Slavoj Žižek (1949) é um filósofo esloveno cujas
influências principais são os pensamentos de Karl Marx, Jacques La- can e
Hegel. Atua prin- cipalmente nos campos da teoria política, análise cultural e
cine- matográfica e teoria psicanalítica. Em 1990, foi candidato à presi-
dência da Eslovênia. É professor da Univer- sidade de Liubliana e professor
convidado da Universidade de Vermont (EUA).
O
que dizer sobre dois dias de conversa com o incrível filósofo esloveno Slavoj
Žižek? Tomei contato com ele ainda na época da minha graduação em psicologia.
Foi amor à primeira lida! Algum tempo depois de ter lido alguns de seus textos
publicados ainda em inglês, fui parar na Eslovênia atrás do que podia achar
sobre ele — livros, referências, palavras — sem imaginar que, mais alguns
anos adiante, ele me concederia uma entrevista. Por ocasião do lançamento
de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo
Editorial, 2012) e da tradução de Menos que nada (no
prelo, Boitempo), tivemos a chance e o prazer de conversar com aquele que,
ainda hoje, é uma de minhas referencias bibliográficas.
Na
entrevista exclusiva que publicamos aqui, eu e Rogério Bettoni, um de seus
tradutores, tentamos seguir o raciocínio nada linear de Žižek. Em meio a piadas
e momentos de extrema seriedade, abordamos assuntos dos mais variados — as
meninas do Pussy Riot, a leitura do movimento extremista religioso que toma
conta do mundo hoje, a psicanálise lacaniana e suas instituições, as novelas
brasileiras… Tentamos aqui sintetizar o que ouvimos e transmitir o estilo de
Žižek. Agradecemos infinitamente ao esloveno por permitir que publicássemos
nossas conversas por Skype. Esperamos que apreciem.
— Bernardo Malamut
Entrevista: Rogério Bettoni e Bernardo Malamut
Revisão: Regina Miraaz
Foto: Elise Gallant
Revisão: Regina Miraaz
Foto: Elise Gallant
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[Rogério] Nos seus escritos, você usa uma série de
referências que aparentemente se contradizem. Você consegue falar sobre cultura
pop e pessoas como David Guetta e Rammstein ao mesmo tempo em que cita e trata
de G. K. Chesterton e Alain Badiou, por exemplo. O que significa pra você toda
essa mixórdia?
Talvez você se surpreenda ou eu esteja sendo
inconsistente, mas no fundo sou um cara muito elitista. Posso até falar sobre
David Guetta, mas nunca ouvi sequer uma música dele. E talvez você também fique
surpreso com o que andei ouvindo nos últimos meses: Arnold Schoenberg. Escrevi
uma análise de 50 páginas sobre a ópera Erwartung, sua
ligação com a psicanálise etc. E talvez isso te surpreenda ainda mais: adoro as
óperas do compositor russo Modest Mussorgsky, ele é muito subversivo. Ser marginal hoje em dia faz parte da cultura
dominante, não é algo automaticamente subversivo.
O meu problema com a música popular, na verdade o problema da minha geração — de quem já está nos seus 60 e poucos anos —, é este: o que há de bom no rock aconteceu de 1965 a 1975. Sou conservador quanto a isso. Mas quando falo de David Guetta etc., que fique claro: não estou fazendo juízos, não se trata de uma análise artística imanente — exploro brutalmente esses fenômenos para fazer uma análise ideológica, mas muito raramente. Nisso sou modesto… Veja todo esse meu papo-furado sobre cinema [risos]. Quando eu falo sobre Hitchcock, Tarkovsky, Kieslowski, acho que faço uma verdadeira análise imanente. Por exemplo, a Boitempo publicou agora meu texto sobre Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o que pra mim é só uma análise político-social. Na maioria dos casos, quando me refiro à cultura popular, não quer dizer que eu goste, mas acho que na cultura popular e em Hollywood nós temos um acesso mais direto ao que somos hoje, à nossa constelação ideológica. E acrescento: acho que, muitas vezes, obras de arte cinematográficas e literárias que se dizem vanguardistas, não comerciais, podem ser estúpidas e chatíssimas, escritas por quem não sabe contar uma história. Ser marginal hoje em dia faz parte da cultura dominante, não é algo automaticamente subversivo.
