terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Filósofo defende a transformação da ética a partir da biologia

Por Slavoj Zizek

Podemos contar hoje com uma bio-ética? Sim, mas ela é ruim --o que os alemães chamam de "Bindenstrich-Ethik", uma ética com hífen. O que se perde nessa ética com hífen é simplesmente a ética como tal.

Seu problema não é que a ética universal seja dissolvida numa miríade de temas particulares (bioética, ética comercial, ética médica...), mas, muito ao contrário, que determinados avanços científicos se confrontam diretamente com os antigos "valores" humanistas, provocando reclamações sobre como as perspectivas da biogenética ameaçam nosso senso de dignidade e autonomia.

De modo sucinto, a principal consequência dos avanços na biogenética é o fim da natureza: ao conhecermos as regras de sua construção, os organismos naturais se tornam objetos disponíveis e manipuláveis. A natureza, humana e inumana, é assim "dessubstancializada", privada de sua impenetrável densidade, daquilo que Heidegger chamou de "terra". A biogenética, com sua redução da própria psique humana a um objeto de manipulação tecnológica, é portanto efetivamente uma espécie de instância empírica do que Heidegger via como o "perigo" inerente à tecnologia moderna.

É crucial aqui a interdependência entre homem e natureza: ao reduzir o homem a um mero objeto natural cujas propriedades podem ser manipuladas, o que perdemos não é (somente) a humanidade, mas a PRÓPRIA NATUREZA. Nesse sentido Francis Fukuyama está certo: a própria humanidade depende de certa noção de uma "natureza humana" herdada, da dimensão impenetrável em/de nós mesmos na qual nascemos/somos atirados: o homem só existe na medida em que existe a impenetrável natureza inumana.

Como, então, reagimos a essa ameaça? Lembre-se do conhecido caso da doença de Huntington: o gene diretamente responsável por ela foi isolado, e qualquer pessoa pode saber exatamente não apenas se sofrerá de Huntington, mas também quando. Depende de um erro de transcrição genética -a repetição gaguejante da "palavra" CAG [citosina-adenina-guanina] no meio desse gene: a idade em que a loucura surgirá depende estrita e implacavelmente do número de repetições de CAG em certo lugar desse gene (se houver 40 repetições, a pessoa terá os primeiros sintomas aos 59 anos; se houver 41 repetições, aos 54; se houver 50, aos 27).

Uma vida aprazível, condicionamento físico, os melhores remédios, alimentação saudável, o amor e o apoio familiar nada podem fazer a esse respeito: "É pura fatalidade, independente da variabilidade ambiental" [Matt Ridley, no livro "Genoma"]. Ainda não há tratamentos, nada se pode fazer sobre isso.

Então o que devemos fazer ao saber que podemos nos submeter a exames e assim adquirir uma informação que, se positiva, dirá exatamente quando vamos ficar loucos e morrer? Podemos imaginar confronto mais claro com o Real totalmente sem sentido de uma contingência que determina nossa vida? Não admira que a maioria das pessoas (inclusive os cientistas que identificaram esse gene) prefira a ignorância -essa ignorância não é simplesmente negativa, já que seu vácuo abre espaço para a imaginação. Além disso, o fato de que, com a perspectiva das intervenções biogenéticas aberta pelo acesso ao genoma, a espécie modifica/redefine à vontade a SI MESMA, suas próprias coordenadas, efetivamente emancipa a humanidade das restrições de uma espécie limitada, de sua escravidão a "genes egoístas". 

Autolimitação conservadora

Essa emancipação, no entanto, tem um preço. Numa palestra em Marburg, Habermas repetiu sua advertência contra manipulações biogenéticas em seres humanos: "Com as intervenções no legado genético do homem, o domínio da natureza reverte a um ato de assumir-o-controle-de-si-mesmo, que modifica nossa autocompreensão genérico-ética e pode perturbar as condições necessárias de um modo de vida autônomo e um entendimento universalista da moral" [citado por Thorsten Jantschek, no jornal "Die Zeit" de 5 de julho de 2001]. Habermas vê aqui duas ameaças à espreita.

Primeiro, essas intervenções tornam imprecisos os limites entre o que nós criamos e o que cresceu espontaneamente, e portanto afeta a autocompreensão do indivíduo. Como um adolescente reagirá ao saber que suas tendências "espontâneas" (digamos, agressivas ou pacíficas) são resultado da intervenção intencional de outros em seu código genético? Isso não vai solapar o próprio núcleo de sua identidade como pessoa, ou seja, a noção de que desenvolvemos nossa identidade moral através da "Bildung", a dolorosa luta para formar/educar as tendências naturais de uma pessoa? Em última instância, a perspectiva das intervenções biogenéticas diretas torna sem sentido a própria idéia de educação.

Em segundo lugar, no plano intersubjetivo, essas intervenções biogenéticas darão origem a relações assimétricas entre os que são "espontaneamente" humanos e aqueles cujas características foram artificialmente manipuladas: algumas pessoas aparecerão como criadores privilegiados de outras pessoas...

No nível mais elementar, isso afeta nossa identidade sexual. O que está em jogo é não apenas a possibilidade de os pais escolherem o sexo dos filhos, mas o caráter das operações de mudança de sexo. Até hoje era possível justificá-las citando a lacuna entre as identidades biológica e psíquica de uma pessoa: quando um homem biológico se vê como uma mulher presa a um corpo de homem, por que não deveria poder mudar de sexo biológico e, assim, dar equilíbrio a sua vida sexual e emocional? No entanto, a possibilidade de manipulação biogenética abre uma perspectiva muito mais radical de manipulação da própria identidade psíquica.

Embora essa argumentação seja de uma simplicidade impecável, encerra um grande problema: o próprio fato da possibilidade das manipulações biogenéticas não modifica retroativamente nossa autocompreensão como seres "naturais", no sentido de que hoje experimentamos nossas próprias disposições "naturais" como algo "mediado", não apenas como algo dado imediatamente, mas algo que pode em princípio ser manipulado e é portanto simplesmente contingente? Não há como retornar ao imediato ingênuo: quando SABEMOS que nossas tendências naturais dependem da cega contingência genética, a adesão teimosa a essas tendências é tão falsa quanto a adesão a velhos hábitos "orgânicos" num universo moderno.

Assim, basicamente, o que Habermas está dizendo é: embora hoje saibamos que nossas disposições dependem da insignificante contingência genética, vamos fingir e agir como se não fosse o caso, de modo a mantermos nosso sentido de dignidade e de autonomia -o paradoxo, aqui, é que a autonomia só pode ser mantida proibindo o acesso à cega contingência natural que nos determina, isto é, em última instância, LIMITANDO a nossa autonomia e a liberdade de intervenção científica.

Não seria isso uma nova versão do antigo argumento conservador de que para mantermos nossa dignidade moral é melhor não saber certas coisas? Em suma, a lógica de Habermas é a seguinte: já que os resultados da ciência representam uma ameaça para nossa (noção predominante de) autonomia e liberdade, devemos reprimir a ciência -o preço que pagamos por essa solução é a separação fetichista entre ciência e ética ("Sei muito bem o que a ciência afirma; não obstante, para manter minha [aparência de] autonomia, prefiro ignorá-la e agir como se não soubesse"). Essa divisão nos impede de enfrentar a verdadeira pergunta: como essas novas condições nos forçam a transformar e reinventar as próprias noções de liberdade, autonomia e responsabilidade ética?

O que dizer do possível contra-argumento católico segundo o qual o verdadeiro perigo não é nossa efetiva redução a entidades não-espirituais, mas o próprio fato de que, na biogenética, NÓS, HOMENS, NOS TRATAMOS COMO TAL? Em outras palavras, o ponto principal não é termos ou não uma alma imortal etc. --é claro que temos--, mas que, ao lidarmos com a biogenética, perdemos a consciência disso e tratamos a nós mesmos como se fôssemos simples organismos biológicos.

No entanto, esse argumento apenas desloca o problema: nesse caso, não seriam os próprios fiéis católicos os sujeitos ideais para se envolver plenamente nas manipulações biogenéticas, já que seriam totalmente conscientes de estar lidando apenas com o aspecto material da existência humana, e não com o núcleo espiritual do homem? Em suma, eles deveriam ter permissão para fazer o que quisessem em biogenética, já que sua fé na alma humana etc. os impediria de reduzir o homem a um objeto de manipulações científicas. Assim, nossa pergunta volta com uma vingança: se os homens têm uma alma imortal ou uma dimensão espiritual autônoma, por que temer as manipulações biogenéticas?

Do ponto de vista psicanalítico, o cerne do problema está na autonomia da ordem simbólica. Suponha que eu seja impotente devido a algum bloqueio não resolvido em meu universo simbólico, e que eu tome Viagra em vez de me "educar" por meio do trabalho de resolver o bloqueio simbólico. A solução funciona, sou novamente capaz de atuar sexualmente, mas o problema permanece: Como o bloqueio simbólico em si será afetado por essa solução? Como ela será "subjetivada"? 

Lições de psicanálise

A situação aqui é totalmente insolúvel: a solução não será vivenciada como o resultado de uma elaboração simbólica do bloqueio. Nesse sentido, ela pode desbloquear o obstáculo simbólico em si, obrigando-me a aceitar sua total insignificância; ou pode gerar um desvio psicótico, provocando a volta do obstáculo em um nível psicótico mais fundamental (digamos, sou levado a uma atitude paranóica, vendo a mim mesmo como exposto ao capricho de um senhor cujas intervenções podem decidir meu destino). 

Existe sempre um preço simbólico a pagar por essas soluções "imerecidas". E, "mutatis mutandis", o mesmo vale para as tentativas de combater o crime por meio de intervenção bioquímica ou biogenética direta: quando se combate o crime submetendo os criminosos a tratamento bioquímico, obrigando-os a ingerir medicamentos contra o excesso de agressividade, deixa-se intacto o mecanismo social que desencadeou o potencial de agressividade nos indivíduos.

Outra lição da psicanálise é que --ao contrário da noção de que a curiosidade é inata aos seres humanos, de que no fundo de cada um exista uma "Wissenstrieb", a pulsão de saber-- a atitude espontânea do ser humano é a de "Não quero saber". Todo avanço no conhecimento é produzido por uma dolorosa luta contra propensões espontâneas. Voltemos um momento ao mal de Huntington: se em minha família existe um caso, deveria eu fazer o exame que dirá se (e quando) contrairei inexoravelmente a doença, ou não?

