segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Para sair da armadilha

Texto publicado em galego (português da Galiza).

Os movimentos de protesto contra as políticas de austeridade que se estendérom por Europa -em Grécia e na França, mas também, em menor medida, em Irlanda, Itália e Espanha- dérom nascimento a duas ficçons. A primeira, forjada polo poder e meios de comunicaçom de massas, apoia-se na despolitizaçom da crise: as medidas de restriçom orçamentária decretadas polos governos traem-se à tona nom como umha opçom política, mas como umha resposta técnica a imperativos financeiros. A liçom é que, se queremos que a economia se estabilizar, devemos apertar-nos os cintos. A outra história, a dos grevistas e manifestantes, postula que as medidas de austeridade som só umha ferramenta nas maos do capital para desmantelar os últimos vestígios do Estado do Bem-estar. Em um caso, o Fundo Monetário Internacional (FMI) aparece como um árbitro que tem a missom de fazerem-se respeitar a ordem e a disciplina; no outro, cumpre mais umha vez o seu papel de soldado das finanças globalizadas.
Ainda que cada um dos pontos de vista contem alguns elementos de verdade, ambos som fundamentalmente erróneos. Obviamente, a estratégia defensiva dos líderes europeus nom tem em conta que o défice dos orçamentos públicos é resultado em grande medida dos milheiros de milhons esbanjados em resgatar os bancos, nem que o crédito acordado em Atenas servirá principalmente para pagar a sua dívida com os bancos franceses e alemaos. A ajuda europeia à Grécia nom tem mais funçom que socorrer o sector bancário privado. Em frente, o argumento dos descontentes volve trazer a indigência da esquerda contemporánea: nom contém nengum elemento programático, só umha negativa a ver desaparecer as conquistas sociais. A utopia do movimento social já nom consiste em cambiar o sistema, mas em se convencer de que este pode conformar-se com sustentar o Estado do Bem-estar. Esta posiçom defensiva chama a umha objecçom difícil de refutar: se queremos continuar aferrados ao sistema capitalista globalizado, nom resta outra opçom que aceitar os sacrifícios impostos aos trabalhadores, aos estudantes e aos reformados.
Algo é seguro: trás décadas de Estado do Bem-estar, durante as quais os cortes permaneciam limitados e sempre acompanhados pola promessa de as cousas ir volver algum dia à normalidade, agora estamos entrando em um estado de emergência económico permanente. Umha nova era, que trai consigo a promessa de planos de austeridade cada vez mais severos, de cortes cada vez mais drásticos em matéria de saúde, reformados e educaçom, assim como umha maior precarizaçom do emprego. De costas contra a parede, a esquerda deve enfrentar o temível desafio de explicar que a crise económica é ante todo umha crise política - que nom tem nada de “natural”, que o sistema existente é resultado de umha série de decisons intrinsecamente políticas-, sem deixar de ser ciente de que este sistema -sempre que um se situe nesse quadro-, obedece a umha lógica pseudo-natural que nom se pode burlar as regras sem provocar um desastre económico.
Seria ilusório aguardar que a crise -que segue activa- tenha consequências limitadas e que o capitalismo europeu siga garantindo um nível de vida correcto a umha maoiria da populaçom. E avondo surpreendente conceiçom da “radicalidade” é basear-se unicamente no concurso das circunstáncias para amolecer os destroços da crise… Certamente, nom som anti-capitalistas o que faltam. Estamos literalmente mergulhados em acusaçons contra os horrores do capitalismo: dia atrás dia inundam-nos os informes jornalísticos, as notas da TV e os best-sellers dedicados às indústrias que destroçam o ambiente, aos banqueiros corruptos que engordam mediante bonificaçons extraordinárias, enquanto os seus cofres se enchem de dinheiro público esvaziando as arcas, aos provedores das marcas de roupa que empregam nenos doze horas ao dia. Porém, por duras que podam parecer estas críticas, perdem o gume quando à espada lhe toca saír da bainha: nunca questionam o marco democrático-liberal dentro do que o capitalismo causa os seus estragos. O objectivo, explícito ou implícito, invariavelmente consiste em regular o capitalismo -baixo a pressom dos meios de comunicaçom de massas, do poder legislativo ou de investigaçons policiais honestas-, mas nom em discutir os mecanismos institucionais do estado de direito burguês.
