quinta-feira, 31 de dezembro de 2009



A hipótese comunista, segundo Zizek

Artigo publicado na revista Piauí, junho 2009.

Em contraste com a imagem clássica dos proletários que não têm "nada a perder além dos seus grilhões", o que nos une é o perigo de perdermos tudo: nosso meio ambiente, nosso patrimônio genético e a possibilidade de nos comunicarmos livremente
Em um magnífico texto curto, "Notas de um Publicista" - escrito em fevereiro de 1922, quando os bolcheviques, depois de, contra todas as expectativas, vencerem a guerra civil, precisaram recuar, adotaram a Nova Política Econômica e admitiram uma liberdade de ação muito mais ampla para a economia de mercado e a propriedade privada -, Lênin usa a analogia de um alpinista obrigado a retroceder em sua primeira tentativa de chegar a um novo pico para descrever o que significa o recuo num processo revolucionário, e como pode ser levado a cabo sem, oportunisticamente, trair a causa:
Imaginemos um homem que escala uma montanha muito alta, íngreme e até então inexplorada. Vamos supor que ultrapassou dificuldades e perigos inéditos, conseguindo atingir um ponto muito mais alto que qualquer um dos seus antecessores, mas que ainda não chegou ao cume. Ele se vê numa posição em que não é só difícil e perigoso prosseguir, na direção e pelo trajeto que escolheu, mas positivamente impossível.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009



Crise: modos de usar por Slavoj Zizek



Artigo de Slavoj Zizek, publicado por Folha de S. Paulo

Quando o herói de "Eles Vivem", de John Carpenter, uma das obras-primas esquecidas da esquerda de Hollywood, colocou um par de óculos de sol estranho que encontrou numa igreja abandonada, descobriu que um outdoor colorido que convidava as pessoas a passar férias numa praia do Hawai passava a ostentar apenas palavras cinzentas sobre um pano de fundo branco - "casem e reproduzam-se" -, enquanto um anúncio de uma nova TV a cores passava a dizer simplesmente "não pense, consuma!".
Em outras palavras, os óculos funcionavam como aparelho de crítica da ideologia, possibilitando ao protagonista enxergar a mensagem real oculta sob a superfície colorida. O que veríamos, então, se observássemos a campanha presidencial republicana com a ajuda de óculos como esses? A primeira coisa que chamaria a nossa atenção seria uma longa série de contradições e incoerências já observadas por muitos comentaristas. 

domingo, 27 de dezembro de 2009



Slavoj Žižek - What does it mean to be a revolutionary today? Marxism 2009


Este é um video com audio em inglês, que ainda não possui legendas em português. Vamos publicar o material original, aguardando a transcrição da conferência em português, tão logo esteja pronta publicaremos aqui. Optamos por aceitar o material exclusivamente em inglês pela importância do video.


Esperamos que aproveitem!










 

Atualização (28/01/2010): A transcrição do video está disponível aqui no site, você pode acessá-la diretamente clicando aqui.



Depois da versão bárbara, eis o império de rosto humano

Por Slavoj Zizek, publicado originalmente no Le Monde

Diz-se frequentemente que a vitória de Barack Obama representa a realização do sonho de Martin Luther King de uma emancipação total dos Negros: aquilo com que o pastor sonhava tornou-se realidade. A sério? Na Primavera de 2008, enquanto os Estados Unidos comemoravam a morte trágica de Martin Luther King, Henry Louis Taylor comentava com amargura que "a única coisa que sabemos é que este homem tinha um sonho. Não sabemos qual era esse sonho".
Este apagamento da memória histórica diz respeito particularmente à época situada depois da Marcha sobre Washington, em 1963, onde King foi aclamado como "o líder moral da nossa nação". Apoiou de seguida os problemas da pobreza e do militarismo, pois pensava que estas questões, e não apenas o espectro da fraternidade racial, eram decisivas para tornar a igualdade numa realidade. Pagou por isso um preço elevado, uma vez que foi, cada vez mais, sendo tratado como um pária. O perigo a que Obama se expôs durante a sua campanha foi esse, o mesmo a que a censura histórica submeteu, mais tarde, King, o mesmo que Obama já impôs a si próprio: a "limpeza política" do seu programa de temas polémicos para garantir a sua eleição.



"As estruturas não caminham pela rua!" O maio de 68, segundo Zizek

Artigo publicado originalmente pelo jornal La Repubblica, em 14/04/2008.



Em 1968, uma das frases mais famosas que apareceu nos muros de Paris foi: “As estruturas não caminham pela rua!”, expressão que não justifica as grandes demonstrações dos estudantes e dos trabalhadores do Sessenta e Oito em termos de estruturalismo (o que esclarece por que alguns historiadores chegaram a francamente considerar o ano 1968 como o divisor de águas entre o estruturalismo e o pós-estruturalismo, que foi – assim se diz – muito mais dinâmico e propenso a intervenções de política eficazes). A resposta de Jaques Lacan foi que, em 1968, na verdade, aconteceu exatamente isto: “As estruturas desceram indubitavelmente às ruas”. Os eventos explosivos manifestados foram definitivamente o êxito de um desequilíbrio estrutural; para dizer com as palavras de Lacan, foram o êxito da passagem do discurso do Patrão para o discurso da Universidade. Em que consiste precisamente essa passagem?

The New Spirit of Capitalism de Boltanski e Chiapello (Le nouveau esprit du capitalisme, é o título original do livro de Boltanski e Chiapello - nota da IHU On-Line) examina-o em detalhe, com particular atenção a França. Abraçando o método weberiano, o livro distingue três “espíritos” consecutivos do capitalismo: o primeiro espírito do capitalismo empresarial durou até a Grande Depressão dos anos 30; o segundo espírito do capitalismo trouxe para seu próprio ideal não o empresário, mas o executivo assalariado de uma grande empresa. Dos anos setenta em diante, ao contrário, andou emergindo uma nova figura de “espírito do capitalismo”: o capitalismo abandonou a estrutura hierárquica de modelo fordista do processo de produção, e desenvolveu uma forma de organização baseada em uma estrutura em rede que se sustentava na iniciativa e na autonomia dependentes do trabalhador no lugar de trabalho. No lugar de uma cadeia de comando centralizada e hierárquica, difundiram-se estruturas de rede formadas por uma multidão de participantes, que organizavam o trabalho sob forma de time ou de projetos, visando a satisfazer a clientela, e havia uma mobilização geral dos trabalhadores graça à visão de seu líder. Desse modo, o capitalismo transformou-se e legitimou-se como um projeto igualitário: por meio de uma crescente interação autopoiética e de uma auto-organização espontânea, chegou até mesmo a usurpar a linguagem da extrema esquerda da autogestão dos trabalhadores e do slogan anticapitalista e fez dele um slogan capitalista.
Uma inteira seqüência de eventos histórico-ideológicos foi assim se criando, na qual o Socialismo aparece conservador, hierárquico, administrativo, tanto que a lição de sessenta e oito é “Good-bye, Mr. Socialism”, “Adeus, Socialismo!”, e a verdadeira revolução é aquela do capitalismo digital. Esse capitalismo é a conseqüência lógica, a “verdade” da revolução de 1968. Os protestos anticapitalistas dos anos sessenta integraram a crítica habitual da exploração socioeconômica com argumentos de critica cultural: a alienação da vida diária, a comercialização dos bens de consumo, a falta de autenticidade de uma sociedade de massa na qual “vestem-se máscaras” e sujeitam-se às opressões sexuais e de outras naturezas.
O novo espírito do capitalismo recuperou de modo triunfante a retórica igualitária e anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como uma revolta libertária de sucesso contra as organizações sociais opressivas do capitalismo das coorporações e também contra o socialismo “real, existente”: esse novo espírito libertário está encarnado nos capitalistas “desenvoltos”, vestidos à grande, como Bill Gates e fundadores do sorvete “Bem and Jerry”.

A aposta de Michael Hardt e Toni Negri é que esse novo espírito já é por si só Comunista: como Marx, celebram o potencial revolucionário “desterritorializante” do capitalismo; como Marx, individualizam a contradição dentro do capitalismo, na discrepância existente entre esse potencial e a forma do capital (a apropriação da parte da propriedade privada do excedente). Em breve, reabilitam o velho conceito marxista de tensão entre forças produtivas e relações da produção: o capitalismo já produz “os gérmens da futura forma de vida nova”, produz incessantemente o novo “denominador comum”, de modo que em uma explosão revolucionária, esse Novo deve ser desvinculado pela velha forma social.
Não surpreende que Negri recentemente esteja sempre apreciando mais o capitalismo digital “pós-moderno”, afirmando que ele já é comunista, e que precisará somente pouco, um empurrãozinho, um gesto puramente formal, para que se torne isso abertamente. A estratégia de base do capitalismo atual consiste em cobrir a sua própria abundância, achando um novo modo para incluir outra vez a multidão produtiva independente.
A ironia é que Negri refere-se aqui ao processo que os mesmos ideólogos do capitalismo atual “pós-moderno” celebram à medida que  passam da produção material à simbólica, da lógica centrista-hierárquica à lógica da auto-organização autopoiética, da colaboração multicêntrida e assim por diante. Negri que é, em efeito, fiel a Marx: o que se esforça por demonstrar é que Marx tinha razão, que a ascenção do “intelecto geral” é incompatível, em longo prazo, com o capitalismo. Os ideólogos do capitalismo pós-moderno estão fazendo uma afirmação diametralmente oposta: é a própria teoria marxista (e a prática marxista) que fica no âmbito dos constrangimentos da lógica hierárquica centralizada a controle do governo, e, portanto, não pode enfrentar os efeitos sociais da nova revolução informacional.
Há boas razões empíricas para confirmação desta afirmação: ainda uma vez, o paradoxo histórico é que a desintegração do Comunismo é o exemplo mais convincente da validade da tradição dialética marxista entre força de produção e relação de produção, na qual o marxismo deposita confiança na sua tentativa de derrubar o capitalismo. A prejudicar definitivamente os regimes comunistas está a sua própria incapacidade de adaptar-se à nova lógica sustentada pela “revolução informacional”: tentaram pilotar esta revolução com um projeto qualquer em larga escala de planejamento estatal centralizado. O absurdo, portanto, é que o que Negri exalta como uma oportunidade irrepetível para derrubar o capitalismo, os ideólogos da “revolução informacional” o exaltam como a ascenção do novo capitalismo “privado de atritos”.
Mas a passagem a um outro espírito do capitalismo foi realmente tudo o que aconteceu nos eventos de ’68, de forma que todo o entusiamo eufórico pela liberdade, em realidade, não era outra coisa senão um meio de substituir uma forma de domínio por uma outra? Recordemos as palavras de desafio lançadas por Lacan aos estudantes: “Como revolucionários, vocês são loucos que pedem um novo patrão. E o terão”.

Em havendo razão, o sessenta e oito foi um evento único ou foi uma dilaceração, e também ambíguo, em cujo curso várias tendências políticas lutaram entre si pela hegemonia? Isso explicaria o fato de que, enquanto a ideologia hegemônica apropriou-se magnificamente do sessenta e oito, a partir uma explosão da liberdade sexual e da criativadade anti-hierárquica, Nicholas Sarkozy disse, em sua campanha eleitoral em 2007, que seu dever é o de conseguir que finalmente a França supere o sessenta e oito. Portanto há um “maio de ’68 deles” e um “maio de ‘68 nosso” na nossa atual recordação ideológica, a “nossa” idéia de base das demonstrações daquele maio, ao passo que a conexão entre os protestos estudantis e as greves dos trabalhadores é esquecida.
Da liberação sexual dos anos sessenta sobreviveu o hedonismo tolerante facilmente incorporado na nossa ideologia hegemônica. O imperativo do superego de divertir-se, portanto, produz o contrário preciso do “Du kanst, denn Du sollst!” (Você é capaz, então você deve!) de Kant, torna-se um “Deve, porque é capaz!”. Isso significa que o aspecto do superego do hedonismo atual “não repressivo” (as incessantes provocações a que estamos expostos, o que nos impõem ir, afinal de contas, até explorar todos os possíveis modos de prazer, de gozo ) reside no modo em que o gozo necessariamente se transforma em um gozo obrigatório. Esse impulso no puro gozo autístico (por meio de substâncias entorpecentes ou de outros métodos que induzam a um estado de transe) afirmou-se em um momento político preciso: quando o estímulo emancipador de 1968 exaure o seu potencial.
Naquele período crítico (a metade dos anos setenta), a única opção restante era a passagem à ação direta, brutal, um empurrão para a Realidade que assumiu três formas principais: a procura de formas extremas de gozo sexual; o terrorismo político de esquerda (com a Raf na Alemanha e as Brigadas Vermelhas na Itália, e assim por diante, cuja aposta era que, em uma época em que as massas estavam totalmente imersas no sono ideológico capitalista, a crítica habitual da ideologia não era mais operacional, assim que somente o recurso da crua Realidade da violência direta – a ação direta – poderia acordar as massas); e, finalmente, a volta para a Realidade de uma experiência interior (o misticismo oriental). Em comum, todas as três eram caracterizadas com uma mesma alienação por um compromisso concreto sócio-político em um contato direto com a realidade.
Essa mudança de compromisso político para a Realidade pós-política é talvez exemplificada na melhor das hipóteses nos filmes de Bernardo Bertolucci, um rebelde incansável, e em particular na evolução de sua obra, em suas primeiras obras-primas aquelas antes da revolução até a sua mais recente completa rendição estético-espiritualista, como o assustador Pequeno Buda. Esse percurso completou uma volta completa com Os Sonhadores, o último filme de Bertolucci sobre o sessenta e oito parisiense, no qual um casal de estudantes, irmão e irmã, e um jovem estudante norte-americano de passagem iniciam uma profunda amizade na agitação dos eventos para depois, no final do filme, separarem-se, porque os dois franceses permanecem envolvidos na violência política, enquanto o norte-americano permanece fiel à mensagem de amor e de liberdade passional.
Enfim, a grande pergunta: se, como afirma Alain Badiou, o Maio de 1968 foi um final de uma época, que marcou (junto com a revolução cultural chinesa) o consumar-se definitivo de uma grande sucessão de revoluções políticas iniciadas com a Revolução de Outubro, hoje onde as colocamos? Estamos entre aqueles que ainda contam – e com uma alternativa radical – com um capitalismo hegemônico democrático parlamentário, forçados a alienarmo-nos e a agir em vários “sítios de resistência” ou podemos ainda conceber uma intervenção política mais radical?
Este é o verdadeiro legado do sessenta e oito: no coração do sessenta e oito havia uma recusa do sistema liberal – capitalista, um grande NÃO à sua totalidade, mais bem explicitado no famoso slogan: “Procuramos ser realistas, pedimos o impossível!”. A verdadeira utopia é crer que o sistema global existente possa reproduzir-se ao infinito; o único modo de ser verdadeiramente “realista” é pensar que a coisa, no âmbito das coordenadas desse sistema, não possa sempre mostrar-se impossível.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009