Se não puder suportar a perspectiva de saber quando morrerei, a solução ideal (mais fantasiosa que realista) talvez seja autorizar uma pessoa ou instituição em que eu confie totalmente a me examinar e NÃO ME CONTAR O RESULTADO, para me matar de maneira inesperada e indolor quando eu estiver dormindo, pouco antes do ataque da doença fatal, se o resultado for positivo... No entanto, o problema dessa solução é que eu sei que o Outro sabe (a verdade sobre minha doença), e isso estraga tudo, expondo-me a uma terrível e aflitiva suspeita.

Seria então a solução ideal a contrária: se eu suspeitar que meu filho pode ter a doença, eu o examino sem ele saber e depois o mato de modo indolor pouco antes do ataque? A fantasia máxima aqui seria a de uma instituição estatal anônima fazer isso com todos nós sem nosso conhecimento -porém, mais uma vez, surge a pergunta: nós sabemos (que o outro sabe) ou não? Está aberto o caminho para uma sociedade perfeitamente totalitária... O que é falso aqui é a premissa subjacente: a noção de que o dever ético máximo é o de proteger o Outro da dor, mantê-lo na ignorância protetora.

A conclusão inevitável é que, com a biogenética, não se trata tanto de perdermos a dignidade e a liberdade -na verdade sentimos que NUNCA AS TIVEMOS, PARA COMEÇO DE CONVERSA. Se hoje temos "terapias que tornam imprecisa a separação entre o que conquistamos por conta própria e o que conquistamos devido aos níveis de várias substâncias químicas em nossos cérebros" [Fukuyama, "Our Post-Human Future"], a própria eficiência dessas terapias não implica que "o que conquistamos por conta própria" também depende de um grau DIFERENTE de "níveis de substâncias químicas em nossos cérebros"? Então não é como se nos dissessem que, para citar o famoso título de Tom Wolfe, "Perdão, sua Alma Acaba de Morrer"-; o que nos dizem, efetivamente, é que nunca tivemos uma alma, para começo de conversa. 

Ilusão de dignidade

Se as alegações da biogenética estiverem certas, então a opção que enfrentamos hoje não é entre a dignidade humana e a geração tecnológica "pós-humana" de indivíduos, mas entre agarrar-se à ILUSÃO de dignidade e aceitar a REALIDADE do que somos.

Por isso, quando Francis Fukuyama afirma que "o desejo de reconhecimento tem uma base biológica, e essa base está relacionada aos níveis de serotonina no cérebro", nossa própria consciência desse fato não mina o sentimento de dignidade decorrente de sermos reconhecidos pelos outros? Não podemos tê-lo em ambos os níveis ao mesmo tempo -podemos tê-lo apenas ao preço de uma abjuração fetichista: "Embora eu saiba muito bem que minha auto-estima depende da serotonina, de qualquer modo a aprecio..."

Na página seguinte, Fukuyama expõe os três níveis para se conquistar auto-estima: "A maneira normal, e moralmente aceitável, de superar a baixa auto-estima era lutar consigo mesmo e com os outros, trabalhar duro, suportar sacrifícios às vezes dolorosos e finalmente ascender e ser visto como alguém que realizou isso.

O problema da auto-estima como é entendida na psicologia pop americana é que ela se torna um direito, algo que todo mundo precisa ter, seja ou não merecido. Isso desvaloriza a auto-estima e torna prejudicial sua busca. Mas então vem a indústria farmacêutica americana, que por meio de drogas como Zoloft e Prozac pode oferecer auto-estima engarrafada, elevando a serotonina no cérebro" ["Our Post-Human Future"].

A diferença entre a segunda e a terceira opções é muito mais assustadora do que pode parecer. Quando eu obtenho auto-estima porque a sociedade concorda que tenho direito a isso e oferece o reconhecimento de meus pares, trata-se na verdade de um paradoxo performático que se destrói a si mesmo; no entanto, quando a obtenho através de drogas, consigo a "coisa real".

Imaginemos o seguinte roteiro: eu participo de um concurso de perguntas e respostas; em vez do difícil processo de aprender, eu reforço minha memória com drogas -no entanto, a auto-estima que obtenho ao vencer o concurso ainda se baseia na conquista real, isto é, eu realmente me saí melhor que meu colega que passou noites tentando aprender todos os fatos importantes sobre o tema do concurso.

O contra-argumento intuitivo óbvio é que apenas meu adversário realmente tem o direito de sentir-se orgulhoso, porque seu resultado foi consequência de trabalho duro e árdua dedicação -no entanto, não há algo inerentemente humilhante e condescendente nessa posição, como ao dizermos para uma pessoa com deficiência mental que consegue tecer o cesto proverbial: "Você deve se orgulhar pelo que fez"?

Além disso, não consideramos justificável que alguém com um enorme talento natural para cantar se orgulhe de seu desempenho, embora estejamos conscientes de que seu canto se baseia mais em talento do que em esforço e estudo (o antigo problema Mozart-Salieri)? Entretanto, se eu melhorasse meu canto por meio de uma droga, não seria objeto de estima (a não ser na situação em que eu fizesse um grande esforço para inventar essa droga e a testasse em mim mesmo).

Portanto, não se trata simplesmente de trabalho duro e esforço "versus" a ajuda de uma droga: o ponto principal é que tanto o trabalho duro como o talento são considerados "parte de mim", do meu "Self", enquanto o aperfeiçoamento através da droga resulta de uma manipulação externa.

E, mais uma vez, isso nos leva de volta ao mesmo problema: quando SABEMOS que meu "talento natural" depende de uma substância química em meu cérebro, realmente importa, moralmente, se eu o obtive do exterior ou ao nascer? Para complicar ainda mais as coisas: E se minha própria disposição para me dedicar ao esforço interior, à disciplina e ao trabalho duro depender de uma substância química?

E se, para vencer um concurso, eu não tomar diretamente uma droga que reforce minha memória, mas "simplesmente" uma droga que reforce meu empenho e minha dedicação? Também é "trapaça"? Por que então Fukuyama passa da defesa da democracia liberal como "fim da história" para a ameaça representada pelas ciências do cérebro? A resposta parece fácil: a ameaça biogenética é uma versão nova e muito mais radical do "fim da história", que mina os próprios fundamentos da democracia liberal: os novos avanços científicos e tecnológicos potencialmente tornam obsoleto o sujeito liberal-democrata livre e autônomo.

Existe, porém, um motivo mais profundo para Fukuyama voltar-se para as ciências do cérebro, um motivo que envolve diretamente sua visão política: é como se a perspectiva das manipulações biogenéticas obrigasse Fukuyama a perceber o reverso sombrio de sua imagem idealizada da democracia liberal.

De repente, a propósito da ameaça biogenética, ele é forçado a confirmar todas as coisas que desapareceram magicamente de sua utopia liberal-democrata: as perspectivas sombrias de as corporações usarem o mercado livre para manipular as pessoas e dedicar-se a terríveis experimentos médicos, de os ricos criarem sua prole como uma raça especial, com capacidades físicas e mentais superiores, instigando assim uma nova guerra de classes.

Está claro para Fukuyama que a única maneira de conter esse perigo é reafirmar um forte controle estatal do mercado e desenvolver novas formas de vontade política democrática. (Embora seja fácil fazer graça com as óbvias simplificações de Fukuyama, há mesmo assim algo de refrescante em sua figura: em nosso espaço intelectual cheio de falsos protestos, finalmente um apologista da ordem existente totalmente dedicado -e não é de admirar que sua obra com frequência produza um inesperado grão de verdade.) 

Fim da história e do sujeito

Embora concordemos com tudo isso, somos tentados a acrescentar: não precisamos dessas medidas também independentemente da ameaça biogenética, apenas para controlar o terrível potencial da economia de mercado global? Talvez o problema não seja a biogenética em si, mas sobretudo o contexto social das relações de poder no qual ela funciona.

O problema de Fukuyama é portanto duplo: sua argumentação é ao mesmo tempo abstrata demais e concreta demais. Ele deixa de questionar todas as implicações filosóficas das novas ciências e tecnologias da mente, e deixa de situar essas ciências e tecnologias em seu contexto socioeconômico antagônico.

O que ele não compreende (e um verdadeiro hegeliano DEVERIA compreender) é a ligação necessária entre os dois "fins da história", a passagem necessária de um para outro: o "fim da história" liberal-democrata imediatamente se transforma em seu contrário, já que, no momento mesmo de seu triunfo, começa a perder sua própria base: o sujeito liberal-democrata.

A biogenética (e, de maneira geral, também o reducionismo cognitivista-evolucionário) deveria ser atacada de uma direção diferente. Bo Dahlbom está certo, em sua crítica de Daniel Dennett ["Mind is Artificial", no volume "Dennett and his Critics"], quando insiste no caráter SOCIAL da "mente".

Em primeiro lugar, as teorias da mente são obviamente condicionadas por seu contexto social e histórico: a noção de Dennett de diversos esboços concorrentes não exibe suas raízes no capitalismo tardio "pós-industrial", com seus motivos de concorrência, descentralização etc.? 

Fredric Jameson propôs recentemente uma leitura de "Consciousness Explained" [A Consciência Explicada] como uma alegoria do capitalismo atual. De modo ainda mais importante, Dennett insiste que as ferramentas -a inteligência exteriorizada de que os seres humanos dependem- são uma parte inerente da identidade humana: não tem sentido imaginar um ser humano como uma entidade biológica, SEM a rede complexa de suas ferramentas -essa idéia equivale a, por exemplo, um ganso ou um pássaro sem penas.

Ele não abre assim um caminho que deveria ser levado muito mais adiante que no próprio Dennett? Já que, para colocar nos bons e velhos termos marxistas, o homem é a totalidade de suas relações sociais, por que Dennett não dá o passo lógico seguinte e analisa diretamente essa rede de relações sociais?

Esse domínio da "inteligência exteriorizada", desde as ferramentas até, especialmente, a própria linguagem, e as relações sociais nela envolvidas, forma um domínio por si só, o do que Hegel chamou de "espírito objetivo", o domínio da substância artificial em oposição à substância natural.

