sobre o real -que trazem à tona sua face extrema, a morte- que não alteram as condições simbólicas originárias, mas, ao contrário, contribuem para reforçá-las. A morte sacrificial de Antígona confirma a lei patriarcal imposta por Creonte, assim como a queda das torres fez por reafirmar a potência do império que o ato terrorista quis desafiar. Esse é o paradoxo da paixão pelo real: ela é alimentada pelas formações do imaginário, que no caso contemporâneo são produzidas na escala superindustrial do espetáculo globalizado. 

Se a demolição das torres gêmeas foi uma intervenção direta sobre o real, isso não impediu sua imediata tradução nos termos do imaginário das produções cinematográficas que formatam o mundo mental do cidadão norte-americano. Expressões como "a guerra do bem contra o mal", utilizadas pelo próprio presidente George W. Bush para mobilizar o mundo a favor de sua "guerra contra o terror", são evidências disso. A idéia de um "bem" absoluto só se sustenta em termos imaginários, indissociável da crença em um "mal" absoluto do qual ela é o oposto complementar. "O que um homem mau odeia não é o bem", escreve Zizek, lembrando Novalis: "Ele odeia excessivamente o mal" (pág. 164).

O texto de Zizek revela o esforço permanente do autor em subverter a cena imaginária na qual nosso pensamento é capturado e oferecer possibilidades alternativas de interpretação dos fatos. Só no campo simbólico tal mobilidade é possível. A própria lei simbólica deve ser reconsiderada, não como uma determinação sobre-humana e intransponível, mas como "um conjunto de arranjos sociais contingentes abertos à mudança" (pág. 120). É a simbolização da lei que mantém aberto o espaço para o ato.

Risco radical

Isso porque, para Zizek, o ato capaz de produzir diferença significativa nas condições do poder é aquele que incide sim sobre o real, mas aposta na possibilidade de ressimbolização, produzida "après coup", por efeito do próprio ato. Um ato, escreve ele, sempre envolve um risco radical: se é sempre situado em um contexto concreto, isso não significa que esteja inteiramente determinado por esse contexto. "Um ato altera retroativamente as próprias coordenadas em que interfere. Essa falta de garantias é o que os críticos (da noção de ato) não podem suportar: eles querem um ato sem riscos" (pág. 175).

Nas páginas finais do livro, o autor abre espaço para uma discussão tão delicada quanto atual para o leitor brasileiro: será que, nas democracias representativas modernas, sustentadas por lobbies de interesses e atreladas ao capital globalizado, existe espaço para um ato transformador? O conceito leninista de revolução é aventado por ele, que encaminha o último ensaio do livro até esse ponto extremo sem nos oferecer o lenitivo de uma conclusão.

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Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.
Texto disponível em: http://www.boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?isbn=85-7559-035-9&veiculo=Folha%20de%20S.%20Paulo

domingo, 10 de janeiro de 2010

Resistir é capitular


O capitalismo deve ser combatido por meio de reivindicações impossíveis ou se deve almejar a conquista do poder do Estado?

Uma das lições mais claras das últimas décadas é que o capitalismo é indestrutível. Marx comparavao capitalismo a um vampiro, e hoje um dos pontos que mais se salientam nessa comparação é que os vampiros sempre conseguem se reerguer, mesmo depois de feridos de morte. Até a tentativa de Mao, na Revolução Cultural, de apagar todos os vestígios do capitalismo acabou desembocando no seu retorno triunfal.

A esquerda de hoje reage de maneira bastante variada à hegemonia do capitalismo global e ao seu complemento político, a democracia liberal. Pode, por exemplo, aceitar essa hegemonia, mas continuar a lutar por reformas dentro das suas regras (a social-democracia da Terceira Via).

Ou pode aceitar que essa hegemonia não deixará de existir, mas ainda assim preconizar uma resistência a ela a partir dos seus "interstícios".

sábado, 9 de janeiro de 2010

O império da Nação-estado


“Claro que as pessoas não querem guerra. (...) são os líderes de um país que determinam a política, e arrastar o povo junto é uma questão fácil (...) Tudo que se tem a fazer é falar-lhes que estão sendo atacados, denunciar os pacifistas por falta de patriotismo e por colocar o país em perigo. Funciona em qualquer país.” 
(Hermann Goering, durante os julgamentos de Nuremberg em 1946)

As razões oficiais para a invasão do Iraque eram a ameaça de que possuíam armas de destruição em massa e as ligações entre o regime de Saddam Hussein e a Al Qaeda. Quando ficou claro que não existiam armas e qualquer evidência do envolvimento de Saddam nos ataques de 11 de setembro, a justificativa oficial passou a ser a de que seu regime era uma ditadura cruel, uma ameaça aos vizinhos e uma catástrofe para seu próprio povo. Sem dúvida, era um regime autoritário e abominável, culpado por muitos crimes, principalmente contra seu próprio povo. Porém, ao mesmo tempo em que os americanos pontuavam as ações criminosas de Saddam, omitiam seu maior crime, em relação ao sofrimento humano e à violação da justiça internacional: a agressão ao Irã. Por que? Por que os EUA e a maioria de seus aliados ajudaram intensamente o Iraque nessa agressão.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

“First as Tragedy, Then As Farce”: Philosopher and Cultural Theorist Slavoj Žižek Speaks at Cooper Union









"Dubbed by the National Review as "the most dangerous political philosopher in the West" and the New York Times as "the Elvis of cultural theory," Slovenian philosopher and public intellectual Slavoj Žižek has written over fifty books on philosophy, psychoanalysis, theology, history and political theory.

In his latest book, First as Tragedy, Then as Farce, Žižek analyzes how the United States has moved from the tragedy of 9/11 to what he calls the farce of the financial meltdown.

He spoke on that same theme at Cooper Union during a recent trip to New York."