Slavoj Zizek: ¿Que hacer? - Entrevista circulo bellas artes (Legendas em Espanhol)



Entrevista com Slavoj Zizek no Roda Viva


Assista a entrevista completa da entrevista de Slavoj Zizek no programa Roda Viva.

Você pode fazer download deste video aqui.



Entrevista da Euronews com Slavoj Zizek



Você pode fazer download deste video aqui

''O comunismo precisa ser reinventado'' (Entrevista)



Para filósofo esloveno Slavoj Zizek,, a curto prazo crise econômica tende a criar coordenação global e a fortalecer o capitalismo. As pessoas perderam seu "mapeamento cognitivo", e está em curso uma disputa, ele diz, para ver qual análise sobre a crise "vai vencer".

O artigo é de John Thornhill, publicado pelo jornal Financial Times e traduzido pelo jornal Folha de S. Paulo, 08-03-2009.

Eis o artigo.

Seja como for que você o veja, não há dúvida de que o filósofo esloveno marxista cult Slavoj Zizek é um polemista intelectual nato. Autor de uma série de livros provocantes sobre política, psicanálise, ideologia e cinema, ele faz palestras surpreendentes em todo o mundo justapondo teoria marxista, psicanálise freudiana e cultura pop.

Zizek é todo charme amarfanhado quando chega ao restaurante Pri Vitezu, no centro da pitoresca capital da Eslovênia, onde nasceu.

Tentamos simplificar nossa vida pedindo algo para comer.

Mas Zizek está perplexo com o misto de cozinha internacional padronizada e especialidades locais eslovenas no cardápio.

"Para explicar em meus termos stalinistas, este restaurante não tem um perfil ideológico claro", ele brinca.
Pergunto a ele sobre a crise financeira, esperando alguma pirotecnia política sobre os estertores de morte do capitalismo. Será que a crise pressagia a revolução? "Não, não, não. Sou um marxista extremamente modesto", ele responde em tom um tanto quanto decepcionante. "Não sou uma pessoa catastrófica. Não estou dizendo que a revolução esteja à espreita na esquina. Tenho plena consciência de que qualquer solução comunista à moda antiga está fora de questão."

Ele insiste, porém, que a crise financeira acabou com a utopia liberal que floresceu após a queda da União Soviética em 1991 e toda a conversa grandiosa sobre o "fim da história". Os ataques terroristas de setembro de 2001 e o derretimento financeiro explodiram o mito segundo o qual a economia de mercado e a democracia liberal têm todas as respostas.

Estado de emergência

No curto prazo, pelo menos, os governos vão introduzir mais regulamentação estatal e coordenação global, fortalecendo o sistema capitalista.

Nesse sentido, ele sugere que o progressista Barack Obama poderá um dia ser incluído no rol dos melhores presidentes conservadores na história dos Estados Unidos.

Mas, diz Zizek, mesmo que o capitalismo seja temporariamente consertado, isso não ajudará em nada a resolver suas contradições inerentes. O alarmante colapso da sociedade levará a novas formas de apartheid e estados de emergência.

Ele destaca a militarização crescente da Itália, onde o governo enviou o Exército a Nápoles para fazer frente à máfia.

E afirma que São Paulo está se metamorfoseando numa versão real do filme "Blade Runner, o Caçador de Androides" (1982). A cidade hoje tem 70 heliportos, e os ricos se deslocam num nível diferente dos pobres.
O capitalismo, ele acredita, é incapaz de solucionar os maiores desafios de hoje: a catástrofe ambiental e os abusos da tecnologia de informação, os direitos de propriedade intelectual e a biogenética. As sociedades precisam inventar novas formas de propriedade e de bens comuns, ou então irão morrer.
"A principal crítica que faço ao capitalismo liberal não é que ele seja prejudicial, mas que não pode durar para sempre. O comunismo precisa ser reinventado", diz Zizek.

Disputa de interpretações

Enquanto mastigamos nossas fartas saladas verdes e nossas carnes deliciosas, Zizek

"O problema hoje é que, quando há caos e desordem, as pessoas perdem seu mapeamento cognitivo. Então é uma disputa aberta para ver qual interpretação vai vencer", diz ele. "Nunca esqueça que foi assim que Hitler venceu."

De acordo com Zizek, a razão pela qual Hitler chegou ao poder nos anos 1930 foi que ele ofereceu a interpretação mais atraente de acontecimentos desastrosos. Ele simplesmente lisonjeou os alemães, afirmando que seu Exército tinha sido traído na Primeira Guerra Mundial e atribuindo toda a culpa por isso aos judeus.

Pedimos uma salada de frutas. Mas será que pessoas como Zizek deveriam estar passando tanto tempo procurando entender o mundo, quando, como insistiu Marx, o xis da questão é mudar o mundo? Zizek, o marxista modesto, diz que os tempos em que vivemos são tão extraordinários que precisamos compreender plenamente o que está acontecendo antes de podermos agir de modo sensato. "Precisamos nos afastar, refletir, pensar", diz ele.

O papel dos filósofos, na visão dele, é ajudar a lançar luz sobre as perguntas que as sociedades deveriam formular, em lugar de apresentar soluções prontas. "Me sinto como um mágico que mostra apenas cartolas, nunca coelhos." comenta que o que o fascina especialmente é a batalha ideológica em torno da interpretação da crise financeira. A ideologia governante procura transferir a culpa do sistema capitalista global, como tal, para seus desvios acidentais -como a regulamentação excessivamente frouxa ou a corrupção das grandes instituições financeiras.

O desejo, ou a traição da felicidade. (Entrevista)



Há muitos anos, o filósofo Slavoj Zizek procura explicar a teoria lacaniana do desejo pela análise da cultura moderna. Por ocasião da publicação de
La marionnette et le Nain. Le christianisme entre perversion et subversion, (A Marionete e o Anão. O cristianismo entre perversão e subversão) que propõe uma releitura provocante do cristianismo "entre perversão e subversão", quisemos interrogá-lo sobre a questão do desejo nos dias atuais. Entre ovos Kinder Surprise e café sem cafeína, nossa época sob o prisma do "pequeno objeto a", do Superego e do "Grande Outro".


Como você se situa em relação à idéia de que nós vivemos numa sociedade em que a maioria de nossos desejos seriam alienados?

Slavoj Zizek - É preciso ser prudente. Toda a temática dos anos 1960, em torno da crítica da "sociedade de consumo", tem sido que nos oferecem pequenas satisfações, pequenos momentos de felicidade, prazeres bobos para nos privar dos "verdadeiros" desejos. Eu creio que esta é uma fórmula demasiado ingênua. Em La Marionette et le Nain, eu falo a respeito dos ovos Kinder Surprise. A maioria das crianças compra ovos Kinder pela surpresa. Eles nem sempre se dão o tempo de comer o chocolate. Trata-se de uma lógica do desejo, e não do consumo. Os ovos Kinder são o modelo de todos esses produtos que nos prometem alguma coisa "a mais" do que aquilo que poderíamos consumir, como essas embalagens em que está escrito: "Numerosos prêmios a ganhar no interior". É preciso, pois, resguardar-se ante uma mitologia que oporia nossos "verdadeiros" desejos e uma sociedade de consumo toda ocupada em aliená-los. Tome uma certa vulgata "deleuziana" de nossos dias: ela desenvolve um modelo que repousa sobre a oposição entre a organização hierárquica, sistemática, o Estado, o "Império", e os fluxos nômades, a "multidão" dos desejos. Mas, o capitalismo atual é precisamente nômade. Por que e como se vai combatê-lo, quando se começou a esquecê-lo? É como esses feministas americanos que atacam a sociedade contemporânea, como se ela ainda repousasse sobre um modelo de autoridade patriarcal. A estrutura subjetiva do capitalismo contemporâneo é precisamente a do sujeito nômade, sem identidade fixa. Então nem se pode dizer que é preciso combatê-lo, porque ele "reterritorializa" os fluxos, os desejos, pois a "reterritorialização" é a própria máquina que desencadeia o dinamismo. Os marxistas já tinham este sonho: manter a estrutura, mas sem o lucro, a mais-valia. Eles queriam desembaraçar-se do obstáculo, mantendo o dinamismo puro, mas eles não viram que eles perdiam o dinamismo junto com o obstáculo.

Então, não estou totalmente de acordo com esse tipo de crítica da "sociedade de consumo". O que permanece em mim, é a idéia de que a felicidade não pode ser uma categoria ética. Eu discutia recentemente com amigos espanhóis. Eles me diziam que tinham gostado muito da descrição, que eu faço em Bienvenue dans le désert du réel [Bem-vindos ao deserto do real, livro traduzido para o português], da "felicidade" na Tchecoslováquia comunista dos anos 1970-1980. Todo o mundo era "feliz" naquela época: as necessidades materiais estavam satisfeitas, embora não completamente, se bem que se podia estar satisfeito com o que se possuía; tudo o que estava mal era imputado ao Outro, ao Partido; e havia também um Outro com o qual sonhar de maneira realista, pois ele não estava muito afastado, o Ocidente consumista. Segundo meus amigos, ocorria exatamente a mesma coisa na Espanha durante os dez últimos anos sob Franco. Existe mesmo uma piada espanhola para responder à questão: "Como era a vida sob Franco? - A vida sob Franco era muito agradável". Não se deveria legitimar uma mudança, dizendo que se vai trazer mais felicidade. A verdadeira mudança política consiste sempre em modificar os próprios parâmetros daquilo que se entende por felicidade.

Isso significa que se deve deixar de ser crítico com relação a esse tipo de sociedade?

Slavoj Zizek - O que seria preciso criticar, é a própria idéia de "consumo". Será que estamos realmente numa sociedade "de consumo"? O modelo da mercadoria é hoje o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, o creme fresco sem gordura. A meu ver, isso significa primeiro que se tem mais medo de consumir verdadeiramente. A gente quer comer, mas sem pagar o preço. Caso se queira criticar a sociedade moderna, não é preciso se agarrar a essa idéia de "consumo". Uma chave mais interessante seria a noção de "vítima". É preciso compreender como isso determina nossa noção de tolerância e nossa relação ao desejo do outro. O que quer dizer atualmente "tolerância"? É simplesmente o inverso da noção de "assédio". E, o que quer dizer "assédio"? Isso quer dizer que o Outro, como sujeito de desejos, não deve se aproximar demasiadamente de mim. Em outros termos, a tolerância é hoje exatamente a intolerância. A figura da subjetividade torna-se completamente narcisista; ela se constitui no temor da proximidade dos outros. Isso me lembra de quando Kierkegaard pergunta: "Quem é o próximo que se deve amar?", e ele responde: "Aquele que está morto".

Este problema do Outro está conexo com o do interdito e de seu papel no funcionamento do desejo?