O meu problema com a música popular, na verdade o problema da minha geração — de quem já está nos seus 60 e poucos anos —, é este: o que há de bom no rock aconteceu de 1965 a 1975. Sou conservador quanto a isso. Mas quando falo de David Guetta etc., que fique claro: não estou fazendo juízos, não se trata de uma análise artística imanente — exploro brutalmente esses fenômenos para fazer uma análise ideológica, mas muito raramente. Nisso sou modesto… Veja todo esse meu papo-furado sobre cinema [risos]. Quando eu falo sobre Hitchcock, Tarkovsky, Kieslowski, acho que faço uma verdadeira análise imanente. Por exemplo, a Boitempo publicou agora meu texto sobre Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o que pra mim é só uma análise político-social. Na maioria dos casos, quando me refiro à cultura popular, não quer dizer que eu goste, mas acho que na cultura popular e em Hollywood nós temos um acesso mais direto ao que somos hoje, à nossa constelação ideológica. E acrescento: acho que, muitas vezes, obras de arte cinematográficas e literárias que se dizem vanguardistas, não comerciais, podem ser estúpidas e chatíssimas, escritas por quem não sabe contar uma história. Ser marginal hoje em dia faz parte da cultura dominante, não é algo automaticamente subversivo.
Não me comparo a Hegel, mas a mesma coisa que você
disse sobre mim, e concordo, foi dita quando Hegel publicou Fenomenologia do Espírito. A principal crítica era que
o livro era confuso, ninguém entendia se era sobre percepção, Antígona, isso ou aquilo. É claro, o nível do material
deixa uma confusão, mas os leitores precisam estar atentos ao meu objetivo
— ou seja, a constelação ideológica da qual fazemos parte. Mas veja só,
estou meio cansado disso tudo. Estou voltando a Hegel, como em Menos que nada, e escrevendo sobre o que chamam de
depressão pós-coito. E estou escrevendo um livro de umas 150 páginas, bem
tradicional, sobre o problema ontológico básico de que estamos saindo da
abordagem transcendental. Quentin Meillassoux fala disso em Après la finitude, e eu e meus amigos eslovenos, Alenka
Zupančič e Mladen Dolar, estamos voltando à filosofia mais pura. Estou com 63,
tenho diabetes e toda vez que passo diante de um cemitério, me pergunto: “Será
que o jazigo é barato, será que paro e compro um?” [risos].
E descobri que se tiver de fazer alguma coisa séria, preciso fazer agora, não
tenho mais tempo.
[Bernardo] Você falou sobre cultura pop e disse que
é difícil ser marginal hoje em dia. É como se você usasse isso por estar
inserido na cultura, para atingir as pessoas de uma maneira mais fácil e
traduzir o que quer dizer. Então como é possível ser marginal hoje em dia?
Boa pergunta. Acho que é muito difícil ser
marginal. Nós vivemos numa época paradoxal, e pensei nisso em Londres, sobre o
que significa ser marginal e subversivo na pintura e na escultura, por exemplo.
Hoje, fazer parte da cultura dominante é ser extremado. Tenho um amigo londrino
que está pintando e queria fazer uma exposição na Saatchi, uma grande galeria
que apoia os marginais, e disseram pra ele: “mas isso é só pintura!”. O que
está em voga hoje, em Londres, é o que envolve escândalo: urinar numa pintura ou
numa estátua de Jesus Cristo, fazer um vídeo de uma colonoscopia… O próprio
sistema demanda esse tipo de transgressão. Por outro lado, é interessante ver
meu conflito nos Estados Unidos com Judith Butler, que gosta dessa coisa do
marginal, da resistência, de resistir ao mainstream patriarcal.