Ai é onde a análise marxista conserva toda a sua frescura, tal vez hoje mais do que nunca. Para Marx, a questom da liberdade nom se acha à vanguarda dentro da esfera política, ao menos aquela à que se referem as instituiçons internacionais ao examinarem um país: as eleiçons som livres? os juízes som independentes? respeitam-se os direitos humanos? A clave para umha liberdade verdadeira há que procurá-la mais bem na rede “apolítica” das relaçons sociais, desde o trabalho até a família, onde a que aportaria um cámbio necessário nom seria a reforma política mas a transformaçom das relaçons sociais no aparelho de produçom. Com efeito, nunca se pede aos votantes que determinem quem deve possuir o que, ou que opinem sobre as normas de gestom empresariais vigorantes no seu lugar de trabalho. É inútil aguardar que a esfera política aceda a estender a democracia a essas áreas relegadas longe delas, por exemplo, organizando bancos “democráticos” controlados polos cidadaos. Neste ámbito, as transformaçons radicais situam-se para além da esfera dos direitos legais.
Naturalmente, às vezes sucede que os procedimentos democráticos conduzem aos logros sociais. Mas nom deixam de ser umha peça mais do aparelho de Estado burguês, cujo papel consiste em garantir a reproduçom óptima do capital. Assim pois, devem derrubar-se dous fetiches à vez: o das “instituiçons democráticas” por um lado, mas também o da sua contraparte negativa, a violência.
No centro do conceito marxista de luita de classes prevalece a ideia de a vida social “pacífica” manifestar a vitória (temporária) da classe dominante. Desde o ponto de vista dos oprimidos, a própria existência do Estado enquanto aparelho da classe dominante, é um ato de violência. O credo liberal -a violência nom é legítima, mas às vezes necessária- resulta amplamente insuficiente. Desde umha perspectiva radical e emancipadora, os termos do postulado deveriam inverter-se: a violência dos oprimidos sempre é legítima -pois o seu próprio status é resultado da violência- mas nunca necessária: a eleiçom de recorrer ou nom à força contra o inimigo reveste estritamente umha consideraçom estratégica.
No estado de emergência económica que conhecemos, é patente que estamos a tratar nom com movimentos financeiros cegos mas com intervençons estratégicas maduramente reflexionadas polos poderes públicos e as instituiçons financeiras, que entendem que devem resolver a crise segundo os seus próprios critérios e no seu próprio benefício. Nestas condiçons, como nom considerar umha contra-ofensiva?
Estas consideraçons nom podem mais que quebrar a comodidade dos intelectuais radicais. Ao levarem umha existência cómoda e protegida, nom som tentados a construírem cenários catastróficos para justificarem a conservaçom do se nível de vida? Para muitos deles, se tem que se produzir umha revoluçom, melhor que for bem longe da sua casa -em Cuba, Nicarágua ou Venezuela- para dar calor aos seus coraçons, mas sem deixar de garantir a promoçom das suas carreiras. Porém, com a derruba do Estado do Bem-estar nas economias industriais avançadas, os intelectuais poderiam achar o seu momento da verdade: queriam um cámbio real, agora podem-no ter.
Nada justifica que o estado de emergência económica permanente conduza a esquerda a abandonar o paciente trabalho intelectual, sem “utilidade” prática imediata. Porém, de modo progressivo vai desaparecendo a verdadeira funçom do pensamento. Nom propor soluçons aos problemas que afronta “a sociedade” -isto é, o Estado e o Capital-, mas pensar no jeito mesmo em que se colocam essas questons. É dizer, perguntar sobre a maneira em que percebemos um problema dado.
Durante o último período do capitalismo post 1968, a própria economia -a lógica do mercado e a competência- impujo-se como ideologia hegemónica. No ámbito da educaçom, por exemplo, a escola representa a cada vez menos um serviço público independente do mercado, mimado polo Estado e santuário dos valores ilustrados (liberdade, igualdade, fraternidade). Em virtude da fórmula litúrgica “a menos custos, maior eficiência”, deixou-se invadir por diversas formas de parceria entre os sectores público e privado. No ámbito político, o sistema eleitoral que organiza e legitima o poder parece tomar cada vez mais como modelo a livre empresa: o escrutínio concebe-se como umha transacçom comercial durante a qual os votantes “compram” o artículo capaz de melhor preservar a ordem social, de castigar os criminais, etc.