Sim, mas também aqui é preciso avançar, com prudência. De um lado, há hoje um problema com o fracasso das ordens simbólicas - do "Grande Outro", como diz Lacan. Isso conduz a um regime de interiorização das regras, e então, segundo Freud, a uma hipertrofia do superego. Ora, como Lacan o havia visto bem, o superego funciona como imperativo de gozo e também como interdito. A conseqüência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba, evidentemente, na impossibilidade de gozar, pois o superego exige cada vez mais. Meus amigos psicanalistas me contam que hoje em dia o sentido de culpabilidade de seus pacientes não é mais fundado sobre o interdito, mas sobre esta injunção de gozar, "de aproveitar". Agora, as pessoas não se sentem mais culpadas, quando têm prazeres ilícitos, como antes, mas quando não são capazes de aproveitá-los, quando não chegam a gozar. Mas, de outro lado, não se deve concluir, com certos semi-lacanianos como Pierre Legendre, que seja preciso restabelecer a Lei e a Ordem simbólica como espaço de transgressão. Lacan era grande inimigo do pensamento de Bataille, e isso não somente por razões puramente pessoais: o problema, a seus olhos, é que o desejo se encontra justamente, em Bataille, totalmente edificado sobre a transgressão.

A psicanálise tem aqui um papel essencial a desempenhar. Todos os outros discursos adquirem a forma de injunção para gozar, para buscar a felicidade. Mesmo o Dalai-Lama aderiu! A psicanálise é um discurso que não impede de gozar, mas que permite justamente não gozar. Você pode gozar, mas não sob a forma de uma regra, de uma interiorização "superegoica". Por isso, o pensamento freudiano é mais atual do que nunca. Diz-se hoje por toda a parte, mesmo entre pessoas favoráveis à psicanálise, que Freud está ultrapassado, que ele é filho de uma sociedade burguesa, vitoriana, fundada sobre interditos fortes, que já não têm mais sentido hoje em dia. Mas, seu problema jamais esteve na repressão ou no interdito: ele estava antes no paradoxo de uma permissão que bloqueia o gozo. Não é na atualidade que podemos desembaraçar-nos desta imagem simplista de um Freud que combate a opressão sexual. Todos os freudo-marxistas inteligentes o compreenderam. Por isso, Adorno sempre criticou Reich e sua idéia de uma explosão orgástica.

Em Bienvenue dans le désert du réel [Bem-vindo ao deserto do real] você tem esta fórmula, da qual você diz que ela é característica do que nos ensina a psicanálise: "a traição de desejo tem um nome: a felicidade".

A concepção de Lacan - seu lado hegeliano e mesmo sartreano -, é que o desejo é transcendência, falta, abertura, enquanto o prazer, ou a felicidade, é equilíbrio, homeostase. Deleuze defendeu esta idéia de modo ainda mais radical, quando ele disse que o masoquismo ou o amor cortês eram a manifestação do desejo em estado puro, o desejo que não necessita de satisfação, porque ele já é, por si mesmo, sua própria satisfação. Eu desenvolvi esta idéia em Subversion du sujet (Presses universitaires de Rennes, 1999).

O desejo parece, primeiramente, "patológico", ou seja, suscitado e orientado pelos objetos que nos afetam. Ele não tem a dignidade de um a priori transcendental. A idéia que havia defendido Bernard Baas em seu belíssimo livro: Le Désir pur [O desejo puro] (Le Désir pur. Parcours philosophiques dans lês parages de Lacan, ed. Peeters, Lovaina, 1992), é que Lacan "transcendentalizou" precisamente o desejo. É o projeto de seu célebre texto Kant avec Sade: mostrar que existe uma capacidade do desejo puro que não necessita de uma referência ao objeto" - o que Lacan chama de "o pequeno objeto a"(le petit objet a - torna-se, então, precisamente uma posição estrutural, uma espécie de objeto a priori. Ele serve paradoxalmente para subtrair o desejo de sua vinculação ao objeto, à sua realidade patológica. A ética do desejo é de permanecer fiel a este a priori. Como o diz Lacan: o desejo último é, pois, aquele da não-satisfação do desejo, o desejo de permanecer aberto.

Você não deu solução ao dilema. De um lado, tem-se, pois, o apelo a um restabelecimento da ordem simbólica, da Lei: do outro, a crítica pós-moderna, relativizando as normas e chegando a uma interiorização que finalmente bloqueia o gozo, erigindo a ele próprio em norma suprema. Mas, o que mais se poderia ter?

Slavoj Zizek - Eu creio que o próprio Lacan não encontrou a fórmula. Em Freud há uma concepção da civilização como produto do crime original. A sociedade se transforma em comunidade no crime, no assassinato do Pai. É o modelo que se encontra em Totem e Tabu. A questão é: existe um outro modo de socialização, além da relação a uma ordem simbólica? Este é também o problema da ética psicanalítica. Há um Lacan de quem não gosto. É aquele que diz que o fim da experiência analítica é a "travessia do fantasma", vivida como experiência intensiva, excepcional. Depois, só se poderá retornar ao espaço social e simplesmente "jogar o jogo", com mais ironia. O problema, para mim, é que esta postura é precisamente aquela à qual induz o capitalismo contemporâneo. A psicanálise precisa dar-se conta que a posição antiga, na qual a sociedade carrega os interditos e o inconsciente as pulsões desregradas, está hoje invertido: é a sociedade que é hedonista, desregrada, e o inconsciente que regula.

Vê-se muito bem com o estatuto das crenças, que me interessam particularmente em La Marionette et le Nain: hoje se quer bem crer, mas por meio dos outros, de maneira distanciada. Conta-se esta história a propósito de Niels Bohr: um amigo que o visitava, viu presa à porta uma ferradura de cavalo. Ele lhe comunicou seu espanto em face de tal marca de superstição. E Bohr teve esta resposta: "Sem dúvida não creio nisso, mas me disseram que isso funciona mesmo que não se creia nisso". Para mim, este é o arquétipo da crença moderna. Todos os meus amigos judeus dizem: "Não se come carne de porco, mas, certamente não se crê nisso". Trata-se de uma crença objetivada, o que se chama hoje em dia de uma "cultura".

Isso ainda não nos dá resposta ao dilema...

Slavoj Zizek - Eu creio que o exemplo de solução foi dado pelos esforços de Lacan para fundar uma sociedade analítica. Num sentido, trata-se de um fiasco total, mas a idéia estava aí: construir um espaço social, onde não se estaria reunido apenas pela figura do Pai, do Mestre, mas pelo objeto do próprio desejo. A aposta é que o campo social não é somente um domínio de ilusões, de aparências, em que só se pode jogar o jogo - a única diferença sendo a de saber se o mesmo é levado a sério ou se é feito de maneira irônica. Será que se poderia criar um espaço social que não tivesse necessidade de fantasma, de "significante-mestre"? Foi isso que meu deu a idéia, após a leitura de Alain Badiou (Saint Paul, La fondation de luniversalisme, ed. PUF, Les Essais du Collège international de philosophie , 1997), de que se tem um exemplo desse projeto em São Paulo, na idéia de "comunidade dos crentes" (Sobre a recepção de Paulo no Ocidente e sobre o livro de Badiou, confira a edição da revista IHU On-Line publicada em abril deste ano e disponível nesta página). O outro exemplo em que se pode pensar encontra-se em certos partidos revolucionários. É uma via média entre o individualismo hedonista e o retorno a um modelo autoritário. Como Badiou mostrou de um modo que me parece convincente, este tem sido precisamente o problema de Paulo. De um lado, o sistema judeu, fundado sobre a Lei; do outro, o individualismo romano. Toda a questão é a de construir a "comunidade dos crentes", como terceira possibilidade.

Eu creio que é preciso aceitar este risco, ou desafio, de que a Lei não é o último horizonte. Aqui se deve ir mais longe do que aqueles que procuram relativizar a mensagem de Paulo. Para eles, tratar-se-ia simplesmente de dizer que, quando se está no amor de Cristo, não se tem necessidade da Lei, porque se faz o que diz a Lei naturalmente. É a versão humanista. Mas, ela mascara simplesmente o lado horrível da proposição. Santo Agostinho diz: "Se tu amas Deus, tu podes fazer o que tu queres". Uma vez, ele esquece mesmo "Deus": "Ama, e podes fazer o que tu queres". É um risco, ou desafio, a enfrentar. Há um momento de suspensão do regime da Lei. Para mim, é esta a perspectiva do último Lacan.

O que acontece quando nada acontece.



“O que acontece é o trabalho, lento mas constante, de tirar a terra dos palestinos da Cisjordânia: o estrangulamento gradual da economia palestina, o deslocamento de suas terras, a construção de novos assentamentos, as pressões sobre os camponeses palestinos até que acabem abandonando a sua terra (que vão desde a queimada das colheitas e das profanações religiosas até os assassinatos individuais), tudo isso respaldado por uma rede kafkiana de normativas legais”, escreve Slavoj Zizek em artigo publicado no jornal espanhol El País, 22-08-2009. A tradução é do Cepat.


No dia 02 de agosto de 2009, após isolar parte do bairro árabe de Sheikh Jarrah em Jerusalém Oriental, a polícia israelense expulsou duas famílias de palestinos (mais de 50 pessoas) de suas casas e permitiu que alguns colonos judeus se mudassem imediatamente para as casas desocupadas. A polícia alegou estar cumprindo uma ordem do Tribunal Supremo do país, mas o fato é que as famílias árabes expulsas estavam vivendo aí há mais de 50 anos. O fato, que chamou a atenção da mídia mundial – coisa excepcional –, faz parte de um processo muito mais amplo e, em sua maior parte, ignorado.

Cinco meses antes, em 11 de março de 2009, informou-se que o Governo israelense havia elaborado planos para construir mais de 70.000 novas casas dentro de assentamentos judaicos na Cisjordânia; se esses planos forem levados a cabo, seria possível aumentar o número de colonos nos territórios palestinos em cerca de 300.000, um passo que não apenas inviabilizaria gravemente as possibilidades de um Estado palestino viável, como tornaria mais difícil a vida diária dos palestinos.

Um porta-voz do Governo desmentiu as informações e disse que os planos tinham uma importância relativa: para construir novas casas nos assentamentos era necessário a aprovação do ministro da Defesa e do Primeiro-ministro. No entanto, já foram aprovados 15.000 desses planos, e quase 20.000 das moradias previstas se encontram em assentamentos que estão longe da linha verde que separa Israel da Cisjordânia, ou seja, nas zonas que Israel não pode aspirar conservar em nenhum futuro acordo de paz com os palestinos.

A conclusão é evidente: ao mesmo tempo que, teoricamente, apóia a solução dos dois Estados, Israel está criando uma situação que na prática inviabiliza esta solução. O sonho sobre o qual se apóia esta estratégia fica patente no muro que separa a cidade de colonos da cidade palestina próxima a uma colina da Cisjordânia. O lado israelense do muro está pintado com a imagem da campina do outro lado, mas sem a cidade palestina e apenas com a natureza, a grama, as árvores... Não é o mais puro exemplo de limpeza étnica, imaginar o outro lado do muro assim como deveria ser, vazio, virgem, esperando ser colonizado?

O que significa tudo isto? Para captar a verdadeira dimensão das notícias, às vezes basta ler duas notícias em separado; o significado surge ao uni-las, como uma faísca que explode em um curto-circuito elétrico. No mesmo dia em que chegaram aos meios de comunicação notícias sobre o plano do Governo para construir 70.000 novas casas (2 de março), a Hillary Clinton

Teriam que permanecer passivos os palestinos enquanto lhes tiram as terras da Cisjordânia

O que acontece é o trabalho, lento mas constante, de tirar a terra dos palestinos da Cisjordânia: o estrangulamento gradual da economia palestina, o deslocamento de suas terras, a construção de novos assentamentos, as pressões sobre os camponeses palestinos até que acabem abandonando a sua terra (que vão desde a queimada das colheitas e das profanações religiosas até os assassinatos individuais), tudo isso respaldado por uma rede kafkiana de normativas legais.

Em Palestine Inside out: An Everyday Occupation, Saree Makdisi afirma que, mesmo que a ocupação israelense da Cisjordânia esteja nas mãos da Forças Armadas, na realidade é uma “ocupação mediante a burocracia”: suas armas fundamentais são os formulários, os títulos de propriedade, os documentos de residência e outras licenças. Esta micro-gestão da vida diária é a que garante a lenta mas firme expansão israelense. Tem de se pedir licença para visitar a família, para cultivar a terra, para cavar um poço, para trabalhar, para ir à escola ou a um hospital... Assim, os palestinos nascidos em Jerusalém perdem, um após outro, o direito de viver ali, de ganhar a vida, a moradia, e assim sucessivamente.

Os palestinos costumam empregar o problemático clichê de que a Faixa de Gaza é “o maior campo de concentração do mundo”, mas, no último ano, essa qualificação se aproximou perigosamente da verdade. Essa é a realidade fundamental que faz com que todas as “orações pela paz”, em abstrato, sejam escandalosas e hipócritas. O Estado de Israel está claramente implementando um processo lento e invisível ignorado pela mídia, uma espécie de luta subterrânea contra um topo, de tal forma que, um dia, o mundo acordará e verá que já não há mais uma Cisjordânia palestina, que a terra está livre de palestinos, e que não temos outro remédio senão aceitar os fatos. O mapa da Cisjordânia palestina já parece um arquipélago fragmentado.