Apelidado pela National Review como "o filósofo político mais perigoso no Ocidente" e pelo New York Times como o "Elvis da teoria cultural", o filósofo esloveno Slavoj Zizek já escreveu mais de cinqüenta livros sobre filosofia, psicanálise, teologia, história e teoria política.

Em seu último livro, "Primeiro como tragédia, depois como farsa"* (First as Tragedy, Then as Farce), Zizek analisa como os EUA passaram da tragédia de 9/11 para o que ele chama de "farsa do colapso financeiro".


Ele falou sobre esse mesmo tema na Cooper Union, durante uma recente viagem a Nova York.

*O título deste livro ainda não foi traduzido, fizemos uma tradução literal, que poderá ser modificado pela editora que detém os direitos da tradução para o português, quando ela for realizada.







...

Transcrição da Entrevista de Slavoj Zizek para a Euronews


O video desta entrevista está disponível aqui, na seção "videos", aqui postamos a transcrição divulgada pela Euronews, em português.


Slavoj Zizek é um dos maiores pensadores da Europa. O filósofo e sociólogo esloveno escreve sobre temas como Lenine, ciberespaço, pós-modernismo, pós-Marxismo ou Alfred Hitchcock. Foi no Festival de Cinema de Sarajevo que a euronews falou com Zizek, acerca de cinema, dos Balcãs e de multiculturalismo. Na capital da Bósnia-Herzegovina, o Festival de Cinema desempenha um papel relevante para reconstruir a auto-confiança da cidade. Sarajevo esteve cercada quatro anos durante a Guerra da Bósnia.
euronews: O senhor é convidado do Festival de Cinema de Sarajevo… qual é o papel dos filmes e do cinema na sociedade de hoje?

"Filósofo defende a transformação da ética a partir da biologia"

Podemos contar hoje com uma bio-ética? Sim, mas ela é ruim --o que os alemães chamam de "Bindenstrich-Ethik", uma ética com hífen. O que se perde nessa ética com hífen é simplesmente a ética como tal.




Seu problema não é que a ética universal seja dissolvida numa miríade de temas particulares (bioética, ética comercial, ética médica...), mas, muito ao contrário, que determinados avanços científicos se confrontam diretamente com os antigos "valores" humanistas, provocando reclamações sobre como as perspectivas da biogenética ameaçam nosso senso de dignidade e autonomia.

De modo sucinto, a principal consequência dos avanços na biogenética é o fim da natureza: ao conhecermos as regras de sua construção, os organismos naturais se tornam objetos disponíveis e manipuláveis. A natureza, humana e inumana, é assim "dessubstancializada", privada de sua impenetrável densidade, daquilo que Heidegger chamou de "terra". A biogenética, com sua redução da própria psique humana a um objeto de manipulação tecnológica, é portanto efetivamente uma espécie de instância empírica do que Heidegger via como o "perigo" inerente à tecnologia moderna.

É crucial aqui a interdependência entre homem e natureza: ao reduzir o homem a um mero objeto natural cujas propriedades podem ser manipuladas, o que perdemos não é (somente) a humanidade, mas a PRÓPRIA NATUREZA. Nesse sentido Francis Fukuyama está certo: a própria humanidade depende de certa noção de uma "natureza humana" herdada, da dimensão impenetrável em/de nós mesmos na qual nascemos/somos atirados: o homem só existe na medida em que existe a impenetrável natureza inumana.

Como, então, reagimos a essa ameaça? Lembre-se do conhecido caso da doença de Huntington: o gene diretamente responsável por ela foi isolado, e qualquer pessoa pode saber exatamente não apenas se sofrerá de Huntington, mas também quando. Depende de um erro de transcrição genética -a repetição gaguejante da "palavra" CAG [citosina-adenina-guanina] no meio desse gene: a idade em que a loucura surgirá depende estrita e implacavelmente do número de repetições de CAG em certo lugar desse gene (se houver 40 repetições, a pessoa terá os primeiros sintomas aos 59 anos; se houver 41 repetições, aos 54; se houver 50, aos 27).

Uma vida aprazível, condicionamento físico, os melhores remédios, alimentação saudável, o amor e o apoio familiar nada podem fazer a esse respeito: "É pura fatalidade, independente da variabilidade ambiental" [Matt Ridley, no livro "Genoma"]. Ainda não há tratamentos, nada se pode fazer sobre isso.

Então o que devemos fazer ao saber que podemos nos submeter a exames e assim adquirir uma informação que, se positiva, dirá exatamente quando vamos ficar loucos e morrer? Podemos imaginar confronto mais claro com o Real totalmente sem sentido de uma contingência que determina nossa vida? Não admira que a maioria das pessoas (inclusive os cientistas que identificaram esse gene) prefira a ignorância -essa ignorância não é simplesmente negativa, já que seu vácuo abre espaço para a imaginação. Além disso, o fato de que, com a perspectiva das intervenções biogenéticas aberta pelo acesso ao genoma, a espécie modifica/redefine à vontade a SI MESMA, suas próprias coordenadas, efetivamente emancipa a humanidade das restrições de uma espécie limitada, de sua escravidão a "genes egoístas".


Autolimitação conservadora


Essa emancipação, no entanto, tem um preço. Numa palestra em Marburg, Habermas repetiu sua advertência contra manipulações biogenéticas em seres humanos: "Com as intervenções no legado genético do homem, o domínio da natureza reverte a um ato de assumir-o-controle-de-si-mesmo, que modifica nossa autocompreensão genérico-ética e pode perturbar as condições necessárias de um modo de vida autônomo e um entendimento universalista da moral" [citado por Thorsten Jantschek, no jornal "Die Zeit" de 5 de julho de 2001]. Habermas vê aqui duas ameaças à espreita.