Ela gosta de nos citar, lacanianos, principalmente em relação ao Nome-do-Pai,
como se fôssemos do mainstream. Mas se
observarmos a instituição acadêmica como campo de poder, veremos que Judith é
extremamente poderosa — é capaz de nomear gente, de fazer com que livros
sejam publicados, enquanto nós, lacanianos, somos criticados como teóricos do
patriarcal etc. No entanto, nós somos absolutamente desprovidos de poder
naquilo que realmente importa, ou seja, empregar pessoas, conseguir
financiamentos, bolsas de estudo, publicações… Veja bem, estou em Vermont como
convidado de dois amigos, Todd McGowan e Hilary Nerone, que comandam um pequeno
departamento de cinema e estudos culturais, e esse é o único departamento no
país inteiro dirigido por lacanianos. Ser marginal não quer dizer que se é
marginal, mas sim uma maneira de determinar sua posição, que na verdade pode
ser bem central. Gosto de citar Chesterton nesse ponto, ele diz que a regra
hoje em dia é ser heterodoxo, quer dizer, a posição verdadeiramente marginal é
a ortodoxia. Vivemos numa época muito estranha.
[Rogério] E a banda punk Pussy Riot? Recentemente
as integrantes foram presas na Rússia. Uma delas, inclusive, Yekaterina, disse
que estava lendo seus livros na prisão. O que esse episódio nos diz sobre esse
momento estranho em que vivemos?
Acho
que esse episódio nos diz mais sobre o Ocidente do que sobre a Rússia. Não sei
muito bem como é no Brasil, mas vejo esse fenômeno estranho na Europa
Ocidental: houve muito pouca compaixão por elas. A atitude predominante na
Europa Ocidental foi: “Ok, não precisava de uma condenação tão dura, mas elas
provocaram etc.” Sabe o que mudou? Conversei com alguns jornalistas na Europa.
No início elas foram exaltadas pela mídia, grandes artistas como Madonna as
apoiaram, porque se pensava que essa era simplesmente a história comum de
liberais democratas resistindo a Putin e ao regime, até que aos poucos as
coisas ficaram claras. Estive em Moscou com os amigos delas e são todos radicais
de esquerda, são anticapitalistas, duvidam da democracia tal como a nossa. Na
igreja, elas protestaram contra Putin, não contra a religião. A frase de
protesto era direcionada a Kirill, líder da Igreja Ortodoxa: “Kirill, acredite
mais em Deus e menos em Putin”. Putin disse recentemente que a separação entre
Igreja e Estado é uma atitude velha, do século XIX, ele quer realmente manter
uma Igreja Ortodoxa dentro de uma Igreja do Estado, e por isso ele dificulta
tanto a organização de outras igrejas. Elas têm meu apoio porque, pessoalmente,
sou um tipo de fascista no sentido estrito, detesto caos etc. E numa situação
como essa, a provocação funcionou. Quando as pessoas me disseram, “Ah, foi uma
provocação”, eu disse “Foda-se!”, se elas tivessem distribuído panfletinhos na
Igreja criticando Putin por não ser democrático, nenhum de nós teria ouvido
falar delas, e o acontecimento ressoou no mundo inteiro. A mídia ocidental
mostrou que há velhos comunistas e nacionalistas a favor de Putin e apenas os
liberais intelectualizados ocidentais contra Putin — mentira, temos
círculos artísticos e intelectuais muito fortes de esquerda que deixaram de se
opor a Putin. Além disso, elas não são rebeldes sem causa, elas estudaram
filosofia. Tentei visitá-las no último dia em que estive na Rússia, mas não
consegui, o tratamento que dão a elas é mesmo cruel. Nadezhda, meu Deus, tem
uma filha e não pôde, durante três ou quatro meses, nem falar com ela ou com o
marido.