Nos últimos meses de 2008, quando os ataques de colonos ilegais da Cisjordânia contra camponeses palestinos se tornaram diários, o Estado de Israel tratou de condenar os excessos (o Tribunal Supremo ordenou a evacuação de alguns assentamentos, por exemplo); mas, como advertiram muitos observadores, é inevitável ver essas ações como medidas pouco sérias para neutralizar uma política que, no fundo, é a política de longo prazo do Estado israelense, e que viola de forma incrível os tratados internacionais. O que os colonos ilegais dizem às autoridades israelenses é: estamos fazendo o mesmo que vocês, só que de forma mais aberta, de modo que: que direito vocês têm para nos condenar? E a resposta do Estado, definitivamente, é: sejam pacientes, não se apressem, estamos fazendo o que vocês querem, só que de maneira mais moderada e aceitável...

E a história se repete desde 1949: Israel, ao mesmo tempo que aceita as condições de paz propostas pela comunidade internacional, conta com o fato de que o plano de paz não vai funcionar. Os colonos descontrolados, às vezes, lembram Brunhilda no último ato de ValquíriaWagner, quando joga na cara de Wotan que, ao desobedecer a sua ordem explícita e proteger Siegmund, estava apenas tornando realidade os desejos dele, que se viu obrigado a renunciar a eles por pressões externas, como os colonos ilegais tornam realidade os verdadeiros desejos do Estado aos quais teve que renunciar por pressões da comunidade internacional. Enquanto condena os excessos violentos descarados dos assentamentos “ilegais”, o Estado israelense promove novos assentamentos “legais” na Cisjordânia e segue estrangulando a economia palestina.

Um olhar sobre o mapa mutante da Jerusalém Oriental, onde os palestinos estão cada vez mais encurralados e veem o seu espaço recortado, é suficientemente significativo. A condenação da violência anti-palestina alheia ao Estado oculta o verdadeiro problema da violência de Estado; a condenação dos assentamentos ilegais oculta a ilegalidade dos legais. Aí está a dupla medida da louvada – por imparcial – “honestidade” do Tribunal Supremo israelense: a base de ditar de vez em quando uma sentença a favor dos palestinos despossuídos e qualificar a sua expulsão de ilegal, garante a legalidade da maioria dos casos restantes.

E, para evitar qualquer mal-entendido, que fique claro que levar tudo isto em conta não implica, em absoluto, mostrar “compreensão” com os inescusáveis atos terroristas. Pelo contrário, oferece a única base a partir da qual é possível condenar os atentados terroristas sem hipocrisia.


Retirado de: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=25132
criticou o lançamento de foguetes de Gaza e qualificou o ato como “cínico”, para depois acrescentar: “Não há dúvida de que nenhum país, inclusive Israel, pode permanecer passivo quando seu território e sua gente sofrem ataques com mísseis”. diariamente? Quando os pacifistas israelenses apresentam o seu conflito com os palestinos em termos neutros e “simétricos” e reconhecem que em ambas as partes há extremistas que rechaçam a paz, deveríamos fazer-nos uma pergunta simples: o que acontece no Oriente Próximo quando não acontece nada no plano diretamente político-militar, isto é, quando não há tensões, ataques nem negociações? de

O Tibete não é tudo isso

As notícias publicadas em toda a mídia nos impõem uma imagem determinada que é mais ou menos como segue. A República Popular da China, que, nos idos de 1949, ocupou ilegalmente o Tibete, durante décadas promoveu a destruição brutal e sistemática não apenas da religião tibetana, mas também da própria identidade dos tibetanos como povo livre. Os protestos recentes do povo tibetano contra a ocupação chinesa foram novamente sufocados com força policial e militar bruta. Como a China está organizando os Jogos Olímpicos de 2008, é dever de todos nós que amamos a democracia e a liberdade pressionarmos a China para devolver aos tibetanos aquilo que ela lhes roubou; não se pode permitir que um país que possui um histórico tão deficiente em matéria de direitos humanos passe uma mão de cal sobre sua imagem com a ajuda do nobre espetáculo olímpico. O que farão nossos governos? Vão ceder ao pragmatismo econômico, como de costume, ou encontrarão a força necessária para colocar nossos mais elevados valores éticos e políticos acima dos interesses econômicos de curto prazo? Embora a atividade chinesa no Tibete sem dúvida tenha incluído muitos atos de destruição e terror assassino, existem muitos aspectos dela que destoam dessa imagem simplista de “mocinhos versus vilões”. Enumero, a seguir, nove pontos a serem mantidos em mente por qualquer pessoa que faça um julgamento sobre os fatos recentes no Tibete. Poder protetor 1) Não é fato que até 1949 o Tibete era um país independente, que então foi repentinamente ocupado pela China. A história das relações entre eles é longa e complexa, e em muitos momentos a China exerceu o papel de poder protetor. O próprio termo “dalai-lama” é testemunho dessa interação: reúne o “dalai” (oceano) mongol e o “bla-ma” tibetano. 2) Antes de 1949, o Tibete não era nenhum Xangri-Lá, mas um país dotado de feudalismo extremamente rígido, miséria (a expectativa média de vida pouco passava dos 30 anos), corrupção endêmica e guerras civis (sendo que a última, entre duas facções monásticas, ocorreu em 1948, quando o Exército Vermelho já batia às portas do país). Por temer a insatisfação social e a desintegração, a elite governante proibia o desenvolvimento de qualquer tipo de indústria, de modo que cada pedaço de metal usado tinha que ser importado da Índia. Mas isso não impedia a elite de enviar seus filhos para estudar em escolas britânicas na Índia e transferir seus ativos financeiros a bancos britânicos, também na Índia. 3) A Revolução Cultural que devastou os mosteiros tibetanos na década de 1960 não foi simplesmente “importada” dos chineses: na época da Revolução Cultural, menos de cem guardas vermelhos foram ao Tibete, de modo que as turbas de jovens que queimaram mosteiros foram compostas quase exclusivamente de tibetanos. 4) No início dos anos 1950, começou um longo, sistemático e substancial envolvimento da CIA na incitação de distúrbios anti-China no Tibete, de modo que o receio chinês de tentativas externas de desestabilizar o Tibete não era, de modo algum, “irracional”. 5) Como demonstram as imagens veiculadas pela TV, o que está acontecendo agora nas regiões tibetanas já não é mais um protesto “espiritual” pacífico de monges (como o que aconteceu em Mianmar um ano atrás), mas (também) bandos de pessoas matando imigrantes chineses comuns e incendiando suas lojas. Logo, devemos avaliar os protestos tibetanos segundo os mesmos critérios com os quais julgamos outras manifestações violentas: se tibetanos podem atacar imigrantes chineses em seu próprio país, por que os palestinos não podem fazer o mesmo com colonos israelenses na Cisjordânia? 6) É fato que a China fez grandes investimentos no desenvolvimento econômico do Tibete e em sua infra-estrutura, educação, saúde etc. Para explicar em termos simples: apesar de toda a opressão inegável, nunca, em toda sua história, os tibetanos medianos desfrutaram de um padrão de vida comparável ao que têm hoje. 7) Nos últimos anos, a China vem mudando sua estratégia no Tibete: a religião despida de política hoje é tolerada e mesmo apoiada. Mais do que na pura e simples coação militar. Em suma, o que escondem as imagens veiculadas pela mídia de soldados e policiais chineses brutais espalhando o terror entre monges budistas é a muito mais eficaz transformação socioeconômica em estilo americano: dentro de uma ou duas décadas, os tibetanos estarão reduzidos à situação dos indígenas americanos nos EUA. Parece que os comunistas chineses finalmente entenderam a lição: de que vale o poder opressor de polícias secretas, campos e guardas vermelhos destruindo monumentos antigos, comparado ao poder do capitalismo sem freios, quando se trata de enfraquecer todas as relações sociais tradicionais? Ideologia “new age” 8) Uma das principais razões por que tantas pessoas no Ocidente tomam parte nos protestos contra a China é de natureza ideológica: o budismo tibetano, habilmente propagado pelo dalai-lama, é um dos pontos de referência da espiritualidade hedonista “new age”, que está rapidamente se convertendo na forma predominante de ideologia nos dias atuais. Nosso fascínio pelo Tibete o converte numa entidade mítica sobre a qual projetamos nossos sonhos. Assim, quando as pessoas lamentam a perda do autêntico modo de vida tibetano, não estão, na verdade, preocupadas com os tibetanos reais. O que querem dos tibetanos é que sejam autenticamente espirituais por nós, em lugar de nós mesmos o sermos, para continuarmos a jogar nosso desvairado jogo consumista. O filósofo francês Gilles Deleuze [1925-75] escreveu: “Se você está preso no sonho de outro, está perdido”. Os manifestantes que protestam contra a China estão certos quando contestam o lema olímpico de Pequim, “Um mundo, um sonho”, propondo em lugar disso “um mundo, muitos sonhos”. Mas eles devem tomar consciência de que estão prendendo os tibetanos em seu próprio sonho, que é apenas um entre muitos outros. 9) Para concluir, a dimensão realmente nefasta do que vem acontecendo hoje na China está em outra parte. Diante da atual explosão do capitalismo na China, os analistas freqüentemente indagam quando vai se impor a democracia política, o acompanhamento político “natural” do capitalismo. Essa questão com freqüência assume a forma de outra pergunta: até que ponto o desenvolvimento chinês teria sido mais rápido se fosse acompanhado de democracia política? Mas será que isso é verdade? Numa entrevista há cerca de dois anos, [o sociólogo] Ralf Dahrendorf vinculou a crescente desconfiança com que a democracia vem sendo vista nos países pós-comunistas do Leste Europeu ao fato de que, após cada mudança revolucionária, a estrada que conduz à nova prosperidade passa por um “vale de lágrimas”. Ou seja, após o colapso do socialismo não se pode passar diretamente para a abundância de uma economia de mercado bem-sucedida: o sistema socialista limitado, porém real, de bem-estar e segurança precisou ser desmontado, e esses primeiros passos são necessariamente dolorosos. Vale de lágrimas O mesmo se aplica à Europa Ocidental, onde a passagem do Estado de Bem-Estar Social para a nova economia global envolve renúncias dolorosas, menos segurança e menos atendimento social garantido. Para Dahrendorf, o problema é resumido pelo fato de que essa dolorosa passagem pelo “vale de lágrimas” dura mais tempo que o período médio entre eleições (democráticas), de modo que é grande a tentação de adiar as transformações difíceis, optando por ganhos eleitorais de curto prazo. Não surpreende que os países mais bem-sucedidos do Terceiro Mundo, em termos econômicos (Taiwan, Coréia do Sul, Chile), tenham adotado a democracia plena só após um período de governo autoritário. Esse raciocínio não seria o melhor argumento em defesa do caminho chinês em direção ao capitalismo, em oposição à via seguida pela Rússia? Seguindo o caminho percorrido pelo Chile e a Coréia do Sul, os chineses usaram o poder irrestrito do Estado autoritário para controlar os custos sociais da passagem para o capitalismo, desse modo evitando o caos. Em suma, uma combinação esdrúxula de capitalismo e governo comunista, longe de ser uma anomalia ridícula, mostrou ser uma bênção (nem sequer) disfarçada: a China se desenvolveu na velocidade em que o fez não apesar do governo comunista autoritário, mas devido a ele. E se aqueles que se preocupam com a falta de democracia na China estiverem na realidade preocupados com o desenvolvimento acelerado da China, que faz dela a próxima superpotência global, ameaçando a primazia do Ocidente? Há mesmo um outro paradoxo em ação aqui: e se a prometida segunda etapa democrática que vem após o vale de lágrimas autoritário nunca chegar? É isso, possivelmente, que é tão perturbador na China de hoje: a idéia de que seu capitalismo autoritário talvez não seja apenas um resquício de nosso passado, a repetição do processo de acúmulo capitalista que se desenrolou na Europa entre os séculos 16 e 18, mas sim um sinal do futuro. E se “a combinação agressiva entre o chicote asiático e o mercado acionário europeu” se mostrar economicamente mais eficiente que nosso capitalismo liberal? E se ela assinalar que a democracia, tal como a conhecemos, não é mais condição e motor do desenvolvimento econômico, e sim um obstáculo a ele? Folha de São Paulo, em 13/04/2008

Irã: será que o gato vai cair do precipício?