Primeiro, essas intervenções tornam imprecisos os limites entre o que nós criamos e o que cresceu espontaneamente, e portanto afeta a autocompreensão do indivíduo. Como um adolescente reagirá ao saber que suas tendências "espontâneas" (digamos, agressivas ou pacíficas) são resultado da intervenção intencional de outros em seu código genético? Isso não vai solapar o próprio núcleo de sua identidade como pessoa, ou seja, a noção de que desenvolvemos nossa identidade moral através da "Bildung", a dolorosa luta para formar/educar as tendências naturais de uma pessoa? Em última instância, a perspectiva das intervenções biogenéticas diretas torna sem sentido a própria idéia de educação.

Em segundo lugar, no plano intersubjetivo, essas intervenções biogenéticas darão origem a relações assimétricas entre os que são "espontaneamente" humanos e aqueles cujas características foram artificialmente manipuladas: algumas pessoas aparecerão como criadores privilegiados de outras pessoas...

No nível mais elementar, isso afeta nossa identidade sexual. O que está em jogo é não apenas a possibilidade de os pais escolherem o sexo dos filhos, mas o caráter das operações de mudança de sexo. Até hoje era possível justificá-las citando a lacuna entre as identidades biológica e psíquica de uma pessoa: quando um homem biológico se vê como uma mulher presa a um corpo de homem, por que não deveria poder mudar de sexo biológico e, assim, dar equilíbrio a sua vida sexual e emocional? No entanto, a possibilidade de manipulação biogenética abre uma perspectiva muito mais radical de manipulação da própria identidade psíquica.

Embora essa argumentação seja de uma simplicidade impecável, encerra um grande problema: o próprio fato da possibilidade das manipulações biogenéticas não modifica retroativamente nossa autocompreensão como seres "naturais", no sentido de que hoje experimentamos nossas próprias disposições "naturais" como algo "mediado", não apenas como algo dado imediatamente, mas algo que pode em princípio ser manipulado e é portanto simplesmente contingente? Não há como retornar ao imediato ingênuo: quando SABEMOS que nossas tendências naturais dependem da cega contingência genética, a adesão teimosa a essas tendências é tão falsa quanto a adesão a velhos hábitos "orgânicos" num universo moderno.

Assim, basicamente, o que Habermas está dizendo é: embora hoje saibamos que nossas disposições dependem da insignificante contingência genética, vamos fingir e agir como se não fosse o caso, de modo a mantermos nosso sentido de dignidade e de autonomia -o paradoxo, aqui, é que a autonomia só pode ser mantida proibindo o acesso à cega contingência natural que nos determina, isto é, em última instância, LIMITANDO a nossa autonomia e a liberdade de intervenção científica.

Não seria isso uma nova versão do antigo argumento conservador de que para mantermos nossa dignidade moral é melhor não saber certas coisas? Em suma, a lógica de Habermas é a seguinte: já que os resultados da ciência representam uma ameaça para nossa (noção predominante de) autonomia e liberdade, devemos reprimir a ciência -o preço que pagamos por essa solução é a separação fetichista entre ciência e ética ("Sei muito bem o que a ciência afirma; não obstante, para manter minha [aparência de] autonomia, prefiro ignorá-la e agir como se não soubesse"). Essa divisão nos impede de enfrentar a verdadeira pergunta: como essas novas condições nos forçam a transformar e reinventar as próprias noções de liberdade, autonomia e responsabilidade ética?

O que dizer do possível contra-argumento católico segundo o qual o verdadeiro perigo não é nossa efetiva redução a entidades não-espirituais, mas o próprio fato de que, na biogenética, NÓS, HOMENS, NOS TRATAMOS COMO TAL? Em outras palavras, o ponto principal não é termos ou não uma alma imortal etc. --é claro que temos--, mas que, ao lidarmos com a biogenética, perdemos a consciência disso e tratamos a nós mesmos como se fôssemos simples organismos biológicos.

No entanto, esse argumento apenas desloca o problema: nesse caso, não seriam os próprios fiéis católicos os sujeitos ideais para se envolver plenamente nas manipulações biogenéticas, já que seriam totalmente conscientes de estar lidando apenas com o aspecto material da existência humana, e não com o núcleo espiritual do homem? Em suma, eles deveriam ter permissão para fazer o que quisessem em biogenética, já que sua fé na alma humana etc. os impediria de reduzir o homem a um objeto de manipulações científicas. Assim, nossa pergunta volta com uma vingança: se os homens têm uma alma imortal ou uma dimensão espiritual autônoma, por que temer as manipulações biogenéticas?

Do ponto de vista psicanalítico, o cerne do problema está na autonomia da ordem simbólica. Suponha que eu seja impotente devido a algum bloqueio não resolvido em meu universo simbólico, e que eu tome Viagra em vez de me "educar" por meio do trabalho de resolver o bloqueio simbólico. A solução funciona, sou novamente capaz de atuar sexualmente, mas o problema permanece: Como o bloqueio simbólico em si será afetado por essa solução? Como ela será "subjetivada"?


Lições de psicanálise


A situação aqui é totalmente insolúvel: a solução não será vivenciada como o resultado de uma elaboração simbólica do bloqueio. Nesse sentido, ela pode desbloquear o obstáculo simbólico em si, obrigando-me a aceitar sua total insignificância; ou pode gerar um desvio psicótico, provocando a volta do obstáculo em um nível psicótico mais fundamental (digamos, sou levado a uma atitude paranóica, vendo a mim mesmo como exposto ao capricho de um senhor cujas intervenções podem decidir meu destino).

Existe sempre um preço simbólico a pagar por essas soluções "imerecidas". E, "mutatis mutandis", o mesmo vale para as tentativas de combater o crime por meio de intervenção bioquímica ou biogenética direta: quando se combate o crime submetendo os criminosos a tratamento bioquímico, obrigando-os a ingerir medicamentos contra o excesso de agressividade, deixa-se intacto o mecanismo social que desencadeou o potencial de agressividade nos indivíduos.