A fórmula proposta por Dahlbom, portanto, é: da "Sociedade de Mentes" (a idéia desenvolvida por Minsky, Dennett e outros) às "Mentes de Sociedade", isto é, a mente humana como algo que só pode surgir e funcionar dentro de uma complexa rede de relações sociais e complementos mecânicos artificiais que "objetivam" a inteligência.

Agora podemos ver onde está o erro do projeto reducionista: o problema não é como reduzir a mente a processos neurais "materiais", substituir a linguagem da mente pela linguagem dos processos cerebrais, traduzir a primeira na segunda, mas, sobretudo, compreender como a mente pode surgir somente ao estar incrustada na rede de relações sociais e complementos materiais.

Deveríamos portanto mudar a ênfase da metáfora para a metonímia: o verdadeiro problema não é "Como seria possível as máquinas IMITAREM a mente humana?", mas: "Como a própria identidade da mente humana depende de complementos mecânicos externos, como ela incorpora as máquinas?" 

Controle remoto interior

Em março de 2002 a mídia relatou que Kevin Warwick, de Londres, tornou-se o primeiro ciber-homem: em um hospital de Oxford, seu sistema neurológico foi diretamente conectado a uma rede de computadores; ele é, portanto, o primeiro homem para o qual dados são fornecidos diretamente, sem passar pelos cinco sentidos. ISSO é o futuro: a combinação, e não a substituição, da mente humana com o computador.

Tivemos mais uma amostra desse futuro em maio de 2002, quando foi relatado que cientistas da Universidade de Nova York ligaram um chip de computador diretamente ao cérebro de um rato, de modo que se podia dirigir o rato (determinar a direção em que ele correria) por meio de um mecanismo semelhante ao de um carrinho com controle remoto.

Esse não é o primeiro caso de ligação direta entre um cérebro e uma rede de computadores: já existem ligações que permitem a pessoas cegas receber informações visuais elementares sobre seu entorno diretamente no cérebro, sem passar pelo aparato da percepção visual (olhos etc.); o que é novo, no caso do rato, é que pela primeira vez a "vontade" de um agente animal vivo -as decisões "espontâneas" sobre os movimentos que fará- é controlada por uma máquina externa.

A questão filosófica aqui é: como o infeliz rato "vivenciou" seu movimento, que na verdade foi decidido externamente? Ele continuou a "vivenciá-lo" como algo espontâneo, isto é, estava totalmente inconsciente de que seus movimentos eram dirigidos? Ou tinha consciência de que "alguma coisa estava errada", de que outro poder externo estava decidindo seus movimentos? E o que acontecerá quando o mesmo experimento for realizado em seres humanos (o que, não obstante as questões éticas, não deverá ser muito mais complicado que no caso do rato)?

Então, mais uma vez: Um ser humano dirigido continuará "vivenciando" seus movimentos como algo espontâneo, continuará totalmente inconsciente de que seus movimentos são dirigidos, ou terá consciência de que "alguma coisa está errada", de que outro poder externo está decidindo seus movimentos? E como, exatamente, aparece esse "poder externo"? Como algo "dentro de mim", um impulso interno incontível, ou como uma simples coerção externa? Também são sintomáticas as possíveis aplicações desse mecanismo mencionadas por cientistas e jornalistas: o acoplamento de ajuda humanitária e campanha antiterrorista -poderíamos usar ratos ou outros animais dirigidos para encontrar vítimas de um terremoto sob os destroços E para atacar terroristas sem pôr em risco vidas humanas...

A tendência no desenvolvimento dos computadores é na direção de sua invisibilidade: as grandes máquinas ronronantes com misteriosas luzes piscando serão cada vez mais substituídas por pequenas peças adaptadas de modo imperceptível a nossos ambientes "normais", permitindo que funcionem mais suavemente. Os computadores, em vez de se tornarem os monstros vorazes vistos nos filmes de ficção científica, se tornarão tão pequenos e imperceptíveis que serão invisíveis, em toda parte e em lugar nenhum, tão poderosos que desaparecerão de vista.

Basta lembrarmos os automóveis de hoje, em que muitas funções são realizadas suavemente devido a pequenos computadores que a maioria de nós não percebe (acionamento dos vidros, aquecimento...); no futuro próximo, teremos cozinhas, ou até vestidos, copos e sapatos computadorizados. Longe de ser uma questão de um futuro distante, essa invisibilidade já está aqui: daqui a um ano a Philips pretende lançar no mercado um telefone e reprodutor de música que será entremeado ao tecido de um paletó de tal forma que será possível não apenas vestir o paletó da maneira habitual, sem se preocupar com o maquinário digital, mas também lavá-lo sem remover nada.

Esse desaparecimento do nosso campo de experiência sensual (visual) não é tão inocente quanto possa parecer: a própria característica que tornará fácil lidar com o paletó Philips -não mais uma máquina volumosa e delicada, mas quase uma prótese orgânica de nosso corpo- lhe conferirá um caráter fantasmagórico de Mestre invisível todo-poderoso -a prótese maquínica será menos um aparato externo com o qual interagimos e mais uma parte de nossa experiência direta como organismo vivo, com o que nos descentrará a partir do interior.

Por esse motivo, é enganoso o paralelo entre a crescente invisibilidade dos computadores e o conhecido fato de que quando as pessoas sabem suficientemente bem alguma coisa deixam de ter consciência dela. O sinal de que aprendemos uma língua é que não precisamos mais nos concentrar em suas regras: não apenas a falamos "espontaneamente", como nos concentrarmos ativamente em suas regras nos impede de falar com fluência. No entanto, no caso da língua, tivemos de aprendê-la antes, "tê-la na cabeça", enquanto os computadores invisíveis em nossos ambientes estão aí agindo não "espontaneamente", mas apenas cegamente.

Então, o que teria dito Hegel a respeito do projeto genoma e das intervenções biogenéticas? Qualquer que fosse sua reação, certamente não teria sido retrair-se com medo, preferindo a ignorância ao risco. Hegel não se alegraria com "Tu És Genoma", nessa versão definitiva e fragmentadora do antigo "Tu És Isso", como o exemplo máximo do julgamento infinito cujos dois outros famosos exemplos hegelianos são "O espírito é um osso" e "O "Self" é dinheiro"?

Ao contrário de Jürgen Habermas, deveríamos assim afirmar a necessidade ética de assumirmos a plena objetivação do genoma: essa redução do meu ser substancial à fórmula insensível do genoma me força a atravessar o fantasmagórico "étoffe du moi", o estofo de que são feitos nossos egos -e é somente através desse esforço que pode emergir a subjetividade propriamente dita.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Boitempo Editorial anuncia o lançamento de novo livro

Boitempo Editorial anunciou ontem (11/01) que seu primeiro lançamento de 2011 será o livro "Em defesa das causas perdidas" de Slavoj Zizek. Lançado originalmente pela Verso Books, em abril de 2008, chegará agora em português ao Brasil. Não foi confirmada a data para o lançamento.

Previsto inicialmente para o segundo semestre de 2010, o lançamento de dois livros do filósofo esloveno sofreram atrasos e foram retirados das edições lançadas no último ano. Ainda é aguardada a confirmação de um possível lançamento de "Quem falou em totalitarismo".

A Boitempo Editorial publicou quatro livros de Zizek no Brasil: "Bem-vindo ao deserto do Real!" (2003), "Às portas da revolução" (2005), "A visão em paralaxe" (2008) e "Lacrimae Rerum" (2009).


terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Slavoj Zizek no Democracy Now! parte 1 PT_BR





Primeira parte da entrevista de Slavoj Zizek ao Democracy Now! em 18 de outubro de 2010, sobre escalada de intolerância na Europa e mais. Legendado em português.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Para sair da armadilha

Texto publicado em galego (português da Galiza).