Em virtude do mesmo princípio, funçons antes preservadas à força pública, como a gestom dos cárceres, som agora privatizáveis. O exército já nom se baseia mais no serviço militar, mas no mercenariado. Mesmo a burocracia estatal perdeu o seu carácter universal hegeliano, como mostra até o cansaço o dispositivo berlusconiano. Na Itália de hoje, é a base burguesa a que directamente exerce o poder legal, explorando-o aberta e inescrupulosamente com o único fim de proteger os seus interesses. Mesmo as relaçons de parelha apoiam-se nas leis do mercado: speed dating, citas por Internet ou agências matrimoniais… os serviços prestados aos futuros companheiros encorajam-nos a se considerarem mercadorias, encarregam-se de exaltar as suas virtudes e seleccionam as suas melhores fotos.
Nos confins desta constelaçom,  a ideia mesma de umha transformaçom radical da sociedade semelha um sonho impossível. Mas é justamente esse “impossível” o que deve deter-nos e fazer-nos reflexionar. Na atualidade, a decisom entre o que se pode e o que nom se pode organiza-se de jeito estranho, com um mesmo excesso na definiçom de cada categoria. Por um lado, no campo do lazer e das tecnologias, insistem-nos com que “nada é impossível”: podemos desfrutar de umha ampla gama de serviços sexuais, de arquivos enciclopédicos de cançons, filmes e séries de televisom, que estám ao nosso dispor mediante pagamento electrónico; e até podemos viajar ao espaço (se somos multimilionários). E prometem-nos que, num futuro achegado, será “possível” optimizar as nossas capacidades físicas e psíquicas mediante a manipulaçom do genoma humano. Mesmo o sonho tecnológico da imortalidade humana semelha estar ao alcanço da mao, graças à transformaçom das nossas identidades em “software” para descarregar ao disco rígido.
No ámbito sócio-económico, em cámbio, a nossa época caracteriza-se pola crença de a humanidade chegar à sua completa maturidade, depois de ser capaz de renunciar às velhas utopias milenárias e aceitar as limitaçons da realidade (quer dizer, da realidade capitalista), com todos os impossíveis que a armam. O seu lema, o seu primeiro mandamento, é “você nom pode”: nom pode participar em grandes açons coletivas, que necessariamente rematarám em terror totalitário, nom pode aferrar-se ao Estado do Bem-estar, baixo pena de perder a sua competitividade e provocar umha crise económica, nom pode sair-se do mercado mundial, agás se jura fidelidade a Coreia do Norte. A ecologia, na sua versom ideológica, agrega a este inventário as suas próprias proibiçons, esse famosos valores da terra -nom mais de dous graos de aquecimento climático- baseados em opinions de expertos.
Hoje, a ideologia dominante esforça-se em convencer-nos da impossibilidade dum cámbio radical, da impossibilidade de abolir o capitalismo, da impossibilidade de crer em umha democracia que nom se reduza a um jogo parlamentar corrupto e que por ende logre visibilizar o antagonismo que atravessa as nossas sociedades. Esta é a razom pola que Lacan, para superar essas barreiras psicológicas, substituía a frase “tudo é possível” pola mais sóbria observaçom de “o impossível acontece”.
Evo Morales em Bolívia, Hugo Chávez na Venezuela ou o governo maoísta no Nepal chegárom ao poder mediante eleiçons democráticas “justas”, nom mediante a insurgência. A sua situaçom nom é menos “objectivamente” desesperada: tomam o fluxo da história a contra-corrente e para fazê-lo nom podem apoiar-se em “tendência objectiva” nengumha. Tudo o que podem fazer é improvisar em umha situaçom aparentemente sem saída. Mas, por acaso, isso nom lhes dá umha liberdade excepcional? E nom estamos todos, na esquerda, no mesmo barco?
A nossa situaçom actual coloca-se no lugar exactamente contrário ao que prevalecia a começos do século XX, quando a esquerda sabia o que fazer, mas devia aguardar pacientemente o momento propício para actuar. Hoje nom sabemos o que fazer, mas devemos actuar de imediato, porque a nossa inércia poderia ter consequências desastrosas. Mais que nunca estamos obrigados a viver “como se fôssemos livres”.

1 comentários:

Anônimo disse...

nossa, uma revisãozinha ia bem ...