Outra lição da psicanálise é que --ao contrário da noção de que a curiosidade é inata aos seres humanos, de que no fundo de cada um exista uma "Wissenstrieb", a pulsão de saber-- a atitude espontânea do ser humano é a de "Não quero saber". Todo avanço no conhecimento é produzido por uma dolorosa luta contra propensões espontâneas. Voltemos um momento ao mal de Huntington: se em minha família existe um caso, deveria eu fazer o exame que dirá se (e quando) contrairei inexoravelmente a doença, ou não?

Se não puder suportar a perspectiva de saber quando morrerei, a solução ideal (mais fantasiosa que realista) talvez seja autorizar uma pessoa ou instituição em que eu confie totalmente a me examinar e NÃO ME CONTAR O RESULTADO, para me matar de maneira inesperada e indolor quando eu estiver dormindo, pouco antes do ataque da doença fatal, se o resultado for positivo... No entanto, o problema dessa solução é que eu sei que o Outro sabe (a verdade sobre minha doença), e isso estraga tudo, expondo-me a uma terrível e aflitiva suspeita.

Seria então a solução ideal a contrária: se eu suspeitar que meu filho pode ter a doença, eu o examino sem ele saber e depois o mato de modo indolor pouco antes do ataque? A fantasia máxima aqui seria a de uma instituição estatal anônima fazer isso com todos nós sem nosso conhecimento -porém, mais uma vez, surge a pergunta: nós sabemos (que o outro sabe) ou não? Está aberto o caminho para uma sociedade perfeitamente totalitária... O que é falso aqui é a premissa subjacente: a noção de que o dever ético máximo é o de proteger o Outro da dor, mantê-lo na ignorância protetora.

A conclusão inevitável é que, com a biogenética, não se trata tanto de perdermos a dignidade e a liberdade -na verdade sentimos que NUNCA AS TIVEMOS, PARA COMEÇO DE CONVERSA. Se hoje temos "terapias que tornam imprecisa a separação entre o que conquistamos por conta própria e o que conquistamos devido aos níveis de várias substâncias químicas em nossos cérebros" [Fukuyama, "Our Post-Human Future"], a própria eficiência dessas terapias não implica que "o que conquistamos por conta própria" também depende de um grau DIFERENTE de "níveis de substâncias químicas em nossos cérebros"? Então não é como se nos dissessem que, para citar o famoso título de Tom Wolfe, "Perdão, sua Alma Acaba de Morrer"-; o que nos dizem, efetivamente, é que nunca tivemos uma alma, para começo de conversa.


Ilusão de dignidade


Se as alegações da biogenética estiverem certas, então a opção que enfrentamos hoje não é entre a dignidade humana e a geração tecnológica "pós-humana" de indivíduos, mas entre agarrar-se à ILUSÃO de dignidade e aceitar a REALIDADE do que somos.

Por isso, quando Francis Fukuyama afirma que "o desejo de reconhecimento tem uma base biológica, e essa base está relacionada aos níveis de serotonina no cérebro", nossa própria consciência desse fato não mina o sentimento de dignidade decorrente de sermos reconhecidos pelos outros? Não podemos tê-lo em ambos os níveis ao mesmo tempo -podemos tê-lo apenas ao preço de uma abjuração fetichista: "Embora eu saiba muito bem que minha auto-estima depende da serotonina, de qualquer modo a aprecio..."

Na página seguinte, Fukuyama expõe os três níveis para se conquistar auto-estima: "A maneira normal, e moralmente aceitável, de superar a baixa auto-estima era lutar consigo mesmo e com os outros, trabalhar duro, suportar sacrifícios às vezes dolorosos e finalmente ascender e ser visto como alguém que realizou isso.

O problema da auto-estima como é entendida na psicologia pop americana é que ela se torna um direito, algo que todo mundo precisa ter, seja ou não merecido. Isso desvaloriza a auto-estima e torna prejudicial sua busca. Mas então vem a indústria farmacêutica americana, que por meio de drogas como Zoloft e Prozac pode oferecer auto-estima engarrafada, elevando a serotonina no cérebro" ["Our Post-Human Future"].

A diferença entre a segunda e a terceira opções é muito mais assustadora do que pode parecer. Quando eu obtenho auto-estima porque a sociedade concorda que tenho direito a isso e oferece o reconhecimento de meus pares, trata-se na verdade de um paradoxo performático que se destrói a si mesmo; no entanto, quando a obtenho através de drogas, consigo a "coisa real".

Imaginemos o seguinte roteiro: eu participo de um concurso de perguntas e respostas; em vez do difícil processo de aprender, eu reforço minha memória com drogas -no entanto, a auto-estima que obtenho ao vencer o concurso ainda se baseia na conquista real, isto é, eu realmente me saí melhor que meu colega que passou noites tentando aprender todos os fatos importantes sobre o tema do concurso.

O contra-argumento intuitivo óbvio é que apenas meu adversário realmente tem o direito de sentir-se orgulhoso, porque seu resultado foi consequência de trabalho duro e árdua dedicação -no entanto, não há algo inerentemente humilhante e condescendente nessa posição, como ao dizermos para uma pessoa com deficiência mental que consegue tecer o cesto proverbial: "Você deve se orgulhar pelo que fez"?

Além disso, não consideramos justificável que alguém com um enorme talento natural para cantar se orgulhe de seu desempenho, embora estejamos conscientes de que seu canto se baseia mais em talento do que em esforço e estudo (o antigo problema Mozart-Salieri)? Entretanto, se eu melhorasse meu canto por meio de uma droga, não seria objeto de estima (a não ser na situação em que eu fizesse um grande esforço para inventar essa droga e a testasse em mim mesmo).

Portanto, não se trata simplesmente de trabalho duro e esforço "versus" a ajuda de uma droga: o ponto principal é que tanto o trabalho duro como o talento são considerados "parte de mim", do meu "Self", enquanto o aperfeiçoamento através da droga resulta de uma manipulação externa.