Mas
veja, há outro caso na Rússia do que entendo como capitalismo pós-político e
pós-democrático: na sua apatia, as pessoas simplesmente parecem aceitar essa
nova forma de autoritarismo que não é a velha forma conservadora, mas sim um
totalitarismo permissivo.Você pode fazer sexo, usar drogas, tudo é liberal em
questões privadas, mas ao mesmo tempo há um movimento explícito rumo a uma era
pós-democrática. Há alguns anos, conversei com o conselheiro de Putin (esqueci
o nome dele, mas não importa). Ele me disse que até os atos falhos de Putin são
planejados para testar o terreno. Recentemente, ele disse em uma entrevista que
para fazer coisas realmente boas para um país é preciso ter a posição de um
monarca com poder real, pois quando se é eleito é preciso preocupar-se o tempo
todo com o apoio do povo.
Acho
uma obscenidade, por exemplo, a União Europeia ter ganhado o Prêmio Nobel da
Paz. Não acredito num mundo em que a escolha seja entre Estados Unidos ou
China. A Europa está realmente se desintegrando, ela hoje é o modelo de uma
inércia depressiva. Veja bem, talvez isso soe estranho por eu ser marxista, mas
Lênin me entenderia: temos a impressão de que há na Europa uma elite da classe
dominante que não sabe muito bem do seu papel, que está perdendo a habilidade
de governar.
[Bernardo] Eu queria saber duas coisas: uma diz
respeito à sua opinião sobre Foucault e sua análise do poder, uma vez que disse
sobre Foucault representar um pouco do que vivemos hoje. A outra é sobre
religião: estamos passando por um momento preocupante no Brasil, que é o
crescimento das igrejas evangélicas. Na universidade, por exemplo, vemos grande
parte de alunas de psicologia defendendo ideias religiosas conservadoras, como
a proibição do sexo antes do casamento —
Mas você consegue dizer se elas realmente praticam
isso? Afinal, o Brasil supostamente não seria o maior representante da
promiscuidade? [risos]
[Bernardo] Sim, mas há um paradoxo nisso. O que
temos visto nos alunos que entram agora na universidade, por exemplo, é um
discurso cada vez mais religioso. Enquanto ensinamos psicanálise, as pessoas
estão escrevendo Jesus no caderno…
E
a classe social, isso acontece entre os ricos, pobres…?
[Bernardo] Entre os mais pobres.
É
isso o que me preocupa. Isso está acontecendo em todos os lugares, é algo que
os liberais não conseguem enfrentar, e daí vem a minha dificuldade com o
politicamente correto, o multiculturalismo etc. Nos Estados Unidos, fazer parte
dos “esclarecidos” pelos direitos dos homossexuais, do multiculturalismo etc.,
tem uma dimensão de classe infeliz, é uma maneira confortável de parecer
esquerdista. Mas quando as pessoas falam em patriarcado, violência contra a
mulher, estupro, elas estão se referindo aos pobres, e essa divisão entre lutas
culturais emancipatórias e questões de classe econômica talvez seja a maior
tragédia da Esquerda nas últimas décadas. Não culpo os pobres, mas sim essa
elite liberal com a luta pelos direitos dos homossexuais, a tolerância, e
repito — tudo isso tem uma dimensão de classe.
Acho que o advento do fundamentalismo hoje em dia
não é algo que vem de antigas tradições, mas sim que pertence à própria
dinâmica do capitalismo. Não tenho compaixão pelos muçulmanos
fundamentalistas, mas veja só, será que temos ciência do quanto essas pessoas
são marginais? A grande maioria dos muçulmanos é relativamente tolerante. Se
vemos um grupo atacando, digamos, a Embaixada dos Estados Unidos, imediatamente
ele é associado aos representantes do Islã — então por que, por exemplo,
fundamentalistas norte-americanos não são vistos da mesma maneira? Dados
oficiais do FBI publicados no The New York Times mostram
que há 2 milhões de norte-americanos sendo observados como fundamentalistas da
Direita cristã potencialmente perigosos… Precisamos parar de estabelecer essa
relação direta do fundamentalismo com o Islã, há fundamentalistas nos Estados
Unidos, na Noruega, na Europa Oriental, a Hungria vive um pesadelo agora, isso
sem falar na Índia, onde o fundamentalismo é muito mais forte entre os hindus.