Quando um regime autoritário se aproxima da sua crise final, sua dissolução normalmente segue dois passos. Antes do seu colapso real, acontece uma misteriosa ruptura: subitamente as pessoas sabem que o jogo acabou, deixam simplesmente de ter medo. Não é só que o regime perde a sua legitimidade; o seu próprio exercício de poder é entendido como uma impotente reação de pânico. Todos nós conhecemos a clássica cena dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício, porém, continua a andar, ignorando o fato de que deixou de existir chão debaixo das suas patas, mas só começa a cair quando olha para baixo e toma consciência do abismo: para cair, ele só tem de se lembrar de olhar para baixo...
Em Xá dos xás, um relato clássico da revolução de Khomeini, Ryszard Kapuscinski localizou o preciso momento da sua ruptura: num cruzamento de Teerã, um único manifestante recusou-se a mexer-se quando um policial lhe ordenou que andasse; embaraçado, o oficial simplesmente foi-se embora. Em poucas horas, toda Teerã soube deste incidente e, apesar de continuarem os combates de rua durante semanas, todos sabiam de alguma forma que o jogo acabara. Está acontecendo algo de semelhante agora?
Há muitas versões para os eventos em Teerã. Alguns vêem nos protestos a culminação de um "movimento de reformas" pró-ocidental, seguindo as características das revoluções ‘laranja’ na Ucrânia, Geórgia etc., uma reação laica à revolução de Khomeini. Apóiam os protestos como o primeiro passo para um Irã secular, liberal-democrático, livre do fundamentalismo muçulmano. São contraditados por céticos que pensam que Ahmadinejad venceu mesmo, que é a voz da maioria, enquanto o apoio a Moussavi vem das classes médias e da sua juventude dourada. Em resumo: deixemos cair as ilusões e enfrentemos o fato de que Ahmadinejad é o presidente que o Irã merece. Depois há os que desvalorizam Moussavi, como membro do regime clerical com diferenças meramente cosméticas em relação a Ahmadinejad: Moussavi também quer continuar o programa de energia atômica, está contra o reconhecimento de Israel e além disso contou com o pleno apoio de Khomeini como primeiro-ministro nos anos da guerra com o Iraque.
Finalmente, os mais tristes de todos são os apoiadores de esquerda de Ahmadinejad: para eles, o que está realmente em causa é a independência iraniana. Ahmadinejad venceu porque ergueu a bandeira da independência do país, expôs a corrupção da elite e usou a riqueza do petróleo para aumentar os rendimentos da maioria pobre - este é, dizem-nos, o verdadeiro Ahmadinejad atrás da imagem dos meios ocidentais de um fanático que nega o Holocausto. De acordo com esta visão, o que realmente está acontecendo hoje no Irã é uma repetição da derrubada de Mossadegh - um golpe financiado pelo Ocidente contra o presidente legítimo. Esta visão ignora fatos: a alta participação eleitoral - de 85%, muito mais que os habituais 55% - só pode ser explicada como voto de protesto. Mas também demonstra a cegueira diante de uma genuína manifestação da vontade popular, assumindo complacentemente que, para os atrasados iranianos, Ahmadinejad é suficientemente bom - eles ainda não estão suficientemente maduros para serem governados por uma esquerda laica.
Opostas como são, todas estas versões lêem os protestos segundo o eixo da linha-dura islâmica versus os reformistas liberais pró-Ocidente, e é por isso que têm tanta dificuldade para localizar Moussavi: ele é um reformador apoiado pelo Ocidente que quer mais liberdade pessoal e economia de mercado ou um membro do establishment clerical cuja eventual vitória não afetaria de qualquer forma séria a natureza do regime? Essas oscilações extremas demonstram que tais visões não conseguem ver a verdadeira natureza destes protestos.
A cor verde adotada pelos apoiadores de Moussavi, os gritos de "Alá akbar!" que ressoam dos telhados de Teerã na escuridão da noite, indicam claramente que os seus protagonistas vêem a sua atividade como uma repetição da revolução de Khomeini de 1979, como um regresso às origens, a reversão da recente corrupção da revolução. Este regresso às origens não é só programático; diz mais respeito ainda ao modo de atividade das multidões: a enfática unidade do povo, a sua abrangente solidariedade, auto-organização criativa, a improvisação das formas de organizar os protestos, a mistura única de espontaneidade e de disciplina, como na impressionante marcha de milhares em completo silêncio. Trata-se de um genuíno levante popular dos ludibriados partidários da revolução de Khomeini.
Há algumas conseqüências cruciais a retirar desta percepção. Em primeiro lugar, Ahmadinejad não é o herói dos pobres islamistas, mas um genuíno populista corrupto islamo-fascista, uma espécie de Berlusconi, cuja mistura de postura ridícula e rude poder político causa desconforto mesmo entre a maioria dos aiatolás. A sua demagógica distribuição de migalhas aos pobres não nos deveria iludir: atrás dele não estão só os órgãos da repressão policial e um aparelho de Relações Públicas bastante ocidentalizado, mas também uma forte e nova classe rica, resultado da corrupção do regime (a Guarda Revolucionária do Irã não é uma milícia da classe operária, mas uma megacorporação, o mais forte centro de riqueza no país).
Em segundo lugar, deveríamos traçar uma clara diferença entre os dois principais candidatos opostos a Ahmadinejad, Mehdi Karroubi e Moussavi. Karroubi é efetivamente um reformista, propondo basicamente a versão iraniana das políticas de identidade, prometendo favores a todos os grupos particulares. Moussavi é algo inteiramente diferente: o seu nome representa a ressurreição genuína do sonho popular que sustentou a revolução de Khomeini. Mesmo se este sonho era uma utopia, deveríamos reconhecer na genuína utopia a própria revolução. O que isto quer dizer é que a revolução de Khomeini de 1979 não pode ser reduzida a uma tomada de poder da linha-dura islamista, foi muito mais que isso.
Agora é o momento de recordar a incrível efervescência do primeiro ano depois da revolução, com a esfuziante explosão de criatividade social e política, experiências de organização e debates entre os estudantes e o povo comum. O próprio fato de esta explosão ter sido sufocada demonstra que a revolução de Khomeini foi um evento político autêntico, uma abertura momentânea que desencadeou forças desconhecidas de transformação social, um momento em que "tudo parecia possível". O que se seguiu foi um fechamento gradual através da tomada do controle político pelo establishment islâmico. Para usar termos freudianos, o movimento de protestos de hoje é o "regresso dos reprimidos" da revolução de Khomeini.
E, por último, mas não menos importante, o que isto significa é que há um genuíno potencial libertador no Islã - para encontrar um "bom" Islã não é preciso ir ao século X, temo-lo aqui mesmo, na frente dos nossos olhos.
O futuro é incerto - com todas as probabilidades, os que estão no poder vão conter a explosão popular, e o gato não vai cair no precipício, mas voltar a ter chão. Contudo, já não será o mesmo regime, mas apenas um poder autoritário e corrupto no meio de tantos outros. Qualquer que seja o desenlace, é decisivo ter em conta que estamos testemunhando um grande evento emancipatório que não cabe no enquadramento da luta entre liberais pró-ocidentais e fundamentalistas anti-ocidentais. Se o nosso pragmatismo cínico nos fizer perder a capacidade de reconhecer esta dimensão emancipatória, então nós, no Ocidente, estaremos efetivamente entrando numa era pós-democrática, preparando-nos para os nossos próprios Ahmadinejads. Os italianos já têm o seu nome: Berlusconi. Outros esperam na fila.


Publicado originalmente em Support for the Iranian People 2009.

Tradução de Luis Leiria, editor do site Esquerda.net, de onde o texto foi retirado.

Texto retirado de: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/3467/9/

De história e consciência de classe e dialética do esclarecimento, e volta.



RESUMO
A publicação deste polêmico artigo é uma homenagem de Lua Nova aos oitenta anos de História e Consciência de Classe, de Georg Lukács. Seu autor faz um resgate do jovem Lukács, identificando os pressupostos e idéias que tornam esse livro de 1923 não tanto filosoficamente, mas politicamente, um feito revolucionário, em sintonia com o ''Evento de 1917'' na Rússia. Zizek entende que é justamente seu teor político, o qual aponta para uma crítica radical dos regimes liberal-democráticos predominantes no Ocidente, que o mantém atual, nesse sentido ultrapassando os limites auto-impostos dos autores da Dialética do esclarecimento.
Palavras-Chave: Lukács; revolução russa; Escola de Frankfurt.

ABSTRACT
The publication of this polemic article is a Lua Nova homage to the eightieth year of Georg Lukács's History and Class Consciousness. Its author rescues the young Lukács, spotting the premisses and ideas that made this book not so much philosophically, but politically, a revolutionary accomplishment, in tune with the ''Event of 1917'' in Russia. Zizek thinks that it is precisely its political content, which points to a radical critique of the liberal-democratic regimes prevailing in the West, that keeps its importance in our time, in this sense overcoming the limits that the authors of The Dialectic of Enlightenment imposed to themselves.
Keywords: Lukács; Russian revolution; Frankfurt School.