Os movimentos de protesto contra as políticas de austeridade que se estendérom por Europa -em Grécia e na França, mas também, em menor medida, em Irlanda, Itália e Espanha- dérom nascimento a duas ficçons. A primeira, forjada polo poder e meios de comunicaçom de massas, apoia-se na despolitizaçom da crise: as medidas de restriçom orçamentária decretadas polos governos traem-se à tona nom como umha opçom política, mas como umha resposta técnica a imperativos financeiros. A liçom é que, se queremos que a economia se estabilizar, devemos apertar-nos os cintos. A outra história, a dos grevistas e manifestantes, postula que as medidas de austeridade som só umha ferramenta nas maos do capital para desmantelar os últimos vestígios do Estado do Bem-estar. Em um caso, o Fundo Monetário Internacional (FMI) aparece como um árbitro que tem a missom de fazerem-se respeitar a ordem e a disciplina; no outro, cumpre mais umha vez o seu papel de soldado das finanças globalizadas.
Ainda que cada um dos pontos de vista contem alguns elementos de verdade, ambos som fundamentalmente erróneos. Obviamente, a estratégia defensiva dos líderes europeus nom tem em conta que o défice dos orçamentos públicos é resultado em grande medida dos milheiros de milhons esbanjados em resgatar os bancos, nem que o crédito acordado em Atenas servirá principalmente para pagar a sua dívida com os bancos franceses e alemaos. A ajuda europeia à Grécia nom tem mais funçom que socorrer o sector bancário privado. Em frente, o argumento dos descontentes volve trazer a indigência da esquerda contemporánea: nom contém nengum elemento programático, só umha negativa a ver desaparecer as conquistas sociais. A utopia do movimento social já nom consiste em cambiar o sistema, mas em se convencer de que este pode conformar-se com sustentar o Estado do Bem-estar. Esta posiçom defensiva chama a umha objecçom difícil de refutar: se queremos continuar aferrados ao sistema capitalista globalizado, nom resta outra opçom que aceitar os sacrifícios impostos aos trabalhadores, aos estudantes e aos reformados.
Algo é seguro: trás décadas de Estado do Bem-estar, durante as quais os cortes permaneciam limitados e sempre acompanhados pola promessa de as cousas ir volver algum dia à normalidade, agora estamos entrando em um estado de emergência económico permanente. Umha nova era, que trai consigo a promessa de planos de austeridade cada vez mais severos, de cortes cada vez mais drásticos em matéria de saúde, reformados e educaçom, assim como umha maior precarizaçom do emprego. De costas contra a parede, a esquerda deve enfrentar o temível desafio de explicar que a crise económica é ante todo umha crise política - que nom tem nada de “natural”, que o sistema existente é resultado de umha série de decisons intrinsecamente políticas-, sem deixar de ser ciente de que este sistema -sempre que um se situe nesse quadro-, obedece a umha lógica pseudo-natural que nom se pode burlar as regras sem provocar um desastre económico.
Seria ilusório aguardar que a crise -que segue activa- tenha consequências limitadas e que o capitalismo europeu siga garantindo um nível de vida correcto a umha maoiria da populaçom. E avondo surpreendente conceiçom da “radicalidade” é basear-se unicamente no concurso das circunstáncias para amolecer os destroços da crise… Certamente, nom som anti-capitalistas o que faltam. Estamos literalmente mergulhados em acusaçons contra os horrores do capitalismo: dia atrás dia inundam-nos os informes jornalísticos, as notas da TV e os best-sellers dedicados às indústrias que destroçam o ambiente, aos banqueiros corruptos que engordam mediante bonificaçons extraordinárias, enquanto os seus cofres se enchem de dinheiro público esvaziando as arcas, aos provedores das marcas de roupa que empregam nenos doze horas ao dia. Porém, por duras que podam parecer estas críticas, perdem o gume quando à espada lhe toca saír da bainha: nunca questionam o marco democrático-liberal dentro do que o capitalismo causa os seus estragos. O objectivo, explícito ou implícito, invariavelmente consiste em regular o capitalismo -baixo a pressom dos meios de comunicaçom de massas, do poder legislativo ou de investigaçons policiais honestas-, mas nom em discutir os mecanismos institucionais do estado de direito burguês.
Ai é onde a análise marxista conserva toda a sua frescura, tal vez hoje mais do que nunca. Para Marx, a questom da liberdade nom se acha à vanguarda dentro da esfera política, ao menos aquela à que se referem as instituiçons internacionais ao examinarem um país: as eleiçons som livres? os juízes som independentes? respeitam-se os direitos humanos? A clave para umha liberdade verdadeira há que procurá-la mais bem na rede “apolítica” das relaçons sociais, desde o trabalho até a família, onde a que aportaria um cámbio necessário nom seria a reforma política mas a transformaçom das relaçons sociais no aparelho de produçom. Com efeito, nunca se pede aos votantes que determinem quem deve possuir o que, ou que opinem sobre as normas de gestom empresariais vigorantes no seu lugar de trabalho. É inútil aguardar que a esfera política aceda a estender a democracia a essas áreas relegadas longe delas, por exemplo, organizando bancos “democráticos” controlados polos cidadaos. Neste ámbito, as transformaçons radicais situam-se para além da esfera dos direitos legais.
Naturalmente, às vezes sucede que os procedimentos democráticos conduzem aos logros sociais. Mas nom deixam de ser umha peça mais do aparelho de Estado burguês, cujo papel consiste em garantir a reproduçom óptima do capital. Assim pois, devem derrubar-se dous fetiches à vez: o das “instituiçons democráticas” por um lado, mas também o da sua contraparte negativa, a violência.
No centro do conceito marxista de luita de classes prevalece a ideia de a vida social “pacífica” manifestar a vitória (temporária) da classe dominante. Desde o ponto de vista dos oprimidos, a própria existência do Estado enquanto aparelho da classe dominante, é um ato de violência. O credo liberal -a violência nom é legítima, mas às vezes necessária- resulta amplamente insuficiente. Desde umha perspectiva radical e emancipadora, os termos do postulado deveriam inverter-se: a violência dos oprimidos sempre é legítima -pois o seu próprio status é resultado da violência- mas nunca necessária: a eleiçom de recorrer ou nom à força contra o inimigo reveste estritamente umha consideraçom estratégica.
No estado de emergência económica que conhecemos, é patente que estamos a tratar nom com movimentos financeiros cegos mas com intervençons estratégicas maduramente reflexionadas polos poderes públicos e as instituiçons financeiras, que entendem que devem resolver a crise segundo os seus próprios critérios e no seu próprio benefício. Nestas condiçons, como nom considerar umha contra-ofensiva?
Estas consideraçons nom podem mais que quebrar a comodidade dos intelectuais radicais. Ao levarem umha existência cómoda e protegida, nom som tentados a construírem cenários catastróficos para justificarem a conservaçom do se nível de vida? Para muitos deles, se tem que se produzir umha revoluçom, melhor que for bem longe da sua casa -em Cuba, Nicarágua ou Venezuela- para dar calor aos seus coraçons, mas sem deixar de garantir a promoçom das suas carreiras. Porém, com a derruba do Estado do Bem-estar nas economias industriais avançadas, os intelectuais poderiam achar o seu momento da verdade: queriam um cámbio real, agora podem-no ter.
Nada justifica que o estado de emergência económica permanente conduza a esquerda a abandonar o paciente trabalho intelectual, sem “utilidade” prática imediata. Porém, de modo progressivo vai desaparecendo a verdadeira funçom do pensamento. Nom propor soluçons aos problemas que afronta “a sociedade” -isto é, o Estado e o Capital-, mas pensar no jeito mesmo em que se colocam essas questons. É dizer, perguntar sobre a maneira em que percebemos um problema dado.
Durante o último período do capitalismo post 1968, a própria economia -a lógica do mercado e a competência- impujo-se como ideologia hegemónica. No ámbito da educaçom, por exemplo, a escola representa a cada vez menos um serviço público independente do mercado, mimado polo Estado e santuário dos valores ilustrados (liberdade, igualdade, fraternidade). Em virtude da fórmula litúrgica “a menos custos, maior eficiência”, deixou-se invadir por diversas formas de parceria entre os sectores público e privado. No ámbito político, o sistema eleitoral que organiza e legitima o poder parece tomar cada vez mais como modelo a livre empresa: o escrutínio concebe-se como umha transacçom comercial durante a qual os votantes “compram” o artículo capaz de melhor preservar a ordem social, de castigar os criminais, etc.
Em virtude do mesmo princípio, funçons antes preservadas à força pública, como a gestom dos cárceres, som agora privatizáveis. O exército já nom se baseia mais no serviço militar, mas no mercenariado. Mesmo a burocracia estatal perdeu o seu carácter universal hegeliano, como mostra até o cansaço o dispositivo berlusconiano. Na Itália de hoje, é a base burguesa a que directamente exerce o poder legal, explorando-o aberta e inescrupulosamente com o único fim de proteger os seus interesses. Mesmo as relaçons de parelha apoiam-se nas leis do mercado: speed dating, citas por Internet ou agências matrimoniais… os serviços prestados aos futuros companheiros encorajam-nos a se considerarem mercadorias, encarregam-se de exaltar as suas virtudes e seleccionam as suas melhores fotos.
Nos confins desta constelaçom,  a ideia mesma de umha transformaçom radical da sociedade semelha um sonho impossível. Mas é justamente esse “impossível” o que deve deter-nos e fazer-nos reflexionar. Na atualidade, a decisom entre o que se pode e o que nom se pode organiza-se de jeito estranho, com um mesmo excesso na definiçom de cada categoria. Por um lado, no campo do lazer e das tecnologias, insistem-nos com que “nada é impossível”: podemos desfrutar de umha ampla gama de serviços sexuais, de arquivos enciclopédicos de cançons, filmes e séries de televisom, que estám ao nosso dispor mediante pagamento electrónico; e até podemos viajar ao espaço (se somos multimilionários). E prometem-nos que, num futuro achegado, será “possível” optimizar as nossas capacidades físicas e psíquicas mediante a manipulaçom do genoma humano. Mesmo o sonho tecnológico da imortalidade humana semelha estar ao alcanço da mao, graças à transformaçom das nossas identidades em “software” para descarregar ao disco rígido.
No ámbito sócio-económico, em cámbio, a nossa época caracteriza-se pola crença de a humanidade chegar à sua completa maturidade, depois de ser capaz de renunciar às velhas utopias milenárias e aceitar as limitaçons da realidade (quer dizer, da realidade capitalista), com todos os impossíveis que a armam. O seu lema, o seu primeiro mandamento, é “você nom pode”: nom pode participar em grandes açons coletivas, que necessariamente rematarám em terror totalitário, nom pode aferrar-se ao Estado do Bem-estar, baixo pena de perder a sua competitividade e provocar umha crise económica, nom pode sair-se do mercado mundial, agás se jura fidelidade a Coreia do Norte. A ecologia, na sua versom ideológica, agrega a este inventário as suas próprias proibiçons, esse famosos valores da terra -nom mais de dous graos de aquecimento climático- baseados em opinions de expertos.
Hoje, a ideologia dominante esforça-se em convencer-nos da impossibilidade dum cámbio radical, da impossibilidade de abolir o capitalismo, da impossibilidade de crer em umha democracia que nom se reduza a um jogo parlamentar corrupto e que por ende logre visibilizar o antagonismo que atravessa as nossas sociedades. Esta é a razom pola que Lacan, para superar essas barreiras psicológicas, substituía a frase “tudo é possível” pola mais sóbria observaçom de “o impossível acontece”.
Evo Morales em Bolívia, Hugo Chávez na Venezuela ou o governo maoísta no Nepal chegárom ao poder mediante eleiçons democráticas “justas”, nom mediante a insurgência. A sua situaçom nom é menos “objectivamente” desesperada: tomam o fluxo da história a contra-corrente e para fazê-lo nom podem apoiar-se em “tendência objectiva” nengumha. Tudo o que podem fazer é improvisar em umha situaçom aparentemente sem saída. Mas, por acaso, isso nom lhes dá umha liberdade excepcional? E nom estamos todos, na esquerda, no mesmo barco?
A nossa situaçom actual coloca-se no lugar exactamente contrário ao que prevalecia a começos do século XX, quando a esquerda sabia o que fazer, mas devia aguardar pacientemente o momento propício para actuar. Hoje nom sabemos o que fazer, mas devemos actuar de imediato, porque a nossa inércia poderia ter consequências desastrosas. Mais que nunca estamos obrigados a viver “como se fôssemos livres”.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Curtos-circuitos - Slavoj Žižek: Introdução da série Curtos-circuitos

Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

Um curto-circuito ocorre quando há uma conexão defeituosa na rede – defeituosa, claro, do ponto de vista do bom funcionamento da rede. O choque do curto-circuito, portanto, não é uma das melhores metáforas para uma leitura crítica? Um dos mais eficazes procedimentos críticos não é cruzar os fios que normalmente não se tocam: tomar um grande clássico (texto, autor, noção), e lê-lo em curto-circuito, através das lentes de um autor, texto, aparato conceitual “menor” (“menor” deve ser entendido aqui no sentido de Deleuze: não “de menor qualidade”, mas marginalizado, repudiado pela ideologia hegemônica, ou lidar com um tópico “inferior”, menos digno)? Se a referência menor for bem escolhida, tal procedimento pode conduzir a insights que irão solapar e destruir completamente nossas percepções comuns. Isto é o que fez Marx, entre outros, com a filosofia e com a religião (gerando um curto-circuito na especulação filosófica através das lentes da economia política, isto é, da especulação econômica); isto é o que Freud e Nietzsche fizeram com a moralidade (gerando um curto-circuito entre as mais elevadas noções éticas através das lentes da economia libidinal inconsciente). O que tal leitura alcança não é uma simples “dessublimação”, uma redução do conteúdo intelectual mais elevado à sua causa econômica ou libidinal inferior; o objetivo de tal abordagem é, antes, o inerente descentramento do texto interpretado, que traz à luz seu “impensado”, seus pressupostos e conseqüências recusados.
         E isso é o que a série “Curtos-circuitos” [Short Circuits] quer fazer, repetidamente. A premissa subjacente da série é que a psicanálise lacaniana é um instrumento privilegiado para tal abordagem, cuja proposta é iluminar um texto comum ou formação ideológica tornando-o legível de uma maneira totalmente nova – a longa história das intervenções lacanianas em filosofia, religião, artes (das artes visuais, cinema, à música e à literatura), ideologia e política, justificam essa premissa. Esta, então, não é uma nova série de livros de psicanálise, mas uma série de “conexões no campo freudiano” – de curtas intervenções lacanianas em arte, filosofia, teologia e ideologia.
         A série “Curtos-circuitos” pretende reviver uma prática de leitura que confronta um texto clássico, um autor ou noção com seus próprios pressupostos ocultos, e então revelar sua verdade recusada. O critério básico para os textos que serão publicados é que eles efetuem tal curto-circuito teórico. Depois de ler um livro desta série, o leitor não deverá ter simplesmente aprendido algo novo: a questão é torná-lo ciente de outro lado – perturbador – de alguma coisa que ele conhecia o tempo todo.      

[Os títulos dos livros que compõem a série Short Circuits editada por Slavoj Žižek e publicada por The MIT Press são: The Puppet and the Dwarf: The Perverse Core of Christianity, Slavoj Žižek; The Shortest Shadow: Nietzsche's Philosophy of the Two, Alenka Zupančič; Is Oedipus Online? Siting Freud after Freud, Jerry Aline Flieger; Interrogation Machine: Laibach and NSK, Alexei Monroe; The Parallax View, Slavoj Žižek; A voice and nothing more, Mladen Dolar]

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Amor impiedoso da morte - Por que Cristo morreu na cruz? Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte

Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


Por que Cristo morreu na cruz?

            Como, então, nós rompemos o impasse do consumo parcimonioso, se essas duas saídas são falsas? Talvez seja a noção cristã de ágape que aponte uma saída: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho, que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna” (João 3:16). Como, exatamente, discernimos este princípio básico da fé cristã?[i] Os problemas emergem no momento em que compreendemos este “oferecendo seu único Filho”, i.e., a morte de Cristo, como um gesto de sacrifício entre Deus e o homem. Se afirmamos que, pelo sacrifício do que é mais caro a Ele, Seu próprio filho, Deus redime a humanidade, comprando seus pecados, então há em última instância apenas duas maneiras de se explicar este ato: ou o próprio Deus demanda essa retaliação, i.e., Cristo se sacrifica como o representante da humanidade para satisfazer a necessidade de retribuição a Deus seu pai; ou Deus não é onipotente, i.e., Ele é, como um herói trágico grego, subordinado a um Destino maior: Seu ato de criação, como o ato fatídico de um herói grego, traz terríveis conseqüências inesperadas, e a única maneira para que ele restabeleça o equilíbrio de justiça é sacrificar o que Lhe é mais precioso, Seu próprio filho – neste sentido, o próprio Deus é o derradeiro Abraão. O problema fundamental da cristologia é o de como evitar essas duas leituras do sacrifício de Cristo que se impõem como óbvias:
Qualquer idéia de que Deus ‘necessita’ de reparação, seja de nós ou de nossos representantes deveria ser banida, bem como a idéia de que há algum tipo de ordem moral que está acima de Deus e à qual Ele deve se conformar exigindo reparação.[ii]
            O problema é, claro, como evitar essas duas opções, quando o próprio texto da Bíblia parece apoiar sua premissa comum: o ato de Cristo é repetidamente designado como “resgate”, pelas palavras do próprio Cristo, por outros textos bíblicos, bem como pelos mais proeminentes comentadores da Bíblia. Jesus, ele mesmo, diz que veio “para dar sua vida em resgate de muitos (Marcos 10:45); Timóteo 2:5-6 fala de Cristo como o “mediador entre Deus e a humanidade (...) que ofereceu sua vida como um resgate para todos”; o próprio São Paulo, quando estabelece que os cristãos são escravos que foram “comprados por preço” (Coríntios 6:20), implica a noção de que a morte de Cristo deveria ser concebida como compra de nossa liberdade. Assim, nós temos um Cristo que, através de seu sofrimento e morte, paga o preço pela nossa libertação, nos redimindo do fardo do pecado; se nós, então fomos libertados do cativeiro do pecado e do medo da morte através da morte e ressurreição de Cristo, quem exigiu esse preço? A quem o resgate foi pago? Alguns dos antigos escritores cristãos, percebendo claramente este problema propuseram uma solução lógica, quando não herética: na medida em que o sacrifício de Cristo nos liberta do poder do Demônio (Satã), então a morte de Cristo foi o preço que Deus teve que pagar ao Demônio, nosso “dono” quando vivemos em pecado, a fim de que o Demônio nos libertasse. Mais uma vez, aí reside o impasse: se Cristo é oferecido em sacrifício ao próprio Deus, surge a questão de por que Deus exige esse sacrifício.  Era ainda o Deus ciumento e cruel que exigia um alto preço para se reconciliar com a humanidade que o traiu? Se o sacrifício de Cristo foi oferecido a mais alguém (o Demônio), então temos o estranho espetáculo de Deus e o Diabo como parceiros numa troca.
            Claro, a morte sacrifical de Cristo é fácil de ser “entendida”, há uma tremenda “força psicológica” neste ato: quando somos assombrados pela ideia de que as coisas estão erradas e que somos afinal responsáveis por isso, de que há alguma coisa profundamente errada inerente à própria existência da humanidade, de que nós somos sobrecarregados com uma tremenda culpa que nunca poderemos reparar, a ideia de Deus, o ser absolutamente inocente, sacrificando-se por nossos pecados pelo amor infinito a nós e então aliviando-nos de nossa culpa, serve como prova de que nós não estamos sozinhos, de que temos importância para Deus, de que Ele cuida de nós, de que somos protegidos pelo infinito amor do Criador, enquanto que, ao mesmo tempo, nos tornamos infinitamente endividados com Ele. O sacrifício de Cristo serve então como lembrança e incitação eternas a conduzir uma vida ética – o que quer que façamos, devemos sempre lembrar que o próprio Deus deu Seu filho por nós... No entanto, tal conta é claramente insuficiente, na medida em que tem que explicar seus atos em termos teológicos inerentes, não em termos de mecanismos psicológicos. O enigma permanece, e mesmo os mais sofisticados teólogos (como Anselmo de Canterbury) tendem a regredir para a armadilha do legalismo. De acordo com Anselmo, quando há pecado e culpa, tem de haver uma satisfação, algo tem que ser dado pelo qual a ofensa causada pelo pecado humano será purgada. Contudo, a própria humanidade não é forte o bastante para proporcionar essa satisfação necessária – apenas Deus pode fazê-lo. A única solução é, então, a encarnação, a emergência [emergence] de um Deus-homem, de uma pessoa que é inteiramente divina e inteiramente humana: como um Deus, ele tem a habilidade para pagar a satisfação requerida, e como um homem, ele tem a obrigação de pagar.[iii]
            O problema dessa solução é que a noção legalista do caráter inexorável da necessidade de pagar pelo pecado (o delito deve ser compensado) não é questionada, mas simplesmente aceita – a questão aqui é realmente muito ingênua: por que Deus não nos perdoa diretamente? Por que ele tem que obedecer à necessidade de pagar pelo pecado? Não é um princípio básico do cristianismo precisamente o oposto, a suspensão desta lógica legalista da retaliação, a ideia de que através do milagre da conversão um Novo Começo é possível, através do qual as dívidas passadas (pecados) são simplesmente apagadas? Seguindo uma linha aparentemente similar, mas com uma ênfase radicalmente deslocada, Karl Barth oferece uma tentativa de resposta em seu ensaio “O Juiz Julgado em Nosso Lugar”: Deus como juiz passou primeiro por um julgamento da humanidade, e então se tornou humano e pagou ele mesmo o preço, tomando sobre si a punição, “a fim de que desta maneira seja efetuada nossa reconciliação com ele, e nossa conversão a ele”.[iv] Então, colocando em termos um tanto inadequados, Deus se tornou homem e se sacrificou a fim de estabelecer o exemplo derradeiro que evocaria nossa simpatia por Ele, e nos converteria a Ele... Esta ideia foi claramente articulada primeiramente por Abelardo:
O Filho de Deus assumiu nossa natureza, e tomou-a sobre si mesmo para nos ensinar pela palavra e pelo exemplo, mesmo ao ponto da morte, desta forma unindo-nos a Ele através do amor.[v]
            A razão para que Cristo tenha que sofrer e morrer não diz respeito aqui à noção legalista de retaliação, mas ao edificante efeito religioso-moral de sua morte em nós, humanos pecadores: se Deus nos perdoasse diretamente, isso não nos transformaria, tornando-nos homens novos e melhores – somente a compaixão e sentimentos de gratidão e dívida provocadas pela cena do sacrifício de Cristo que tem o poder necessário para nos transformar... é fácil ver que alguma coisa está errada neste raciocínio: não é este um Deus estranho, que sacrifica seu próprio filho, o que há de mais importante para ele, apenas para impressionar os seres humanos? As coisas se tornam ainda mais estranhas se nos detivermos na ideia de que Deus sacrificou seu Filho a fim de nos unir a Ele através do Amor: o que estava em jogo então não era apenas o amor de Deus por nós, mas também seu desejo (narcisista) de ser amado por nós, humanos – Deus, nesta leitura, não é estranhamente semelhante à governanta louca de Heroine, de Patricia Highsmith, que ateia fogo em sua casa para poder provar sua devoção à família salvando as crianças do furioso incêndio? Nesta linha, Deus primeiro causa a Queda (i.e., provoca a situação na qual nós precisamos dele) e então nos redime, i.e., tira-nos da confusão pela qual é Ele o responsável.
            Isto significa, então, que o Cristianismo É uma religião falha? Ou há uma leitura diferente possível da Crucificação? O primeiro passo para sair dessa dificuldade é relembrar as declarações de Cristo que perturbam – ou antes, simplesmente suspendem – a lógica circular da vingança e punição destinada a restabelecer o equilíbrio de Justiça: em vez de “Olho por olho!”, temos “Se alguém esbofeteia sua face direita, ofereça-lha a outra face!”. O ponto aqui não é um masoquismo estúpido, aceitação humilde da humilhação, mas o esforço para interromper a lógica circular do restabelecimento do equilíbrio de justiça. Nessa mesma linha, o sacrifício de Cristo, com sua natureza paradoxal (é a mesma pessoa contra qual nós, seres humanos, pecamos, cuja verdade traímos, que expiou e pagou o preço por nossos pecados), suspende a lógica de pecado e punição, de retaliação legal ou ética, do “acerto de contas”, trazendo-a ao ponto da auto-referência. A única maneira de alcançar essa suspensão, romper a cadeia de crime e punição/retaliação, é assumir a disposição total para o auto-apagamento. E o AMOR, na sua forma mais elementar, não é outra coisa do que o gesto paradoxal de quebrar a cadeia da retaliação.
            O terceiro passo é deter-se na noção de Cristo como o mediador entre Deus e a humanidade: para que a humanidade seja restaurada a Deus, o mediador deve se sacrificar. Em outras palavras, enquanto Cristo está aqui, não pode haver Espírito Santo, que É a figura da reunificação entre Deus e a humanidade. Cristo como mediador entre Deus e a humanidade é, em termos atuais desconstrucionistas, a condição de possibilidade E a condição de impossibilidade entre os dois: como mediador, ele é ao mesmo tempo o obstáculo que impede a total mediação dos pólos opostos. Ou, para colocar em termos hegelianos do silogismo cristão: há duas “premissas” (Cristo é o filho de Deus, inteiramente divino, e Cristo é filho do homem, inteiramente humano), e para unir os pólos opostos, para chegar à “conclusão” (a humanidade está totalmente unida com Deus no Espírito Santo), o mediador deve apagar-se do quadro. A morte de Cristo não é parte do ciclo eterno de encarnação e morte divinas, no qual Deus repetidamente aparece e retira-se para si mesmo, em seu além. Como colocou Hegel, o que morre na cruz NÃO é uma encarnação humana do Deus transcendente, mas o próprio Deus do Além. Através do sacrifício de Cristo, o próprio Deus não é mais além, mas passa para o Espírito Santo (da comunidade religiosa). Em outras palavras, se Cristo fosse o mediador entre duas entidades separadas (Deus e a humanidade), sua morte significaria que não há mais uma mediação, que as duas entidades estão novamente separadas. Então, obviamente, Deus deve ser o mediador em um sentido mais forte: não se trata de que, no Espírito Santo, não há mais necessidade de Cristo por que os dois pólos estão diretamente unidos; para esta mediação ser possível, a natureza de ambos os pólos deve ser radicalmente modificada, i.e., em um único movimento, ambos devem sofrer uma transubstanciação. Cristo é, por outro lado, o meio/mediador evanescente através do qual a própria morte do Deus-Pai “passa para” o Espírito Santo e, por outro lado, o meio/mediador evanescente através de cuja morte a própria comunidade humana “passa para” o novo estágio espiritual.
            Essas duas operações não são separadas, elas são os dois aspectos de um único e mesmo movimento: o mesmo movimento através do qual Deus perde o caráter de Além transcendental e passa para o Espírito Santo (o espírito da comunidade de crentes) EQUIVALE ao movimento através do qual a comunidade humana “decaída” é elevada para o Espírito Santo. Em outras palavras, não se trata de que, no Espírito Santo, homens e Deus se comuniquem diretamente, sem a mediação de Cristo; trata-se, antes, de que eles coincidem diretamente – Deus NÃO É SENÃO o Espírito Santo da comunidade de crentes. Cristo tem que morrer, não para permitir a comunicação direta entre Deus e a humanidade, mas porque não há mais nenhum Deus transcendental com quem se comunicar.
            Como observou recentemente Boris Groys,[vi] Cristo é o primeiro e único Deus totalmente “ready made” na história das religiões: Ele é totalmente humano, portanto indistinguível dos outros homens comuns – não há nada em sua aparência física que faça dele um caso especial. Assim, da mesma maneira que o mictório ou a bicicleta de Duchamp não eram objetos de arte por causa de suas qualidades inerentes, mas por causa do lugar que eles ocupavam, Cristo não é Deus por causa de suas qualidades inerentes “divinas”, mas porque, precisamente como inteiramente humano, ele é o filho de Deus. Por esta razão, a atitude propriamente cristã a respeito da morte de Cristo não é a de um apego melancólico a sua figura morta, mas a da infinita alegria: o horizonte derradeiro da Sabedoria pagã é a melancolia – em última instância, tudo retorna ao pó, deve-se aprender o desapego, a renunciar ao desejo – enquanto que, se alguma vez houve uma religião que NÃO é melancólica, é o cristianismo, apesar da falsa aparência de apego melancólico a Cristo como objeto perdido.
            O sacrifício de Cristo é, então, num sentido radical, SEM SENTIDO: não um ato de troca, mas um gesto supérfluo, excessivo, injustificável, destinado a demonstrar Seu amor por nós, pela humanidade decaída. É como quando, em nossa vivência cotidiana, queremos demonstrar a alguém o quanto nós realmente a amamos, e só podemos fazê-lo através de um gesto de gasto supérfluo. Cristo não “paga” por nossos pecados – como foi esclarecido por São Paulo, é a própria lógica do pagamento, da troca, que, de certa forma, É o pecado, e a aposta do ato de Cristo é nos mostrar que a cadeia de trocas pode ser interrompida. Cristo não redime a humanidade pagando o preço por nossos pecados, Cristo, literalmente, APAGA-os, retroativamente os “desfaz” através do amor.    