Não estou defendendo o Islã; a questão é: por que o capitalismo global atual
gera e alimenta esse fundamentalismo?
Como já coloquei em alguns livros, não acho que o
verdadeiro conflito seja entre o fundamentalismo e a permissividade
multicultural dos liberais, pois as duas coisas fazem parte do mesmo círculo.
Esse tipo de fundamentalismo é uma resposta ao que alguns sociólogos chamam de
desintegração do espaço público. O capitalismo segue rumo a essa dimensão
privada mesmo que o espaço pareça ser público. Eu daria o exemplo de que tudo
está no YouTube hoje em dia, e odeio isso, mas não posso repetir o mesmo
discurso. Um amigo me disse recentemente que a última tendência pornográfica na
Europa é o sexo em público. Não em um bar etc., mas em um ônibus lotado, por
exemplo, duas pessoas começam a transar e a reação é horrível…O segredo é mudar as relações político-sociais
capitalistas para que elas não produzam mais o fundamentalismo.As pessoas primeiro olham surpresas e depois acabam
ignorando a cena. É por isso que digo que a promiscuidade na internet, as
pessoas que se exibem nuas online etc., não são o velho e bom gesto de
exibicionismo de abrir seu casaco e tal. Aqui você realmente se dirige ao
público. Já na internet você pode estar em contato com milhares de pessoas, mas
continua na sua bolha, no seu espaço privado. E observamos isso claramente nos
Estados Unidos.
Sabe
quando Lacan fala de sua definição inicial dos sintomas psicóticos e
paranoicos, de como o que é forcluído do simbólico retorna no real? A expansão
do próprio espaço público simbólico, ela retorna no real na forma de todo esse
fundamentalismo… Então é fundamental encará-lo não como um poder autóctone, mas
como um fenômeno de reação, como diria Nietzsche. O segredo não é combatê-lo,
mas sim mudar as relações político-sociais capitalistas para que elas não o
produzam mais.
Falando
sobre o Brasil, as pessoas me acusam de idealizar as favelas, mas não é isso.
Alguns amigos me disseram que vocês falam em “capitalismo da favela”, ou seja,
que nas favelas não existe Lei, é só pobreza, mas por vezes também funciona
como um capitalismo dinâmico. Não tenho ilusões sobre as favelas, mas me
interessaria muito algum tipo de estudo que não essa coisa humanitária de “oh,
eles não têm água, oh, as crianças são exploradas”… Acho que o Brasil é um dos
únicos países que conheço que não esconde as favelas… Em Buenos Aires, por
exemplo, elas não são vistas. Não digo que elas formem um magnífico cenário
hollywoodiano, mas pelo menos é melhor que sejam vistas! E me pergunto: como
funciona a vida social nas favelas? Há milhares de pessoas amontoadas, então,
além dos bandidos e comunidades religiosas, tem de haver um tipo de rede social
que faça a favela funcionar. Seria bom ler algum estudo desse tipo.
[Bernardo] Sim, é verdade que elas não são
escondidas no Rio, que fazem parte da vida na cidade, mas veja só, por mais que
se negue, nós observamos um tipo de “limpeza social” quando uma pessoa de fora,
uma figura pública, chega ao Rio de Janeiro — por exemplo, eles tiram os
pobres das ruas e os levam para uma cidade próxima.
Sim,
mas e a questão do turismo pelas favelas, soube que isso é feito em São Paulo…
E é algo real ou encenado?
[Bernardo] É encenado… E no Rio também, as pessoas
descobriram que talvez fosse rentável promover esse tipo de turismo, já que as
pessoas de fora são curiosas em relação às favelas.