História e consciência de classe (1923), de Georg Lukács, é um dos poucos verdadeiros eventos na história do marxismo. Hoje, nossa experiência do livro é apenas como de uma estranha lembrança fornecida por uma época já distante – para nós, é até mesmo difícil imaginar o impacto verdadeiramente traumático que seu aparecimento teve nas posteriores gerações de marxistas. O próprio Lukács, na sua fase termidoriana, i. e., do começo dos anos trinta em diante, tentou desesperadamente se afastar dele, tratando-o como um documento com mero interesse histórico. Aceitou que fosse reeditado apenas em 1967, fazendo-o acompanhar de um novo e longo Prefácio autocrítico. O livro teve, até que essa reedição ''oficial'' aparecesse, uma espécie de existência fantasmagórica e subterrânea como uma entidade ''não morta'', que circulava em edições piratas entre estudantes alemães da década de sessenta, estando também disponível em poucas e raras traduções (como a legendária edição francesa de 1959). No meu próprio país, a agora defunta Iugoslávia, referir-se a História e consciência de classe servia como um signe de reconnaissance ritualístico para saber se se fazia parte do círculo marxista crítico reunido em torno da revista Praxis. Seu ataque à noção de Engels de ''dialética da natureza'' foi crucial para a rejeição crítica da crença que a proposição central do ''materialismo dialético'' seria a teoria do conhecimento ''reflexiva''. O impacto do livro esteve longe de se restringir a círculos marxistas: mesmo Heidegger foi claramente afetado por História e consciência de classe, havendo alguns sinais inconfundíveis disso em O ser e o tempo. Até no último parágrafo, o autor, numa clara reação à crítica de Lukács à ''reificação'', pergunta: ''há muito tempo sabemos que existe o perigo da 'reificação da consciência'. Mas o que significa reificação [verdinglichung]? Qual é sua origem?... A 'diferença' entre 'consciência' e 'coisa' é o bastante para haver um desenvolvimento pleno do problemaontológico?''1 Como, então, História e consciência de classe passou a ter um status de livro proibido quase-mítico, cujo impacto foi talvez comparável apenas ao de Pour Marx, escrito pelo posterior grande antípoda anti-hegeliano de Lukács, Louis Althusser?2 A resposta que primeiro vem à mente é evidentemente que estamos discutindo o texto fundador de todo o marxismo ocidental de inspiração hegeliana. Nessa linha, o livro combina uma postura revolucionária engajada com temas que foram mais tarde desenvolvidos pelas diferentes linhas da chamada Teoria Crítica chegando até os Estudos Culturais de nossos dias (por exemplo, a noção de que seriam componentes estruturais de toda a vida social o ''fetichismo da mercadoria'', a ''reificação'' e a ''razão instrumental'' etc). No entanto, olhando mais de perto, as coisas aparecem numa luz ligeiramente diferente: há uma quebra radical entre História e consciência de classe (mais precisamente, entre os trabalhos de Lukács escritos em torno de 1915 a 1930, inclusive seu Lenin de 1925, e uma série de outros textos curtos desse período publicados nos anos sessenta sob a rubrica Ética e política), e a posterior tradição do marxismo ocidental. O paradoxo (ao menos, para nossa sensibilidade ''pós-política'' ocidental) é que História e consciência de classe é um livro filosoficamente muito sofisticado, comparável às maiores realizações do pensamento não-marxista do período, ao mesmo tempo que também está inteiramente envolvido nas lutas políticas de seu tempo, refletindo a radical experiência política leninista do autor (entre outras coisas, Lukács foi comissário da cultura na curta experiência do governo comunista da Hungria de Bela Kun em 1919). O paradoxo é que, em comparação com o marxismo ocidental ''padrão'' da Escola de Frankfurt, História e consciência de classe é ao mesmo tempo muito mais engajado politicamente como filosoficamente é muito mais marcadamente hegeliano-especulativo (veja, por exemplo, a noção do proletariado como sujeito e objeto da história, idéia com a qual os membros da Escola de Frankfurt nunca sentiram-se confortáveis). Se é que houve algum dia um filósofo do leninismo e do Partido Leninista, o Lukács marxista dos primeiros dias foi quem avançou mais longe nessa direção, chegando a defender os elementos ''não democráticos'' do primeiro ano do regime soviético contra a famosa crítica de Rosa Luxemburgo. O crítico acusou a revolucionária de ''fetichizar'' a democracia formal, ao invés de tratá-la como uma das possíveis estratégias a ser utilizadas ou rejeitadas a fim de fazer avançar a situação revolucionária concreta. Atualmente, aquilo que mais se deve evitar é precisamente esquecer o aspecto político do livro, o que corresponderia a reduzir Lukács a um respeitável crítico cultural, que nos adverte sobre a ''reificação'' e a ''razão instrumental'', motivos que já foram há um bom tempo apropriados até mesmo pelos críticos conservadores da ''sociedade do consumo''. Como texto fundador do marxismo ocidental, História e consciência de classe é uma exceção que, entretanto, mais uma vez, confirma a idéia de Schelling de que ''o início é a negação daquilo que se inicia com ele''. No que se baseia essestatus excepcional? Em meados dos anos vinte, aquilo que Alain Badiou chama de ''evento de 1917'' começou a exaurir seu potencial revolucionário, ao mesmo tempo que o processo tomava uma viragem termidoriana. Com a exaustão da ''sequência revolucionária de 1917'' (Badiou), já não era mais possível um engajamento teórico-político direto, como o que aparece em História e consciência de classe de Lukács. O movimento socialista definitivamente rachou entre o reformismo parlamentar social-democrata e a nova ortodoxia stalinista, enquanto o marxismo ocidental, que se absteve de apoiar abertamente qualquer um dos dois pólos, abandonou o envolvimento político direto e tornou-se uma parte da máquina acadêmica existente, estabelecendo, a partir daí, uma tradição que vai da Escola de Frankfurt até os atuais Estudos Culturais. Aí está a principal diferença que separa essa tradição do Lukács da década de vinte. Por outro lado, a filosofia soviética foi gradualmente assumindo a forma de ''materialismo dialético'', funcionando como a ideologia de legitimação do ''socialismo realmente existente'' – é mesmo sinal da ascensão da ortodoxia soviética termidoriana os violentos ataques desferidos contra Lukács e seu companheiro teórico Karl Korsch, cujo Marxismo e filosofia é uma espécie de peça de acompanhamento à História e consciência de classe, ambos publicados em 1923. O momento de viragem foi o quinto congresso do Comintern de 1924, o primeiro congresso após a morte de Lênin, e também o primeiro a transcorrer depois que ficou claro que a onda revolucionária tinha se exaurido na Europa e que o socialismo russo teria que sobreviver por conta própria. Na sua famosa intervenção nesse congresso, Zinoviev fez questão de desferir um ataque antiintelectualista e de fácil apelo contra os desvios ''ultra-esquerdistas'' de Lukács, Korsch e outros ''professores'', como depreciativamente referiu-se a eles, apoiando, assim, a crítica de Laszlo Rudas, companheiro de Lukács no partido húngaro, contra seu ''revisionismo''. Mais tarde, as principais críticas a Lukács e Korsch passaram a ser fornecidas por Abram Deborin e sua escola filosófica, na época dominante na União Soviética (apesar de posteriormente ter sido expurgada sob a acusação de ''idealismo hegeliano''). Escola essa que foi a primeira a sistematicamente desenvolver a concepção de que o marxismo seria um método dialético com validade universal, capaz de elaborar leis gerais que poderiam ser aplicadas tanto à análise dos fenômenos naturais como dos sociais – a dialética marxista é estripada, dessa forma, de sua atitude prático-revolucionária, que leva ao engajamento direto, e transforma-se numa teoria epistemológica geral que lida com as leis universais do conhecimento científico. Como notou Korsch, logo depois desses debates, críticas vindas dos inimigos declarados, o Comintern e o ''revisionismo'' social-democrata, basicamente repetiam os mesmos contra-argumentos contra ele e Lukács, denunciando seu ''subjetivismo'' (na verdade, o engajamento prático da teoria marxista etc.). Já não se podia admitir tal posição numa época em que o marxismo estava transformando-se numa ideologia de Estado cuja raison d'être última era legitimar as pragmáticas decisões do Partido por meio das não-históricas (''universais'') leis da dialética. Sintomático disso é a reabilitação da idéia de que o materialismo dialético seria a ''visão de mundo [Weltanschaung] da classe trabalhadora''. Para Lukács e Korsch, assim como para o próprio Marx, por definição, ''visão de mundo'' designa a atitude ''contemplativa'' da ideologia, que a engajada teoria revolucionária marxista deveria superar. Evert Van der Zweerde3 descreveu em detalhes a utilização ideológica pelo regime soviético da filosofia do materialismo dialético, pretensamente a ''visão de mundo científica da classe trabalhadora''. Apesar do materialismo dialético reconhecer ser uma ideologia, não é a ideologia que proclama ser. Não motivou, mas legitimou atos políticos; não se deveria, assim, acreditar nela, mas ritualmente encená-la. Sua reivindicação de que era uma ''ideologia científica'' e, consequentemente, a ''reflexão correta'' das circunstâncias sociais excluía a possibilidade que existisse uma ideologia ''normal'' na sociedade soviética, já que ela ''refletiria'' a realidade social de uma maneira ''errada'' etc. Perde-se, por conseqüência, inteiramente o fio da meada ao se tratar o infame diamat como um sistema filosófico genuíno. Ele funcionava, na verdade, como o instrumento de legitimação do poder que deveria ser ritualmente encenado e, como tal, é melhor colocá-lo na densa teia de relações de poder. Emblemático disso são os diferentes destinos de I. Iljenkov e P. Losev, quase protótipos de filósofos russos durante o socialismo. Losev foi o autor do último livro publicado na URSS (em 1929) a rejeitar abertamente o marxismo, que descartava como ''óbvia perda de tempo''. No entanto, depois de uma pequena temporada na prisão, lhe foi permitido retomar sua carreira acadêmica e, durante a Segunda Guerra, voltar a dar aulas. A ''fórmula'' que encontrou para sobreviver foi refugiar-se na história da filosofia (estética) especializando-se numa disciplina acadêmica, onde dedicava-se ao estudo de autores gregos e romanos. Aparentemente narrando e interpretando o pensamento de autores antigos, especialmente Plotino e outros neoplatônicos, pôde contrabandear suas próprias teses místicas, ao mesmo tempo que, nas introduções a seus livros, macaqueava a ideologia oficial com uma citação ou duas de Khruschev ou Brezhnev. Dessa forma, foi capaz de sobreviver a todas as vicissitudes do socialismo e viveu para ver o fim do comunismo, consagrado como o decano da autêntica herança espiritual russa! Em contraste, Iljenkov, um soberbo dialético e especialista em Hegel, tornou-se, como marxista-leninista convicto, uma figura descolada. Por essa razão (i.e. porque escrevia de uma maneira que revelava seu envolvimento pessoal com o que escrevia, procurando fazer do marxismo uma filosofia séria e não o equivalente a uma série de fórmulas ritualísticas de legitimação4), foi excomungado e levado ao suicídio. Será que é possível encontrar melhor demonstração de como uma ideologia efetivamente funciona? Num gesto que corresponde a um termidor pessoal, Lukács, no início dos anos trinta, refugiou-se nas águas mais especializadas da estética e da teoria literária marxista, justificando seu apoio público às políticas stalinistas com base na crítica hegeliana à bela alma. A União Soviética, inclusive todas suas dificuldades não previstas, foi o resultado da Revolução de Outubro, portanto, ao invés de condená-la a partir da posição confortável da bela alma e, assim, manter as mãos limpas, se deveria reconhecer corajosamente ''o cerne da encruzilhada do presente'' (a fórmula de Hegel para a reconciliação pós-revolucionária). Adorno estava inteiramente justificado ao designar sarcasticamente esse Lukács como alguém que confundiu o barulho de suas correntes com a marcha triunfante do Espírito Universal, e, consequentemente, apoiou a ''reconciliação à força'' do indivíduo e da sociedade nos países comunistas do leste europeu.5 Apesar de tudo, o destino de Lukács nos leva a confrontar o difícil problema da emergência do stalinismo. É até excessivamente fácil contrastar o espírito autenticamente revolucionário do ''Evento de 1917'' com seu posterior termidor stalinista – o verdadeiro problema é saber ''como a partir de lá chegamos aonde chegamos''. A grande tarefa, como foi enfatizado por Alain Badiou, é de pensar a necessidade da evolução no interior do leninismo em direção ao stalinismo sem negar o tremendo potencial emancipador do Evento de outubro, e também sem cair no velho papo furado liberal sobre o potencial ''totalitário'' da política emancipadora radical, que sugere que toda revolução leva a uma repressão pior do que a antiga. Ao mesmo tempo que se deve reconhecer que o stalinismo é inerente à lógica revolucionária leninista e não o fruto de alguma influência corruptora externa, como o ''atraso russo'' ou a postura ideológica ''asiática'' das massas, é necessário continuar a fazer uma análise concreta da lógica do processo político e, a todo custo, evitar usar conceitos imediatos quase-antropológicos ou genericamente filosóficos, como ''razão instrumental''. A partir do momento que aceitamos tal postura, o stalinismo perde sua especificidade, sua dinâmicapolítica particular, e transforma-se apenas num outro exemplo da noção geral. Exemplo disso é o famoso comentário de Heidegger, na sua Introdução à metafísica, de que o comunismo russo e o americanismo são, do ponto de vista histórico, ''metafisicamente iguais''. É evidente que, no interior do marxismo ocidental, a Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, e os diversos ensaios posteriores de Horkheimer sobre a ''razão instrumental'' levaram à mudança fatal, de análises sociopolíticas concretas às generalizações antropofilosóficas. A transformação exige que, ao reificar a ''razão instrumental'', ela mesma deixe de se basear em relações capitalistas concretas, para tornar-se, de maneira praticamente imperceptível, o ''princípio'' ou ''fundação'' quase-transcendental. Junto com essa mudança, a tradição da Escola de Frankfurt evita quase inteiramente a confrontação teórica direta com o stalinismo, o que contrasta claramente com sua obsessão com o anti-semitismo fascista. As exceções a essa regra são reveladoras. O Behemoth, de Fraz Neumann, um estudo do nacional-socialismo que, da maneira bastante comum no final dos anos trinta e quarenta, sugere que os três grandes sistemas mundiais da época – o emergente capitalismo do New Deal, o fascismo e o stalinismo – tenderiam a levar à mesma sociedade ''administrada'', burocrática e inteiramente organizada. Da mesma forma, O marxismo soviético, de Herbert Marcurse, seu menos apaixonado e, talvez, pior livro, estranhamente traz uma análise neutra, sem nenhum engajamento claro, sobre a ideologia soviética. Finalmente, há tentativas de alguns discípulos de Habermas que, ao refletirem sobre o então fenômeno nascente da dissidência, tentaram elaborar um conceito de sociedade civil como o espaço onde apareceria a resistência ao regime comunista. Politicamente essas análises são interessantes, mas não oferecem uma teoria global satisfatória da especificidade do ''totalitarismo'' stalinista.6 A desculpa padrão, segundo a qual os autores clássicos da Escola Frankfurt não queriam se opor abertamente ao comunismo já que, ao fazerem isso, domesticamente estariam fazendo o jogo daqueles que eram favoráveis ao capitalismo e à Guerra Fria, é evidentemente insuficiente. Na verdade, o ponto central não é que seu medo de servirem ao anticomunismo oficial provaria como eram secretamente pró-comunistas, mas, o oposto. Se fossem realmente colocados contra a parede para definirem sua posição na Guerra Fria, os membros da Escola de Frankfurt provavelmente escolheriam a democracia liberal ocidental (como fez explicitamente Horkheimer em alguns de seus últimos escritos). No final das contas, essasolidariedade com o sistema ocidental, quando ele esteve realmente ameaçado, é o que os teóricos de Frankfurt tinham vergonha de assumir publicamente, o que contrasta com a ''oposição crítica socialista e democrática'' na República Democrática Alemã, que criticava abertamente o domínio do Partido. Mas no momento em que a situação se agravou e o socialismo passou realmente a ser ameaçado, eles (Brecht nas manifestações de trabalhadores em 1953, Christa Wolf na Primavera de Praga em 1968) passaram a apoiar o sistema abertamente... O ''stalinismo'' (o socialismo realmente existente) foi, assim, um assunto traumático para a Escola de Frankfurt, sobre o qual ela preferiu se calar. Esse silêncio foi a única maneira que seu intelectuais encontraram para manter uma inconsistente posição de solidariedade implícita com a democracia liberal ocidental, sem perder a máscara oficial de críticos esquerdistas ''radicais''. Se assumissem abertamente essa solidariedade perderiam sua aura ''radical'', convertendo-se em meramente mais uma versão liberal esquerdista e anticomunista da Guerra Fria, enquanto que se demonstrassem muita simpatia pelo ''socialismo realmente existente'' seriam forçados a trair seus verdadeiros compromissos não assumidos. Apesar da tarefa de explicar a ascensão do stalinismo estar além do escopo deste ensaio, somos tentados a arriscar um curto comentário preliminar sobre ela. Todo marxista se lembra do comentário de Lenin, nos seus Cadernos filosóficos, de que aquele que não leu e estudou cuidadosamente toda a Ciência da lógica de Hegel não pode realmente entender O capital de Marx. Na mesma linha, somos tentados a afirmar que quem não leu e estudou com cuidado os capítulos sobre ''Julgamento'' e ''Silogismo'' da Lógica de Hegel não pode realmente entender a emergência do stalinismo. Isto é, a lógica da emergência do fenômeno histórico pode ser melhor entendida com base na sucessão das três formas de mediação silológica, que vagamente correspondem à tríade marxismo-leninismo-stalinismo. Os três termos mediados (o Universal, o Particular e o Singular) representam a História (o movimento histórico universal), o proletariado (a classe particular que tem uma relação privilegiada com o Universal) e o Partido Comunista (o agente singular). Na primeira forma marxista clássica de mediação, o Partido realiza a mediação entre a História e o proletariado: sua ação permite que a classe trabalhadora ''empírica'' torne-se consciente da missão histórica inscrita em sua própria situação social e aja de acordo com ela, i.e., torna-se sujeito revolucionário. A ênfase está na atitude ''espontaneamente'' revolucionária do proletariado: o Partido apenas desempenharia um papel maiêutico, tornando possível a conversão, meramente formal, do proletariado de classe-em-si para classe-para-si. No entanto, como é sempre o caso em Hegel, a ''verdade'' dessa mediação está que, no curso do movimento, a posição inicial, a identidade presumida, é falsificada. Na primeira forma, a identidade presumida é entre o proletariado e a História, i.e., a idéia de que a missão revolucionária de libertação universal está inscrita na própria condição social objetiva do proletariado como ''classe universal'', classe cujos interesses particulares confundem-se com os interesses universais da humanidade. O terceiro termo, o Partido, é meramente o operador que realiza esse potencial universal do particular. É palpável, porém, que no curso da mediação o proletariado atinja ''espontaneamente'' apenas uma consciência economicista e reformista, o que nos leva à conclusão leninista: a constituição do sujeito revolucionário só é possível quando os intelectuais do Partido compreenderem a lógica interna do processo histórico e, de acordo com ela, ''educarem'' o proletariado. Nessa segunda forma, o proletariado tem seu papel reduzido ao de mediador entre a História (o processo histórico global) e a consciência científica a respeito dela internalizada no Partido. Depois de compreender a lógica interna do processo histórico, o Partido ''educa'' os trabalhadores, que serão o instrumento consciente da realização do fim da história. A identidade pressuposta nessa segunda forma é entre o Universal e o Singular, a História e o Partido, i.e., a concepção de que o Partido como ''intelectual coletivo'' compreende o processo histórico. Esse pressuposto é melhor entendido com a superação dos aspectos ''subjetivo'' e ''objetivo''. A noção da História como um processo objetivo ao qual correspondem leis necessárias é estritamente correlata com a dos intelectuais do Partido como Sujeitos cujo conhecimento privilegiado – compreensão – do processo possibilita a intervenção e direção do processo. Como era de se esperar, é esse pressuposto que é falsificado no curso da segunda mediação, levando à terceira, ''o Stalinismo'', forma de mediação que contém a ''verdade'' de todo o movimento, no qual o Universal (a História ela mesmo) faz a mediação entre o proletariado e o Partido. Em termos simplistas, o Partido apenas usa a referência à História – i.e., sua doutrina, ''o materialismo histórico e dialético'', para garantir seu acesso privilegiado à ''necessidade inexorável do progresso histórico'' – a fim de legitimar sua dominação e exploração sobre a classe trabalhadora. Ela fornece, dessa forma, às decisões pragmáticas e oportunistas do Partido uma espécie de ''justificativa ontológica''. Em termos da coincidência especulativa dos opostos, ou do ''julgamento infinito'', em que o mais alto coincide com o mais baixo, não deixa de ser significativo que os trabalhadores soviéticos eram acordados de manhã cedo pela música tocada por amplificadores que reproduziam os primeiros acordes da Internacional. Suas palavras, ''De pé, ó vítimas da fome!'' passa a ter um significado irônico mais profundo: a ''verdade'' última do significado patético original (''Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra sem amos, a Internacional!'') passa a ser seu significado literal, o apelo dirigido aos trabalhadores cansados ''De pé, ó vítimas da fome, comecem a trabalhar para nós, a nomenklatura do Partido!''