[i] Quanto à leitura materialista desta noção, ver capítulos 11-15 de The Fragile Absolute.

[ii] O'COLLINS, G. Christology, Oxford: Oxford University Press 1995, p. 286-287.

[iii] Eu conto aqui com Alister E. McGrath, An Introduction to Christianity, Oxford: Blackwell 1997, p. 138-139.

[iv] Citado em MCGRATH, p. 141.

[v] Idem., p. 141-142

[vi] Conversa privada, outubro de 1999.

sábado, 1 de janeiro de 2011


Como Ler Lacan
Slavoj Zizek
157 páginas
ISBN: 978-85-378-0243-4
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Revisão: Marco Antonio Coutinho Jorge

SINOPSE

Os textos e as ideias de Jacques Lacan são tão difíceis que só especialistas conseguem compreendê-los. Se é isso que você pensa, é porque ainda não sabe Como ler Lacan.
Slavoj Žižek, um dos grandes pensadores contemporâneos, será o seu guia nessa tarefa. Ele sabe colocar o leitor face a face com os textos do grande mestre francês da psicanálise para esclarecer os principais conceitos lacanianos, fazendo associações com as mais diferentes áreas. Instigado pelo raciocínio ágil e o abrangente conhecimento de Žižek, a um só tempo erudito e pop, você verá que há Lacan em Shakespeare e em Casablanca, em Nietzsche e num radical muçulmano, em Stanley Kubrick e nas novelas mexicanas. E que, longe de serem coisas meramente teóricas e distantes da sua realidade, conceitos como recalque, Outro, sujeito suposto saber, e supereu fazem parte do seu dia a dia.

Inclui:
. Breve cronologia biográfica de Lacan.
. Sugestões de leitura sobre e de Lacan.


Amor impiedoso da morte - A falsidade do sacrifício Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira

A falsidade do sacrifício

            O que é, então, o sacrifício? O que nele é falso a priori? Em sua forma mais elementar, o sacrifício se baseia na noção de troca: eu ofereço ao Outro alguma coisa preciosa para mim a fim de obter do Outro alguma coisa ainda mais vital para mim (as tribos “primitivas” sacrificam animais ou mesmo seres humanos de modo que os Deuses os recompensem com chuvas suficientes, vitória militar, etc.) O próximo nível, já mais intrincado, é conceber o sacrifício como um gesto que não almeja diretamente alguma troca lucrativa com o Outro para quem nós sacrificamos: seu objetivo mais básico é, antes, assegurar que HÁ um Outro lá fora que é capaz de responder (ou não) a nossas súplicas sacrificais. Ainda que o Outro não conceda meu desejo, eu posso ao menos assegurar-me de que HÁ um Outro que, talvez da próxima vez, responda de forma diferente: o mundo lá fora, inclusive todas as catástrofes que podem se abater sobre mim, não é uma maquinaria cega sem sentido, mas um parceiro em um possível diálogo, de maneira que mesmo um resultado catastrófico deve ser lido como uma resposta significativa, não como um reino do acaso cego... Lacan aqui vai um passo além: a noção de sacrifício usualmente associada com a psicanálise lacaniana é a de um gesto que representa o repúdio à impotência do grande Outro: em sua forma mais elementar, o sujeito não oferece seu sacrifício para obter lucro para si mesmo, mas para preencher a falta no Outro, pára sustentar a aparência de onipotência do Outro ou, ao menos, sua consistência. Relembremos Beau Geste, o clássico melodrama de aventura de 1938, no qual o mais velho de três irmãos (Gary Cooper) que vivem com sua benevolente tia, no que parece ser um gesto de ingratidão e excessiva crueldade, rouba o colar de diamantes extremamente caro que é o orgulho da família de sua tia, e lhe dá sumiço, sabendo que sua reputação estará arruinada, e que ele irá para sempre ser conhecido como o ingrato ladrão de sua benfeitora –  por que ele fez isso, então? No final do filme, ficamos sabendo que ele fez isso a fim de evitar a embaraçosa revelação de que o colar era falso: ele sabia, sem que os outros soubessem, que a tia, havia algum tempo, vendera o colar a um rico marajá para salvar a família da falência, e que o substituíra por uma imitação sem valor. Pouco antes de seu “roubo”, ele soube que um tio distante que era co-proprietário do colar queria vendê-lo para obter ganho financeiro; se o colar fosse vendido, o fato de que era falso indubitavelmente viria à tona, assim, a única maneira para conservar a honra de sua tia e, portanto da família, seria encenar seu roubo... Esta é a decepção oportuna do crime de roubo: ocluir o fato de que, em última instância, NÃO HÁ NADA PARA ROUBAR – desta forma, a falta constitutiva do Outro é ocultada, i.e., a ilusão de que o Outro possuía o que lhe foi roubado é mantida. Se no amor dá-se o que não se possui, em um crime de amor rouba-se do Outro amado o que o Outro não possui... a isso alude o “beau geste” do título do filme.[i] E aí reside também o sentido do sacrifício: nos sacrificamos (nosso futuro e nossa honra em respeito à sociedade) para manter a aparência de honra do Outro, para salvar o Outro amado da vergonha.
            No entanto, a rejeição de Lacan do sacrifício como inautêntico situa a falsidade do gesto sacrifical em outra dimensão, muito mais estranha. Tomemos o exemplo de Enigma (1981) de Jeannot Szwarc, uma das melhores variações no que é indiscutivelmente a matriz básica dos thrillers de espionagem da guerra fria com pretensões artísticas, à maneira de John Le Carré (um agente é enviado para o frio para cumprir uma missão; quando, no território inimigo, ele é traído e capturado, percebe que foi sacrificado, i.e., que o fracasso da missão foi desde o início planejado por seus superiores a fim de alcançar o verdadeiro objetivo da operação – qual seja, manter a identidade secreta do verdadeiro infiltrado do ocidente no aparato da KGB...). Enigma conta a história de um dissidente jornalista que virou espião, que após emigrar para o ocidente é recrutado pela CIA e enviado à Alemanha Oriental para se apossar de um chip de computador codificador/decodificador que permite a quem o possui ler todos os comunicados entre o quartel-general da KGB e seus postos avançados. Contudo, pequenos sinais dizem ao espião que há algo de errado com essa missão, i.e., que os alemães e russos já haviam sido informados sobre sua chegada – o que está acontecendo, então?  Trata-se de que os comunistas têm um infiltrado no quartel-general da CIA que os informou sobre essa missão secreta? Como ficamos sabendo perto do final do filme, a solução é muito mais engenhosa: a CIA já possui o chip codificador, mas, infelizmente, os russos suspeitam disso, e pararam de usar temporariamente sua rede de computadores para seus comunicados secretos. O verdadeiro alvo dessa operação era uma tentativa da CIA de convencer os russos de que não possuíam o chip: eles enviam um agente para obtê-lo e, ao mesmo tempo, deliberadamente deixam os russos saberem que há uma operação em curso para obter o chip; a CIA, claro, conta com o fato de que os russos irão prender o agente. O resultado final então será que, ao evitar a missão com sucesso, os russos ficarão convencidos de que os americanos não o possuem e que, portanto, é seguro usar suas comunicações... O aspecto trágico da história, claro, é que a falha da missão é levada em conta: a CIA quer que a missão falhe, i.e., o pobre agente dissidente é sacrificado por antecipação para o objetivo maior de convencer o oponente de que não se possui seu segredo. A estratégia aqui é encenar uma operação de busca, a fim de convencer o Outro (o inimigo) de que já não se possui o que se está procurando – em suma, finge-se uma falta, um querer, para se ocultar do Outro que já se possui o agalma, o segredo mais íntimo do Outro. Esta estrutura não está de certa forma conectada com o paradoxo básico da castração simbólica como constitutiva do desejo, no qual o objeto tem que ser perdido para que seja recuperado na proporção inversa do desejo regulado pela Lei? A castração simbólica é comumente definida como a perda de algo que nunca se possuiu, i.e., o objeto-causa do desejo é um objeto que emerge através do mesmo gesto de sua perda/retirada; contudo, o que encontramos aqui, no caso de Enigma é o avesso da estrutura de se fingir uma perda. Na medida em que o Outro da Lei simbólica proíbe a jouissance, a única maneira para o sujeito fruir é fingir que lhe falta o objeto que lhe oferece a jouissance, i.e., ocultar sua posse do olhar do Outro através da encenação do espetáculo da busca desesperada por ele. Isto também lança uma nova luz sobre o tópico do sacrifício: faz-se o sacrifício não para se obter algo do Outro, mas para enganar o Outro. E o mesmo, em um nível diferente, não vale para o assim chamado “sacrifício da mulher”, para a mulher que adota o papel de permanecer na sombra, sacrificando-se por seu marido ou por sua família? Este sacrifício não é também falso, no sentido de servir para enganar o Outro, de convencê-lo de que, através do sacrifício, a mulher não está na realidade ávida e desesperadamente tentando obter algo que lhe falta? Neste preciso sentido, sacrifício e castração não são opostos: longe de envolver a aceitação voluntária da castração, o sacrifício é a maneira mais refinada de renunciar a ela, i.e., de atuar como se efetivamente se possuísse o tesouro escondido que faz de mim um objeto de amor digno...[ii]    
            Em seu Seminário não publicado L’angoisse[1] (1962/1963, Lição de 5 de dezembro de 1962), Lacan enfatiza a maneira como a ansiedade histérica se relaciona com a falta fundamental no Outro, tornando-o inconsistente/barrado: um histérica percebe o vazio no Outro, sua impotência, inconsistência, falsidade, mas ele não está pronto para sacrificar a parte de si mesmo que completaria o Outro, preenchendo seu vazio – essa recusa ao sacrifício sustenta a eterna reclamação histérica de que o Outro irá de algum modo manipulá-lo e explorá-lo, usá-lo, privá-lo de seu bem mais precioso... Mais precisamente, isto não significa que o histérico repudie sua castração (ele não é um psicótico ou um pervertido, i.e., ele aceita inteiramente sua castração); ele simplesmente não quer torná-la “funcional”, colocar-se a serviço do Outro, i.e., o que ele retém disso é “transformar sua castração naquilo que falta ao Outro, quer dizer, em algo positivo que é a garantia dessa função do Outro”. (Em contraste com o histérico, o perverso prontamente assume o papel de sacrificar-se, i.e., de servir como objeto-instrumento que preenche a falta no Outro – como Lacan colocou, o perverso “se oferece lealmente a jouissance do Outro”). A falsidade do sacrifício reside em seu pressuposto subjacente, que é o que eu efetivamente possuo, tenho em mim, o ingrediente precioso cobiçado pelo Outro e que promete preencher seu vazio. Olhando com mais detalhe, a recusa histérica, claro, aparece em toda a sua ambiguidade:  Eu me recuso em sacrificar o agalma em mim PORQUE NÃO HÁ NADA PARA SACRIFICAR, porque sou incapaz de preencher sua falta.[iii]

[1] N. do T.: Publicado no Brasil em 2005: LACAN, Jacques. O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.

[i] O interesse de Beau Geste reside também na fantasmática cena de abertura – a misteriosa fortaleza deserta na qual não há ninguém vivo, apenas soldados mortos dispostos em seus muros, um verdadeiro deserto face ao espectro do navio que vagueia sem tripulação. Perto do final, Beau Geste apresenta muito bem a mesma cena só que de dentro da fortaleza, i.e., descrevendo como essa assombrosa imagem da fortaleza com os soldados mortos foi gerada. Outro aspecto interessante é a oposição de duas comunidades: o lar da família inglesa de classe alta acolhedor dominado por uma mulher versus a totalmente masculina comunidade da Legião Estrangeira dominada pela fascinante figura do sádico, porém militarmente muito eficiente sargento russo Markoff.

[ii] A menção a le Carré está longe de ser acidental aqui:  em seus grandes romances de espionagem (iniciais), ele repetidamente dispõe o mesmo cenário fundamental da interconexão entre amor e traição, i.e., de como os dois termos, longe de serem simplesmente opostos,  a traição serve como a prova derradeira do amor por ele/ela. Traição por amor não é a forma derradeira de sacrifício?

[iii] Isto também nos permite responder à censura de Dominick La Capra de acordo com a qual a noção lacaniana de falta reúne dois níveis que tem que ser mantidos separados: a falta “ontológica” puramente formal constitutiva da ordem simbólica como tal, e as experiências traumáticas individuais (de maneira exemplar: o holocausto) que poderiam também NÃO ter ocorrido – catástrofes históricas particulares como o holocausto parecem ser assim “legitimadas” como fundamentadas diretamente no trauma fundamental que pertence à própria existência humana. (Ver Dominick la Capra, "Trauma, Absence, Loss," Critical Inquiry, Volume 25, Number 4 (Summer 1999), p. 696-727). Contra este mal-entendido, dever-se-ia enfatizar que a falta quasi-transcendental e os traumas particulares estão ligados de forma negativa: longe de ser a última ligação na cadeia contínua de encontros traumáticos que remontam à “castração simbólica”, as catástrofes como o holocausto são eventos contingentes (e desta forma, evitáveis) que ocorrem como o resultado final das tentativas para OFUSCAR a falta constitutiva quasi-transcendental.

Amor impiedoso da morte - A poupança como um pecado mortal Slavoj Žižek

Amor impiedoso da morte
Slavoj Žižek
Tradução: Rodrigo Nunes Lopes Pereira


A poupança como um pecado mortal
Em que, então, a ruptura da modernidade existe? Qual é a lacuna ou o impasse que o mito se esforça para encobrir? Fica-se tentado a voltar à velha tradição moralista: o capitalismo se origina no pecado da poupança, da avareza – a noção freudiana há muito desacreditada do “caráter anal” e suas ligações com a acumulação capitalista recebe aqui um inesperado impulso. Em Hamlet (Ato I, Cena 2), o caráter repugnante da poupança excessiva é precisamente formulado:
Horácio: Meu Senhor, eu vim para ver o funeral de seu pai.
Hamlet: Rogo-te, não zombes de mim, colega
Penso que foi para ver o casamento de minha mãe.
Horácio: Na verdade, meu Senhor, foi logo em seguida.
Hamlet: Economia, economia, Horácio! Os assados do velório puderam ser servidos como frios na mesa nupcial.
Eu desejara topar no céu com o mais feroz dos inimigos,
Do que ter visto semelhante dia, Horácio!