E, mais uma vez, isso nos leva de volta ao mesmo problema: quando SABEMOS que meu "talento natural" depende de uma substância química em meu cérebro, realmente importa, moralmente, se eu o obtive do exterior ou ao nascer? Para complicar ainda mais as coisas: E se minha própria disposição para me dedicar ao esforço interior, à disciplina e ao trabalho duro depender de uma substância química?

E se, para vencer um concurso, eu não tomar diretamente uma droga que reforce minha memória, mas "simplesmente" uma droga que reforce meu empenho e minha dedicação? Também é "trapaça"? Por que então Fukuyama passa da defesa da democracia liberal como "fim da história" para a ameaça representada pelas ciências do cérebro? A resposta parece fácil: a ameaça biogenética é uma versão nova e muito mais radical do "fim da história", que mina os próprios fundamentos da democracia liberal: os novos avanços científicos e tecnológicos potencialmente tornam obsoleto o sujeito liberal-democrata livre e autônomo.

Existe, porém, um motivo mais profundo para Fukuyama voltar-se para as ciências do cérebro, um motivo que envolve diretamente sua visão política: é como se a perspectiva das manipulações biogenéticas obrigasse Fukuyama a perceber o reverso sombrio de sua imagem idealizada da democracia liberal.

De repente, a propósito da ameaça biogenética, ele é forçado a confirmar todas as coisas que desapareceram magicamente de sua utopia liberal-democrata: as perspectivas sombrias de as corporações usarem o mercado livre para manipular as pessoas e dedicar-se a terríveis experimentos médicos, de os ricos criarem sua prole como uma raça especial, com capacidades físicas e mentais superiores, instigando assim uma nova guerra de classes.

Está claro para Fukuyama que a única maneira de conter esse perigo é reafirmar um forte controle estatal do mercado e desenvolver novas formas de vontade política democrática. (Embora seja fácil fazer graça com as óbvias simplificações de Fukuyama, há mesmo assim algo de refrescante em sua figura: em nosso espaço intelectual cheio de falsos protestos, finalmente um apologista da ordem existente totalmente dedicado -e não é de admirar que sua obra com frequência produza um inesperado grão de verdade.)


Fim da história e do sujeito


Embora concordemos com tudo isso, somos tentados a acrescentar: não precisamos dessas medidas também independentemente da ameaça biogenética, apenas para controlar o terrível potencial da economia de mercado global? Talvez o problema não seja a biogenética em si, mas sobretudo o contexto social das relações de poder no qual ela funciona.

O problema de Fukuyama é portanto duplo: sua argumentação é ao mesmo tempo abstrata demais e concreta demais. Ele deixa de questionar todas as implicações filosóficas das novas ciências e tecnologias da mente, e deixa de situar essas ciências e tecnologias em seu contexto socioeconômico antagônico.

O que ele não compreende (e um verdadeiro hegeliano DEVERIA compreender) é a ligação necessária entre os dois "fins da história", a passagem necessária de um para outro: o "fim da história" liberal-democrata imediatamente se transforma em seu contrário, já que, no momento mesmo de seu triunfo, começa a perder sua própria base: o sujeito liberal-democrata.

A biogenética (e, de maneira geral, também o reducionismo cognitivista-evolucionário) deveria ser atacada de uma direção diferente. Bo Dahlbom está certo, em sua crítica de Daniel Dennett ["Mind is Artificial", no volume "Dennett and his Critics"], quando insiste no caráter SOCIAL da "mente".

Em primeiro lugar, as teorias da mente são obviamente condicionadas por seu contexto social e histórico: a noção de Dennett de diversos esboços concorrentes não exibe suas raízes no capitalismo tardio "pós-industrial", com seus motivos de concorrência, descentralização etc.?

Fredric Jameson propôs recentemente uma leitura de "Consciousness Explained" [A Consciência Explicada] como uma alegoria do capitalismo atual. De modo ainda mais importante, Dennett insiste que as ferramentas -a inteligência exteriorizada de que os seres humanos dependem- são uma parte inerente da identidade humana: não tem sentido imaginar um ser humano como uma entidade biológica, SEM a rede complexa de suas ferramentas -essa idéia equivale a, por exemplo, um ganso ou um pássaro sem penas.

Ele não abre assim um caminho que deveria ser levado muito mais adiante que no próprio Dennett? Já que, para colocar nos bons e velhos termos marxistas, o homem é a totalidade de suas relações sociais, por que Dennett não dá o passo lógico seguinte e analisa diretamente essa rede de relações sociais?

Esse domínio da "inteligência exteriorizada", desde as ferramentas até, especialmente, a própria linguagem, e as relações sociais nela envolvidas, forma um domínio por si só, o do que Hegel chamou de "espírito objetivo", o domínio da substância artificial em oposição à substância natural.

A fórmula proposta por Dahlbom, portanto, é: da "Sociedade de Mentes" (a idéia desenvolvida por Minsky, Dennett e outros) às "Mentes de Sociedade", isto é, a mente humana como algo que só pode surgir e funcionar dentro de uma complexa rede de relações sociais e complementos mecânicos artificiais que "objetivam" a inteligência.

Agora podemos ver onde está o erro do projeto reducionista: o problema não é como reduzir a mente a processos neurais "materiais", substituir a linguagem da mente pela linguagem dos processos cerebrais, traduzir a primeira na segunda, mas, sobretudo, compreender como a mente pode surgir somente ao estar incrustada na rede de relações sociais e complementos materiais.

Deveríamos portanto mudar a ênfase da metáfora para a metonímia: o verdadeiro problema não é "Como seria possível as máquinas IMITAREM a mente humana?", mas: "Como a própria identidade da mente humana depende de complementos mecânicos externos, como ela incorpora as máquinas?"


Controle remoto interior


Em março de 2002 a mídia relatou que Kevin Warwick, de Londres, tornou-se o primeiro ciber-homem: em um hospital de Oxford, seu sistema neurológico foi diretamente conectado a uma rede de computadores; ele é, portanto, o primeiro homem para o qual dados são fornecidos diretamente, sem passar pelos cinco sentidos. ISSO é o futuro: a combinação, e não a substituição, da mente humana com o computador.