. Se, nessa tríplice mediação silológica da História, do proletariado e do Partido, cada forma de mediação é a ''verdade'' da precedente, então o Partido, que instrumentaliza a classe trabalhadora para realizar seu fim, justificado que está na compreensão correta que teria da lógica interna do processo histórico, é a ''verdade'' da noção de que o Partido possibilitaria ao proletariado tomar consciência da sua missão histórica, descobrindo seu ''verdadeiro'' interesse. A exploração brutal da classe trabalhadora pelo Partido seria, dessa forma, a ''verdade'' da idéia de que por meio dela o Partido realiza sua compreensão da História. Será que isso significa que esse movimento é inexorável, que estamos lidando com uma lógica de ferro com base na qual, a partir do momento que aceitamos o ponto de partida – a premissa que o proletariado, devido à sua posição social, é a ''classe universal'' – ficamos presos, numa espécie de compulsão diabólica, a sermos conduzidos, no final do caminho, ao Gulag? Se isso fosse verdade, História e consciência de classe,apesar de (ou devido a) seu brilho intelectual, seria o texto fundador do stalinismo, e a crítica pós-moderna do livro, segundo a qual ele seria a manifestação última do essencialismo hegeliano, assim como a identificação, por parte de Althusser, do hegelianismo com o stalinismo (a necessidade teleológica de toda a História progredir em direção à revolução proletária, momento decisivo, em que o proletariado como sujeito e objeto da História, a ''classe universal'' tornada consciente pelo Partido da missão inscrita em sua posição social objetiva, realiza o ato revelador de sua própria libertação) estariam inteiramente justificados. A reação violenta dos partidários do ''materialismo dialético'' àHistória e consciência de classe seria apenas uma confirmação da regra de Lucien Goldman a respeito de como uma ideologia dominante precisa necessariamente negar suas premissas fundamentais. Dessa perspectiva, a noção megalomaníaca, que Lukács toma emprestado de Hegel, do Partido leninista como correspondendo ao espírito da história, já que ele seria o ''intelectual coletivo'' do proletariado, sujeito e objeto da História, seria a ''verdade'' escondida por trás da aparentemente mais modesta versão ''objetivista'' do stalinismo sobre como a atividade revolucionária estaria baseada num processo ontológico global dominado por leis dialéticas universais. E, claro, seria fácil desconstruir o conceito hegeliano da identidade do Sujeito e Objeto com base na premissa básica do desconstrutivismo de que o sujeito emerge precisamente de/como ausência de Substância (Ordem das Coisas objetiva), que há subjetividade apenas quando existe uma ''rachadura no edifício do Ser'', na medida em que o universal está, de alguma maneira, ''fora dos trilhos'', ''é descontínuo''. Em poucas palavras, a realização completa do sujeito não só falha sempre, mas aquilo a que Lukács não prestou atenção já seria um modo de subjetividade ''imperfeita'', sujeito frustrado e, efetivamente, o próprio sujeito. A versão ''objetivista'' stalinista seria, portanto, por razões estritamente filosóficas, a ''verdade'' de História e consciência de classe. Como, por definição, o sujeito sempre falharia, sua completa realização como Sujeito e Objeto da História necessariamente levaria ao seu próprio cancelamento, sua auto-objetivação como instrumento da História. Indo mais além, seria fácil de defender, contra esse impasse hegelo-stalinista, a posição pós-moderna de Laclau, de que a contingência radical seria o próprio terreno da subjetividade (política). Universais políticos deveriam ser entendidos como conceitos ''vazios'', a ligação entre eles e o conteúdo particular que os hegemoniza devendo ser buscada naquilo que envolve a disputa ideológica, por sua vez, inteiramente contingente. O que equivale a dizer que o sujeito político tem sua missão universal inscrita na sua condição social ''objetiva''. Mas é isso que História e consciência de classe realmente sugere? Será que se pode deixar de prestar atenção a Lukács em razão dele ser um defensor do argumento pseudo-hegeliano de que o proletariado seria o Sujeito e Objeto da História? Voltemos ao contexto político concreto de História e consciência de classe, no qual Lukács agia como um revolucionário engajado. Colocando as coisas em termos crus e simplistas, a escolha, para as forças revolucionárias na Rússia de 1917, em que a burguesia era incapaz de levar a cabo a revolução democrática, colocava-se nos seguintes termos. Por um lado, havia a postura menchevique de obedecer à lógica ''do desenvolvimento das etapas objetivas'': realizando primeiro a revolução democrática, depois a revolução proletária. Assim, no remoinho de 1917, os partidos radicais, ao invés de capitalizar a desintegração progressiva do aparato de Estado e construir, com base no descontentamento popular generalizado, uma alternativa revolucionária, deveriam resistir à tentação de empurrar o movimento longe demais, sendo presumivelmente melhor aliar-se com elementos democráticos burgueses a fim de ''amadurecer'' a situação revolucionária. Desse ponto de vista, a tomada de poder por parte de socialistas em 1917, quando a situação ainda não estava ''madura'', levaria à volta ao terror primitivo... (Apesar de hoje o temor das consequências catastróficas de um levante ''prematuro'' poder parecer antecipar o Stalinismo, a ideologia do stalinismo leva, de fato, a um retorno a essa lógica ''objetivista'' dos estágios necessários de desenvolvimento.) Por outro lado, a estratégia leninista era de antecipar-se, lançando-se por inteiro no paradoxo da situação, aproveitando as oportunidades e intervindo mesmo quando as condições eram ''prematuras'', com a aposta que a própria intervenção ''prematura'' mudaria a relação de forças ''objetivas'', dentro da qual a situação inicialmente parecia ser ''prematura''. Isto é, ela minaria o próprio padrão de referência, que nos informa que a situação era ''prematura''. Nessa linha, é preciso tomar cuidado para não perder o fio da meada: não é que Lenin, diferentemente dos mencheviques e dos céticos no interior do Partido Bolchevique, acreditasse que a complexa situação de 1917, i.e., a crescente insatisfação das massas com as políticas irresolutas do governo provisório, oferecesse uma chance única de ''pular'' uma fase (a revolução democrática burguesa), ou de ''condensar'' os dois estágios consecutivos necessários (a revolução democrático burguesa e a revolução proletária) num só. Tal raciocínio mantém a mesma lógica objetiva ''reificada'' dos ''estágios necessários de desenvolvimento'', mas aceita que existiria um ritmo diferente de evolução em variadas circunstâncias concretas (i.e., em alguns países, o segundo estágio poderia suceder imediatamente ao primeiro). O argumento de Lênin é muito mais forte. Em última instância, não há nenhuma lógica objetiva dos ''estágios de desenvolvimento necessários'', já que ''complicações'' aparecem na intricada textura das situações concretas e/ou os resultados não antecipados de intervenções ''subjetivas'' sempre bagunçam sua evolução normal. Como Lenin gostava de observar, o colonialismo e a superexploração das massas na Ásia, África e América Latina afeta e ''desloca'' radicalmente a luta de classes ''normal'' nos países capitalistas avançados. Falar de ''luta de classes'' sem levar em conta o colonialismo é uma abstração vazia, que, quando se traduz em política concreta, pode apenas resultar na aceitação do papel ''civilizador'' do colonialismo. Portanto, ao subordinar a luta anticolonialista das massas asiáticas à ''verdadeira'' luta de classes nos Estados capitalistas avançados, a burguesia passaria a definir de facto os termos da luta de classes... (Mais uma vez, aqui se pode notar uma proximidade não esperada com a idéia althusseriana da ''sobredeterminação''. Não há nenhuma regra última que permita traçar ''exceções''. Na história real, há apenas exceções.) É também tentador utilizar termos lacanianos sobre isso. O que está em jogo nessa fórmula alternativa é a (não) existência do ''grande Outro''. Os mencheviques acreditavam nas bases auto-suficientes da lógica positiva do desenvolvimento histórico, enquanto os bolcheviques (ao menos Lenin) tinham consciência de que ''o grande Outro não existe''. A intervenção apolítica não acontece a partir das coordenadas dadas por uma matriz global subjacente, já que o que ela faz é precisamente ''reelaborar'' essa matriz global. Essa é a razão por que Lukács admirava tanto Lenin. Seu Lenin era aquele que, diante da disputa na Social-Democracia russa entre bolcheviques e mencheviques sobre quem deveria ser membro do partido, escreveu: ''Por algumas vezes, todo o destino do movimento operário pode, por certo tempo, ser decidido por uma ou duas palavras presentes no programa do partido.'' Ou o Lenin que quando percebeu, no fim de 1917, a possibilidade de tomada revolucionária do poder disse: ''A História nunca nos perdoará se desperdiçarmos a oportunidade!'' Num nível mais geral, a história do capitalismo é uma longa história de como a referência ideológica predominante foi capaz de cooptar (e diluir o potencial subversivo) dos movimentos e demandas que pareciam ameaçar sua própria sobrevivência. Por exemplo, por um bom tempo, libertários em matéria sexual acreditavam que a repressão monogâmica era necessária para a sobrevivência do capitalismo – sabemos agora que o capitalismo não só pode tolerar, mas incitar e explorar formas de sexualidade ''pervertidas'', sem mencionar seu convívio, sem maiores problemas, com a indulgência promíscua em prazeres sexuais. No entanto, a conclusão que se pode tirar disso não é que o capitalismo tem a capacidade sem fim de integrar e, assim, diluir o potencial subversivo de todas as demandas particulares – já que a questão do timing, de ''aproveitar o momento'', é decisiva. Uma demanda particular, num dado momento, possui poder de detonação global, funcionando como um substituto metafórico para a revolução global. Se, de maneira inflexível, insistimos nela, o sistema pode explodir. Se, entretanto, esperamos por tempo demais, o curto-circuito metafórico entre essa demanda particular e a derrubada global é dissolvido, e o Sistema pode, com hipócrita satisfação, perguntar, ''não era isso que você queria? Então, fique com o que pediu!'', sem que nada de realmente radical aconteça. O artifício que Lukács chamou deAugenblick (o momento quando, por pouco tempo, há a abertura para um ato de intervenção numa situação) é a capacidade de aproveitar o momento certo, agravando o conflito antes que o Sistema possa acomodar a demanda. Passamos a ter, assim, um Lukács muito mais ''gramsciano'', aberto para o conjuntural/contingente do que normalmente se imagina. O Augenblick de Lukács está também surpreendentemente próximo do que Alain Badiou chama de Evento: uma intervenção que não pode ser entendida com base em suas ''condições objetivas'' preexistentes. O ponto principal do argumento de Lukács é rejeitar a redução do ato às suas ''circunstâncias históricas''. Não há ''condições objetivas'' neutras, i.e. (em hegelês), todos os pressupostos estão minimamente postos. Característico disso é a enunciação ''objetivista'' por Lukács dos fatores que levaram ao fracasso da revolução húngara de 1919: os oficiais traiçoeiros, o bloqueio externo que causou a fome... Apesar desses serem indubitavelmente fatores que desempenharam um papel decisivo na derrota da revolução, é equivocado considerá-los como a matéria-prima decisiva, sem levar em conta a maneira como foram ''mediados'' por inúmero fatores políticos subjetivos. Por que, então, no caso do bloqueio ainda mais intenso à Rússia soviética, não se sucumbiu aos ataques imperialistas e contra-revolucionários? Porque na Rússia, o Partido Bolchevique esclareceu as massas que o bloqueio era fruto da ação de forças contra-revolucionárias estrangeiras e domésticas. Na Hungria, porém, o Partido não era suficientemente forte, o que fez com que as massas sucumbissem à propaganda anticomunista que afirmava que o bloqueio era o resultado da natureza ''antidemocrática'' do regime – sugerindo que com o retorno à democracia a ajuda estrangeira não pararia de afluir... Traição dos oficiais? Sim, mas por que a mesma traição não levou às mesmas consequências catastróficas na Rússia soviética? E quando traidores foram descobertos por que não foi possível substituí-los por quadros confiáveis? Porque o Partido Comunista Húngaro não era suficientemente forte e ativo, ao passo que o Partido Bolchevique russo mobilizou os soldados que estavam dispostos a defender a revolução. Claro, pode-se sempre afirmar que a fraqueza do Partido Comunista Húngaro era um componente ''objetivo'' da situação social; contudo, por trás desse ''fato'', há ainda outras decisões e atos subjetivos, o que faz com que nunca seja possível atingir o nível zero de um pretenso estado de coisas puramente ''objetivo''. O ponto realmente importante não é a objetividade, mas a ''totalidade'', entendida como processo global de ''mediação'' entre o aspecto subjetivo e o objetivo. Em outras palavras, o Ato nunca pode ser reduzido ao reflexo de condições objetivas. Pegando um exemplo de outro campo, a maneira que a ideologia ''põe seus pressupostos'' é também facilmente percebido na (pseudo) explicação sobre a crescente aceitação da ideologia nazista durante os anos vinte, segundo a qual os nazistas manipulavam os medos e as ansiedades da classe média gerados pela crise econômica e as mudanças sociais. O problema com essa explicação é que ela não percebe como está implícita nela uma auto-referência circular. Sim, os nazistas certamente manipularam medos e ansiedades, todavia, esses medos e ansiedades refletiam, de antemão, uma certa perspectiva ideológica e não correspondiam a fatos pré-ideológicos. Em outras palavras, a ideologia nazista ela mesmo também gerou ''ansiedades e medos'', para a qual propôs soluções. Podemos agora voltar para nosso ''silogismo'' triplo e procurar descobrir onde encontra-se seu erro: na própria oposição entre as suas duas primeiras formas. Claro que Lukács opõe-se ao ''espontaneísmo'', que defende a organização autônoma das massas trabalhadoras em movimentos de base contra a ditadura imposta por burocratas do Partido. Mas ele também opõe-se ao conceito pseudoleninista (na verdade, de Kaustky) de que a classe trabalhadora ''empírica'' pode, deixada a ela mesma, apenas atingir o nível sindicalista de consciência, e que a única maneira dela passar a ser o sujeito revolucionário é importando sua consciência por meio de intelectuais que, depois de compreenderem ''cientificamente'' as necessidades ''objetivas'' da passagem do capitalismo para o socialismo, ''esclarecem a classe trabalhadora da missão implícita em sua posição social objetiva''. No entanto, é aqui que encontramos a abusiva ''identidade dos opostos'' dialética na sua forma mais pura. O problema com essa oposição não é que os dois pólos estão muito cruamente opostos e que a verdade se encontraria em algum lugar presente entre eles, na ''mediação dialética'' (a consciência de classe que surgiria da ''interação'' entre a consciência espontânea da classe trabalhadora e o trabalho educativo do Partido). Na verdade, o problema está na idéia de que a classe trabalhadora tem potencialmente a capacidade de atingir a consciência de classe adequada (e, conseqüentemente, que o Partido apenas desempenha um papel menor, ''maiêutico'', de possibilitar aos trabalhadores empíricos realizarem seu potencial), já que, assim, se legitima o exercício da ditadura do Partido sobre os ''trabalhadores, baseada na sua compreensão correta de quais são seus verdadeiros potenciais e/ou seus interesses a longo prazo''. Em poucas palavras, Lukács está apenas aplicando à oposição falsa entre ''espontaneísmo'' e dominação externa do Partido a identificação especulativa de Hegel dos ''potenciais internos'' de um indivíduo na sua relação com seus educadores. Dizer que o indivíduo precisa possuir ''potencial próprio'' para se tornar um grande músico equivale a dizer que esses potenciais devem estar, de antemão, presentes no educador que, por meio de influência externa, estimulará o indivíduo a realizar seu potencial. O paradoxo, então, é que quanto mais insistimos em como uma postura revolucionária traduz a verdadeira ''natureza'' da classe trabalhadora, mais somos levados a exercer pressão externa sobre a classe trabalhadora ''empírica'', a fim de que ela realize seu potencial. Em outras palavras, a ''verdade'' sobre a identidade imediata dos dois primeiros opostos é, como vimos, a terceira forma, a mediação stalinista. Por quê? Porque essa identidade imediata exclui qualquer espaço para o ato propriamente dito. Se a consciência de classe aparece ''espontaneamente'', como a realização do potencial interno presente na própria situação objetiva da classe trabalhadora, nenhum ato ocorreria, a não ser a conversão puramente formal do em-si para o para-si. O que corresponde ao gesto de descortinar o que sempre esteve lá. Se a consciência de classe propriamente revolucionária deve ser ''importada'' pelo Partido, então nos restaria a presença de intelectuais ''neutros'', que compreenderiam a necessidade histórica ''objetiva'' (sem intervir diretamente nela). Conseqüentemente, a utilização da classe trabalhadora, manipulada de maneira instrumental, como ferramenta para realizar a necessidade já presente na sua situação, não deixaria nenhum espaço para o ato propriamente dito. Hoje em dia, época do triunfo mundial da democracia, quando ninguém de esquerda (com exceções notáveis, como a de Alain Badiou) ousa questionar as premissas da democracia política, é mais importante do que nunca ter em mente o comentário de Lukács, proferido na sua polêmica contra a crítica de Rosa Luxemburgo a Lenin, de como a atitude verdadeiramente revolucionária de aceitar a contingência radical da Augenblick não deveria levar também à aceitação da oposição padrão entre a ''democracia'', a ''ditadura'' ou o ''terror''. Se deixarmos de lado a oposição entre o universalismo liberal-democrático e o fundamentalismo étnico/religioso, para o qual a mídia insiste em chamar a atenção, o primeiro passo é reconhecer a existência do que se pode chamar de ''fundamentalismo democrático'': a ontologização da Democracia numa referência universal despolitizada que não deve ser (re)negociada com base em disputas político-ideológicas pela hegemonia. A democracia como forma de política estatal é mesmo inerentemente ''popperiana''. O critério último da democracia está na ''falseabilidade'' do regime, i.e. que um procedimento público claramente definido (o voto popular) pode determinar se ele perdeu legitimidade e deve ser substituído por uma nova força política. O ponto não é tanto a ''justiça'' do procedimento, mas o fato de que todos os envolvidos aceitam antecipadamente, e sem dar margem a dúvidas, como ele funcionará, independentemente da sua ''justiça''. No procedimento padrão de chantagem ideológica, os defensores da democracia alegam que, a partir do momento que abandonamos essa característica, entramos numa esfera ''totalitária'', em que o regime ''não é falsificável'', i.e., ele evita a situação de ''falsificação'' unívoca. Independentemente do que acontecer, mesmo que milhares se manifestem contra o regime, ele continuará a insistir que é legítimo, que representa os verdadeiros interesses do povo e que o ''verdadeiro'' povo o apóia... Deveríamos, aqui, rejeitar essa chantagem (como Lukács faz em relação a Rosa Luxemburgo). Não há nenhuma ''regra (procedimento) democrático'' que estamos, de antemão, proibidos de violar. A política revolucionária não diz respeito a ''opiniões'', mas à verdade que faz com que freqüentemente tenha-se que não levar em conta a ''opinião da maioria'' e impor a vontade revolucionária sobre ela. Se, então, a principal tarefa da esquerda atual for, afinal de contas, fazer a passagem de História e consciência de classea Dialética do esclarecimento, mas na direção oposta do que é normalmente imaginado? A questão não é de ''aprofundar'' Lukács de acordo com as ''exigências dos novos tempos'' (o grande slogan de todo o revisionismo oportunista, incluindo o atual Novo Trabalhismo), mas de repetir o Evento em novas condições. Somos ainda capazes de nos imaginar num momento histórico onde termos como ''traidor revisionista'' ainda não faziam parte do mantra stalinista, mas expressavam uma postura verdadeiramente engajada? Em outras palavras, a questão a ser levantada hoje sobre o Evento único do Lukács marxista dos primeiros tempos não é: ''Como esse trabalho fica em relação à constelação atual? Ele ainda está vivo?'', mas, ao contrário, o de parafrasear a conhecida inversão de Adorno da insolente pergunta historicista de Croce sobre ''o que está vivo e o que está morto na dialética de Hegel'' (o título de seu principal trabalho)7: como é que nós nos encontramos diante de Lukács? Ainda somos capazes de realizar o ato descrito por Lukács? Qual ator social pode, com base em seu radical deslocamento, realizá-lo hoje em dia? * ''From History and Class Consciousness to The Dialectic of Enlightenment... and Back''. New German Critique 81: 107-123, 2000. Agradecemos aos editores da New German Critique e a Slavoj Zizek pela gentil permissão para publicar este artigo. Tradução de Bernardo Ricupero.


1. Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tuuebingen: Max Niemeyer, 1963, p. 437.
2. Paradoxalmente, da perspectiva de cada um desses dois marxistas, Althusser e Lukács, o outro aparece como o exemplo mais acabado do stalinista: para Althusser e os pós-althusserianos, a noção de Lukács de que o Partido Comunista equivale praticamente ao sujeito hegeliano legitima o stalinismo; para os discípulos de Lukács, o ''antihumanismo teórico'' do estruturalista Althusser e sua total rejeição da problemática da alienação e da reificação, combinam-se à desconsideração stalinista pela liberdade humana. Ao mesmo tempo que este não é o lugar para tratar detalhadamente desse confronto, ele enfatiza como cada um dos dois marxistas articula uma problemática fundamental, que não faz parte do horizonte do oponente: em Althusser, a noção dos aparelhos ideológicos do Estado como a tradução material da ideologia, e em Lukács, a noção do ato histórico. Além do mais, evidentemente não é fácil realizar uma ''síntese'' entre essas duas posições mutuamente opostas – é possível, assim, que a melhor maneira de proceder seja usando como referência alternativa o outro grande fundador do marxismo ocidental, Antonio Gramsci. Ver: Evert van der Zweerde, Soviet historiography of philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1997.
3. Paradigmática é a lendária história da fracassada participação de Iljenkov num congresso mundial de filosofia realizado nos EUA em meados dos anos sessenta. Iljenkov já tinha o visto e estava pronto para pegar o avião, quando sua viagem foi cancelada porque seu texto para o congresso, ''Do ponto de vista leninista'', que tinha antes apresentado aos ideólogos do Partido, não os agradou. Isso não se deu graças a seu conteúdo (inteiramente aceitável), mas simplesmente por causa de seu estilo, da maneira engajada em que foi escrito. Já a frase de abertura (''É minha avaliação pessoal que...'') era proferida num tom pouco aceitável.
4. Ver: Theodor W. Adorno, ''Erpresste Versohnung,'' Noten zur literatur, Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1971, p. 278.
5. Ver, como exemplo representativo, Andrew Arato e Jean L. Cohen, Civil society and political theory, Cambridge: MIT, 1994
6. Ver: Adorno, Drei Studien zu Hegel, Frankfurt: Suhrkamp, 1963, p. 13.