      O ponto chave aqui é que “economizar” não designa apenas uma frugalidade indistinta, mas uma recusa específica a pagar o que é devido ao ritual adequado de luto: a poupança (nesse caso, o uso duplo da comida) viola o valor ritual, aquele que, de acordo com Lacan, Marx negligenciou em sua consideração sobre o valor:

Este termo /poupança/é uma advertência oportuna que, nas acomodações elaboradas pela sociedade moderna entre valores de uso e valores de troca, talvez haja algo que tenha sido negligenciado nas análises marxianas da economia, algo dominante para o pensamento de nossa época – algo cuja força e extensão nós sentimos a cada momento: valores rituais.[i]


Qual é, então, o status da poupança como um vício?[ii] Em um modo aristotélico, seria fácil situar a poupança como o oposto extremo da prodigalidade, e então, é claro, construir algum termo médio – ou seja, prudência, a arte dos gastos moderados, evitando ambos os extremos – como a verdadeira virtude. No entanto, o paradoxo do avaro é que ele realiza um excesso da própria moderação. Quer dizer, a qualificação padrão do desejo se concentra em seu caráter transgressivo: ética (em seu sentido pré-moderno de “arte de viver”) é, em última instância, a ética da moderação, de resistir ao que insta a ir além de certos limites, uma resistência contra o desejo que é por definição transgressivo – paixão sexual que me consome inteiramente, glutonaria, paixão destrutiva que não se detém nem mesmo ao assassinato... Em contraste com essa noção transgressiva de desejo, o Avaro investe com (e, portanto, com uma qualidade excessiva) o desejo da própria moderação: não gaste, economize, retenha em vez de soltar – todas as qualidades “anais” proverbiais. E é somente ESTE desejo, o próprio anti-desejo, que é desejo por excelência. O uso da noção hegeliana de gegensaetzliche Bestimmung[iii] é inteiramente justificado aqui. Marx reivindicou que na série produção-distribuição-troca-consumo, o termo produção está duplamente inscrito, ele é simultaneamente um dos termos na série e o princípio estruturante de toda a série: na produção como um dos termos da série, a produção (como princípio estruturante) “encontra a si mesma em sua determinação oposta”,[iv] como colocou Marx, usando o termo hegeliano preciso. E o mesmo vale para o desejo: há diferentes espécies de desejo (i.e., do apego excessivo que compromete o princípio do prazer); entre essas espécies, o desejo encontra “a si mesmo” em sua “determinação oposta” sob o disfarce do avaro e sua economia, o oposto mesmo do transgressivo movimento do desejo. Lacan tornou isso claro a propósito de Molière:

O objeto da fantasia, imagem e pathos, é esse outro elemento que toma o lugar do que o sujeito é simbolicamente desprovido. Então o objeto imaginário está em uma posição de condensar em si mesmo as virtudes ou a dimensão do ser e tornar-se essa verdadeira ilusão do ser /leurre de l’etre/ que Simone Weil trata quando enfoca as relações muito densas e opacas de um homem com o objeto de seu desejo: a relação do Avarento de Molière com seu cofre. Esta é a culminação do caráter de fetiche do objeto no desejo humano./.../ O caráter opaco do objeto a na fantasia imaginária determina-o em suas formas mais pronunciadas como o pólo do desejo perverso.[v]    
            Assim, se queremos discernir o mistério do desejo, nós não deveríamos nos concentrar, em relação ao amante ou ao assassino, na servidão de sua paixão, pronto a por em jogo tudo por ela, mas na atitude do avarento diante de seu cofre, o lugar secreto onde ele reúne e mantém suas posses. O mistério, claro, é que, na figura do avarento, excesso coincide com falta, poder com impotência, entesouramento avaro com a elevação do objeto à Coisa intocável/proibida que se pode apenas observar, nunca desfrutar totalmente. O avaro derradeiro não seria o Bartolo da ária "A un dottor della mia sorte" do Iº ato de Il barbiere di Siviglia  de Rossini? Sua loucura obsessiva mostra perfeitamente o fato de que ele é totalmente indiferente à perspectiva de fazer sexo com a jovem Rosina – ele quer desposá-la a fim de possuí-la e guardá-la no mesmo sentido em que um avaro possui seu cofre.[vi] Em termos mais filosóficos, o paradoxo do avaro é que ele une duas tradições éticas incompatíveis: a ética aristotélica da moderação e a ética kantiana de uma demanda incondicional que descarrila o “princípio do prazer” – o avaro eleva a própria máxima da moderação em uma demanda incondicional kantiana. A mesma adesão à regra de moderação, o mesmo ato de evitar o excesso, gera, portanto, um excesso – um gozo excedente – de si mesmo.
            O modernismo capitalista, contudo, introduz uma torção nessa lógica: o capitalista não é mais o avaro solitário que se apega a seu tesouro escondido, espiando-o em segredo quando está sozinho, atrás de seguras portas cerradas, mas o sujeito que aceita o paradoxo básico de que a única maneira de preservar e multiplicar seu tesouro é gastá-lo – a fórmula de amor de Julieta da cena do balcão (“quanto mais eu dou, mais eu tenho”)  sofre aqui uma pequena torção – esta fórmula não é a própria fórmula da empresa capitalista? Quanto mais o capitalista investe (e toma dinheiro emprestado a fim de investir), mais ele tem, de modo que, no fim das contas, temos um capitalista puramente virtual, à maneira de Donald Trump, cujo “patrimônio líquido” em dinheiro é praticamente zero ou mesmo negativo, ainda que passe por rico, por conta da perspectiva de lucros futuros. Então, de volta à “determinação oposta” hegeliana, o capitalismo, em certo sentido, gira em torno da noção de poupança como a determinação oposta (a forma da aparência) de ceder ao desejo (i.e. consumir o objeto): o gênero é aqui a avareza, enquanto que o excessivo consumo ilimitado é a própria avareza em sua forma de aparição (determinação oposta).
            Este paradoxo básico nos permite gerar até mesmo fenômenos como a mais elementar estratégia de marketing, que é apelar à economia do consumidor: a derradeira mensagem dos filmes publicitários não é “Compre isto, gaste mais, e você irá economizar, você terá um adicional de graça!”? Relembremos a proverbial imagem machista da esposa que volta para casa após fazer compras e informa a seu marido: “Acabo de poupar-nos $ 200! Embora eu quisesse comprar apenas uma jaqueta, eu comprei três, e então tive $ 200 de desconto!” A incorporação desse adicional é o tubo de creme dental, cujo último terço está pintado com uma cor diferente, com letras garrafais: “VOCÊ TEM 30% DE GRAÇA!” – eu estou sempre tentado a dizer em tal situação: “OK, então me dê apenas esses 30% de creme dental de graça!”. No capitalismo a noção de “preço justo” é um preço com DESCONTO.  A designação gasta “sociedade de consumo”, portanto, serve somente se concebermos o consumo como o modo de aparição de seu próprio oposto, a poupança.[vii]
            Aqui, deveríamos voltar a Hamlet e ao valor ritual: o ritual é, em última instância, o ritual de sacrifício que inaugura o espaço para o consumo generoso – depois que sacrificamos aos deuses as vísceras do animal abatido (coração, intestinos), estamos livres para fruir uma saudável refeição com a carne remanescente. Em vez de permitir consumo livre, sem sacrifícios, a “economia total” moderna que quer dispensar esses sacrifícios ritualizados “supérfluos” gera os paradoxos da popança – NÃO existe consumo generoso, o consumo é permitido apenas na medida em que funciona como a forma da aparição de seu oposto. E o nazismo não foi a tentativa desesperada de restabelecer o valor ritual a seu lugar apropriado através do holocausto, este gigantesco sacrifício a “deuses obscuros”, como colocou Lacan em seu Seminário XI?[viii] Muito apropriadamente, o objeto sacrificado era o judeu, a própria incorporação dos paradoxos da poupança capitalistas. O fascismo deve ser situado dentro das séries de tentativas de contrariar esta lógica capitalista: além da tentativa fascista corporativista de “restabelecer o equilíbrio” através do corte do excesso incorporado no “judeu”, deve-se mencionar a as diferentes versões da tentativa de restabelecer o gesto soberano pré-moderno de puro gasto – lembremos da figura do drogado, o único verdadeiro “sujeito do consumo”, o único que consome a si mesmo, completamente, até a morte, em sua desenfreada  jouissance.[ix]

[i] LACAN, J. "Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet," in Literature and Psychoanalysis, editado por Shoshana Felman, Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press 1982, p. 40. Em defesa de Marx, pode-se adicionar que essa “negligência” não é tanto erro de Marx, mas da própria realidade capitalista, i.e., das “acomodações elaboradas pela sociedade moderna entre valores de uso e valores de troca”.

[ii] Em relação a todo este subcapítulo, sou profundamente grato às conversas com Mladen Dolar, que desenvolveu essas noções muito mais, englobando também a gênese da figura anti-semita do judeu a partir desses paradoxos do Avaro.

[iii] HEGEL, W.F.G., Science of Logic, Londres: George Allen & Unwin Ltd., 1969, p. 431.

[iv] MARX, K., Grundrisse, Harmondsworth: Penguin Books, 1972, p. 99.

[v] LACAN, J. "Desire and the Interpretation of Desire in Hamlet," p. 15.

[vi] Essa ária deve ser lida como parte do triângulo, juntamente com duas outras grandes auto-apresentações, "Largo al factotum" e "La calumnia."

[vii] Eu desenvolvo aqui outro aspecto do superego capitalista, cuja lógica é desenvolvida de maneira mais completa no capítulo 3 de ZIZEK, Slavoj, The Fragile Absolute , Londres: Verso, 2000.

[viii]  LACAN, J.  The Four Fundamental Concepts of Psycho-Analysis, New York: Norton 1979, p. 253.

[ix] A atenção atual à dependência de drogas como a ameaça derradeira ao edifício social pode ser devidamente compreendida contra o pano de fundo da predominante economia de consumo subjetivo como a forma de aparição da poupança: em épocas anteriores, o consumo de drogas era simplesmente uma entre várias práticas sociais semi-ocultadas, praticado por personagens reais (de Quincey, Baudelaire) e ficcionais (Sherlock).