Tivemos mais uma amostra desse futuro em maio de 2002, quando foi relatado que cientistas da Universidade de Nova York ligaram um chip de computador diretamente ao cérebro de um rato, de modo que se podia dirigir o rato (determinar a direção em que ele correria) por meio de um mecanismo semelhante ao de um carrinho com controle remoto.

Esse não é o primeiro caso de ligação direta entre um cérebro e uma rede de computadores: já existem ligações que permitem a pessoas cegas receber informações visuais elementares sobre seu entorno diretamente no cérebro, sem passar pelo aparato da percepção visual (olhos etc.); o que é novo, no caso do rato, é que pela primeira vez a "vontade" de um agente animal vivo -as decisões "espontâneas" sobre os movimentos que fará- é controlada por uma máquina externa.

A questão filosófica aqui é: como o infeliz rato "vivenciou" seu movimento, que na verdade foi decidido externamente? Ele continuou a "vivenciá-lo" como algo espontâneo, isto é, estava totalmente inconsciente de que seus movimentos eram dirigidos? Ou tinha consciência de que "alguma coisa estava errada", de que outro poder externo estava decidindo seus movimentos? E o que acontecerá quando o mesmo experimento for realizado em seres humanos (o que, não obstante as questões éticas, não deverá ser muito mais complicado que no caso do rato)?

Então, mais uma vez: Um ser humano dirigido continuará "vivenciando" seus movimentos como algo espontâneo, continuará totalmente inconsciente de que seus movimentos são dirigidos, ou terá consciência de que "alguma coisa está errada", de que outro poder externo está decidindo seus movimentos? E como, exatamente, aparece esse "poder externo"? Como algo "dentro de mim", um impulso interno incontível, ou como uma simples coerção externa? Também são sintomáticas as possíveis aplicações desse mecanismo mencionadas por cientistas e jornalistas: o acoplamento de ajuda humanitária e campanha antiterrorista -poderíamos usar ratos ou outros animais dirigidos para encontrar vítimas de um terremoto sob os destroços E para atacar terroristas sem pôr em risco vidas humanas...

A tendência no desenvolvimento dos computadores é na direção de sua invisibilidade: as grandes máquinas ronronantes com misteriosas luzes piscando serão cada vez mais substituídas por pequenas peças adaptadas de modo imperceptível a nossos ambientes "normais", permitindo que funcionem mais suavemente. Os computadores, em vez de se tornarem os monstros vorazes vistos nos filmes de ficção científica, se tornarão tão pequenos e imperceptíveis que serão invisíveis, em toda parte e em lugar nenhum, tão poderosos que desaparecerão de vista.

Basta lembrarmos os automóveis de hoje, em que muitas funções são realizadas suavemente devido a pequenos computadores que a maioria de nós não percebe (acionamento dos vidros, aquecimento...); no futuro próximo, teremos cozinhas, ou até vestidos, copos e sapatos computadorizados. Longe de ser uma questão de um futuro distante, essa invisibilidade já está aqui: daqui a um ano a Philips pretende lançar no mercado um telefone e reprodutor de música que será entremeado ao tecido de um paletó de tal forma que será possível não apenas vestir o paletó da maneira habitual, sem se preocupar com o maquinário digital, mas também lavá-lo sem remover nada.

Esse desaparecimento do nosso campo de experiência sensual (visual) não é tão inocente quanto possa parecer: a própria característica que tornará fácil lidar com o paletó Philips -não mais uma máquina volumosa e delicada, mas quase uma prótese orgânica de nosso corpo- lhe conferirá um caráter fantasmagórico de Mestre invisível todo-poderoso -a prótese maquínica será menos um aparato externo com o qual interagimos e mais uma parte de nossa experiência direta como organismo vivo, com o que nos descentrará a partir do interior.

Por esse motivo, é enganoso o paralelo entre a crescente invisibilidade dos computadores e o conhecido fato de que quando as pessoas sabem suficientemente bem alguma coisa deixam de ter consciência dela. O sinal de que aprendemos uma língua é que não precisamos mais nos concentrar em suas regras: não apenas a falamos "espontaneamente", como nos concentrarmos ativamente em suas regras nos impede de falar com fluência. No entanto, no caso da língua, tivemos de aprendê-la antes, "tê-la na cabeça", enquanto os computadores invisíveis em nossos ambientes estão aí agindo não "espontaneamente", mas apenas cegamente.

Então, o que teria dito Hegel a respeito do projeto genoma e das intervenções biogenéticas? Qualquer que fosse sua reação, certamente não teria sido retrair-se com medo, preferindo a ignorância ao risco. Hegel não se alegraria com "Tu És Genoma", nessa versão definitiva e fragmentadora do antigo "Tu És Isso", como o exemplo máximo do julgamento infinito cujos dois outros famosos exemplos hegelianos são "O espírito é um osso" e "O "Self" é dinheiro"?

Ao contrário de Jürgen Habermas, deveríamos assim afirmar a necessidade ética de assumirmos a plena objetivação do genoma: essa redução do meu ser substancial à fórmula insensível do genoma me força a atravessar o fantasmagórico "étoffe du moi", o estofo de que são feitos nossos egos -e é somente através desse esforço que pode emergir a subjetividade propriamente dita.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Bem vindo ao deserto do Real

Slavoj Zizek


(Fonte: Jornal "Folha de São Paulo") - 23 de setembro 2001 


Queda do World Trade Center ruiu percepção de que EUA poderiam viver em um mundo de especulações desconectadas da esfera da produção material e força país a atravessar tela fantasmática que o separa do exterior


A fantasia paranóica americana máxima é a de um indivíduo vivendo em uma pequena e idílica cidade californiana, um paraíso consumista, indivíduo que de repente começa a suspeitar que o mundo no qual vive seja falso, um espetáculo encenado para convencê-lo de que ele vive em um mundo real, enquanto todas as pessoas à sua volta são efetivamente atores e figurantes em um programa gigante.


O exemplo mais recente disso é "The Truman Show" (1998), de Peter Weir, com Jim Carrey no papel de um vendedor de seguros da cidadezinha que gradualmente descobre ser o protagonista de um programa de TV permanente e transmitido 24 horas por dia: sua cidade natal é construída dentro de um gigantesco set de filmagem, com câmeras que o seguem permanentemente.


Entre seus predecessores, vale a pena mencionar o livro "Time Out of Joint" (Tempo Fora dos Eixos), de Philip K. Dick, no qual o protagonista, vivendo uma vida cotidiana modesta na mesma idílica cidade californiana no final dos anos 50, gradualmente descobre que a cidade inteira é um embuste encenado de forma a mantê-lo satisfeito...


A experiência subjacente de "Time Out of Joint" e "The Truman Show" é que o paraíso consumista californiano do capitalismo tardio é, em sua própria hiper-realidade, de certa forma irreal, insubstancial, privado de inércia material.


Então não é apenas Hollywood que encena uma aparência de vida real privada do peso e da inércia da materialidade -na sociedade consumista do capitalismo tardio, a própria "vida social real" de algum modo adquire características de uma sociedade encenada, com nossos vizinhos na vida "real" agindo como atores e figurantes...


Novamente a verdade máxima do universo capitalista, utilitário e desespiritualizado, é a desmaterialização da própria "vida real", a inversão desta em um show espectral.


Entre outros, Christopher Isherwood deu expressão a essa irrealidade da vida cotidiana norte-americana, exemplificada no quarto de motel: "Motéis norte-americanos são irreais! (...) Eles são deliberadamente projetados para serem irreais. (...) Os europeus nos odeiam porque nós nos retiramos para viver dentro de nossas propagandas, como ermitões entrando em cavernas para se dedicar à contemplação".


O conceito de Peter Sloterdijk de "esfera" é aqui literalmente realizado, como a gigantesca esfera de metal que envolve e isola a cidade inteira. Anos atrás, uma série de filmes de ficção científica como "Zardoz" (1974) e "Logan's Run" (1976) prognosticou a condição pós-moderna atual ao estender essa fantasia à própria comunidade: o grupo isolado vivendo uma vida asséptica em uma área isolada ambiciona a experiência de um mundo real de decadência material.


"Matrix" (1999), o hit dos irmãos Wachowski, trouxe essa lógica ao seu ápice: a realidade material que todos nós experimentamos e vemos à nossa volta é uma realidade virtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador ao qual estamos todos conectados; quando o herói (papel desempenhado por Keanu Reeves) desperta na "realidade real", ele vê uma paisagem arrasada plena de ruínas queimadas -o que restou de Chicago após uma guerra mundial.


O líder da resistência Morpheus pronuncia a saudação irônica: "Bem-vindo ao deserto do real". Não foi algo da mesma ordem que ocorreu em Nova York no dia 11 de setembro? Seus cidadãos foram apresentados ao "deserto do real" - para nós, corrompidos por Hollywood, a paisagem e as cenas que vimos das torres arruinadas não puderam deixar de nos lembrar das sequências mais impressionantes dos grandes filmes de catástrofe.


Ao ouvir como os ataques foram um choque totalmente imprevisto, como o inimaginável impossível aconteceu, deve ser lembrada outra catástrofe definidora, do começo do século 20: aquela do Titanic. Também foi um choque, mas o espaço para ele já havia sido preparado em fantasias ideológicas, já que o Titanic era o símbolo do poder da civilização industrial do século 19.


O mesmo não é verdade para esses ataques? Não apenas a mídia nos bombardeava o tempo todo falando da ameaça terrorista; essa ameaça era também obviamente libidinalmente investida -basta lembrar a série de filmes, de "Fuga de Nova York" a "Independence Day".


O impensável que aconteceu era portanto o objeto de fantasia: de certo modo, os EUA receberam aquilo que era o objeto de suas fantasias, e isso foi a surpresa maior.


É precisamente agora, quando estamos lidando com o real cru da catástrofe, que devemos ter em mente as coordenadas ideológicas e fantasmáticas que determinam a percepção dela. Se há algum simbolismo no colapso das torres do World Trade Center, ele não é tanto a antiga noção de "centro do capitalismo financeiro", mas, ao contrário, a noção de que as duas torres representavam o centro do capitalismo virtual, de especulações financeiras desconectadas da esfera da produção material.


O impacto estilhaçador dos ataques só pode ser medido contra a fronteira que hoje separa o Primeiro Mundo digitalizado do Terceiro Mundo "deserto do real". É a consciência de que nós vivemos em um universo artificialmente isolado que gera a noção de que um agente ominoso nos ameaça todo o tempo com a destruição total.


Foi, consequentemente, Osama bin Laden a mente criminosa que surgiu como a principal suspeita dos ataques, e não a contraparte na vida real de Ernst Stavro Blofeld, o mestre criminoso na maioria dos filmes de James Bond, envolvido em atos de destruição global. O que deve ser lembrado aqui é que o único lugar em filmes hollywoodianos em que nós vemos o processo de produção em toda a sua intensidade aparece quando James Bond penetra o domínio secreto do mestre criminoso e localiza ali o lugar de trabalho intenso (destilação e embalagem das drogas, construção do míssil que destruirá Nova York...).


Quando o mestre criminoso, após capturar Bond, o leva em um passeio por suas instalações ilegais -não é isso o mais próximo que Hollywood chega de uma orgulhosa apresentação socialista-realista da produção em uma fábrica? E a função da intervenção de Bond, é claro, é explodir em fogos de artifício o local de produção, permitindo a nós o retorno ao aspecto diário de nossa existência em um mundo com a "classe trabalhadora em desaparecimento". Não foi isso que aconteceu na explosão das torres do World Trade Center, essa violência, comumente dirigida ao ameaçador Exterior, voltada contra nós?


A esfera segura em que os americanos vivem é experimentada como sob uma ameaça constante do Exterior de ataques terroristas, que são impiedosamente auto-sacrificantes e também covardes, que são afiadamente inteligentes e também bárbaros primitivos.


Sempre que encontramos um mal tão puro no Exterior, nós devemos reunir a coragem para apoiar a lição hegeliana: nesse Exterior puro, nós devemos reconhecer a versão destilada de nossa própria essência. Pois nos últimos cinco séculos a prosperidade e paz (relativas) do Ocidente "civilizado" foram compradas pela exportação de impiedosa violência e destruição ao Exterior "bárbaro": a longa história desde a conquista da América ao massacre no Congo.


Por mais que soe cruel e indiferente, nós também deveríamos, agora mais do que nunca, ter em mente que o efeito desses ataques é de fato muito mais simbólico do que real. Os EUA apenas provaram o que acontece no resto do mundo diariamente, de Sarajevo a Grozni, de Ruanda e do Congo a Serra Leoa. Se forem adicionados à situação em Nova York atiradores de elite e estupros em massa, é possível ter uma idéia do que era Sarajevo uma década atrás.


Foi quando assistimos na tela de TV ao colapso das duas torres do World Trade Center que se tornou possível experimentar a falsidade dos "reality shows" da TV: mesmo se esses shows forem "de verdade", as pessoas ainda atuam neles -elas simplesmente atuam como elas mesmas.


O aviso padrão em um romance ("as personagens deste texto são ficcionais, qualquer semelhança com pessoas da vida real é mera coincidência") também é verdade para os participantes dessas novelas "reality": o que vemos lá são personagens ficcionais, mesmo se eles atuam como si próprios "de verdade".


É claro, o "retorno ao real" pode receber diferentes desvios: comentadores de direita, como George Will, quase imediatamente proclamaram o fim das "férias" que os EUA haviam tirado da história - o impacto da realidade tendo estilhaçado a torre isolada da atitude liberal tolerante e o enfoque dos "estudos culturais" na textualidade. Agora nós somos forçados a revidar, a lidar com inimigos reais no mundo real... Entretanto revidar contra quem? Qualquer que seja a resposta, ela nunca atingirá o alvo exato, trazendo-nos satisfação completa.


Há uma verdade parcial na noção de "choque de civilizações" atestada aqui -um testemunho exemplifica a surpresa do americano médio: "Como é possível que eles tenham tanto desapego a suas próprias vidas?". Não é o outro lado dessa surpresa o triste fato de que nós, em países do Primeiro Mundo, achamos cada vez mais difícil até imaginar uma causa pública ou universal pela qual sacrificar a própria vida?


Ideologia hegemônica Quando, após os atentados, até mesmo o ministro das Relações Exteriores do Taleban disse que podia "sentir a dor" das crianças americanas, isso não foi uma confirmação do papel ideológico hegemônico dessa "frase registrada" de Bill Clinton?


Além disso, a noção dos Estados Unidos como um porto seguro, é claro, é também uma fantasia: quando um nova-iorquino comentou sobre como, após os atentados, não é mais possível andar com segurança pelas ruas da cidade, a ironia disso foi que, bem antes dos ataques, as ruas de Nova York eram famosas pelo perigo de ser atacado ou, no mínimo, assaltado - se alguma mudança houve, o que esses atentados criaram foi um novo sentimento de solidariedade, com cenas de jovens afro-americanos ajudando um velho senhor judeu a atravessar a rua, cenas inimagináveis há alguns dias.


Agora, nos dias imediatamente subsequentes aos ataques, é como se nós estivéssemos em um tempo único entre um evento traumático e o seu impacto simbólico, como naqueles momentos em que nos cortamos profundamente e a dor ainda não nos atingiu por completo -ainda está em aberto o modo como os eventos serão simbolizados, qual será sua eficácia simbólica, que atos eles serão chamados a justificar.


Mesmo aqui, nestes momentos de incomparável tensão, essa associação não é automática e sim contingente. Já há os primeiros maus presságios; no dia após os ataques, eu recebi uma mensagem de um jornal que estava prestes a publicar um longo texto meu sobre Lênin, dizendo que haviam decidido adiar a publicação -haviam considerado inoportuno publicar um texto sobre Lênin imediatamente após os atentados. Será que isso não aponta para ominosas rearticulações ideológicas que se seguirão?


Uma ilha incluída Nós ainda não sabemos que consequências, na economia, na ideologia, na política, na guerra, terá esse evento, mas uma coisa é certa: os EUA, que, até este momento, se acreditavam uma ilha excluída desse tipo de violência, testemunhando acontecimentos como esse pela distância segura da tela de TV, estão agora diretamente envolvidos.


Então a alternativa é: vão os americanos decidir fortificar ainda mais sua "esfera" ou vão arriscar-se a sair dela? Ou os Estados Unidos vão persistir nessa atitude de "por que isso deveria acontecer a nós? Coisas assim não acontecem por aqui!", quem sabe até fortalecer essa atitude, levando a mais agressividade contra o Exterior ameaçador, em resumo: a uma atuação paranóica.


Ou os Estados Unidos vão finalmente arriscar-se a atravessar a tela fantasmática que os separa do mundo exterior, aceitando a chegada deles ao mundo real, fazendo a passagem já por demais atrasada do "uma coisa assim não deveria acontecer por aqui!" para "uma coisa assim não deveria acontecer em lugar nenhum!".


As "férias da história" dos EUA foram um embuste: a paz americana foi comprada por meio de catástrofes que aconteceram em outros lugares. Aí reside a verdadeira lição dos atentados: o único modo de assegurar que não acontecerão novamente é evitar que aconteçam em qualquer lugar.


(Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.)


-Tradução de Victor Aiello Tsu -