Mas voltemos à outra pergunta, sobre Foucault. Eu
gosto de muita coisa nele, Arqueologia do saber é
meu livro predileto dele, uma obra-prima. Mas minha dificuldade com ele é
outra. Talvez eu tenha lido Foucault de uma maneira superficial, mas em Vigiar e punir e no primeiro volume de História da sexualidade, ele tem essa visão de que cada
resistência faz parte do sistema, de que a sexualidade não é oprimida, mas
engendrada, gerada pela opressão, pelo poder. Para mim, não está claro como é
que ele passa disso para a posição de seus últimos dois livros, nos quais temos
núcleos de resistência da subjetividade. Tenho um problema parecido com Judith
Butler, por exemplo. Para ela nós resistimos, mudamos a regra, ironicamente
destruímos o sistema etc. Mas a pressuposição é de que o sistema existe para
ficar, nós podemos apenas construir ilhas de resistência aqui e ali… Isso
também me gerou alguns problemas com Alain Badiou, que hoje gosta de enfatizar
essa política antiestatal, uma política autêntica, afastada do Estado. Temos
esses levantes na Europa Ocidental, demonstrações de revolta aqui e ali, a
ideia de que a Esquerda deve triunfar. Durante décadas a Esquerda disse que o
povo europeu vivia numa riqueza relativa, mas que logo presenciaria a crise, o
caos etc. Agora que passamos por uma espécie de crise — talvez soe
extremamente simplista o que vou dizer, mas é algo muito verdadeiro —, a
Esquerda literalmente não sabe o que fazer. Por exemplo, estive na Grécia e
perguntei para as pessoas: “Então vocês são contra essas medidas austeras, mas
afinal o que querem realmente? Apenas um capitalismo mais keynesiano e
solidário, em que o Estado intervém na saúde etc., ou uma nacionalização
maior?”. Ninguém soube responder, disseram que era cedo demais para perguntar
isso. Mas como é cedo demais? Faltava apenas uma semana para as eleições! E
claro, a mídia me atacou como se eu fosse uma espécie de terrorista
protostalinista. Eu não estava dizendo que precisamos de um Estado totalitário,
mas sim questionando como fazer tudo isso sem se tornar autoritário, entende?
As pessoas têm um momento de revolta, e depois há um vazio.
[Bernardo] E qual o papel do cinema pra você?
A
primeira questão que devemos fazer é: o cinema continua sendo “o” meio? Há bons
argumentos, não terei tempo de elencar todos para corroborar que o papel do
cinema seja esse aparato ideológico hegemônico, quer dizer, se quisermos saber
o que sonha uma sociedade, vejamos seus filmes! Mas acho que o novo fenômeno no
mundo inteiro são as séries de TV, e não no sentido, como diria Hegel, de que o
espírito do mundo está passando do cinema para os seriados. Não. O motivo que
desperta meu interesse pelo cinema é exatamente este: sempre digo que a
ideologia não é apenas a explicitação de regras; ela é mais que isso, envolve
também todas aquelas formas secretas de transgredir as regras explícitas. A
ideologia não é apenas o que a sociedade quer de nós, mas sim o nosso sonho de
como nos libertar dela. Nesse filme mais recente que fiz com Sophie Fiennes, Pervert’s Guide to Ideology, eu disse que precisamos
aprender a censurar nossos sonhos. Em Hollywood nós temos precisamente modelos
de sonhos críticos, mas o que me interessa é o sonhar que permanece dentro da
ideologia. É por isso que, apesar de não gostar, eu achei tão interessante o
último Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge,
ele é ambíguo — basicamente muito reacionário, mas também há traços de
algo que não se encaixa na ideologia.
Voltando, então: hoje Hollywood não nos dá apenas o
conformismo, mas também uma maneira falsa de romper com o conformismo, e por
isso acho que deve ser levada muito a sério. Talvez eu seja fanático demais
nesse ponto, mas nós deveríamos prestar atenção justamente nos filmes que
parecem críticos superficialmente. Meu maior exemplo disso éAvatar. James Cameron, pra mim, é o pior de todos.
Muita gente inclusive o chama de “maior marxista de Hollywood”, mas isso é o
que parece — por trás dessa leitura primitiva e anti-imperialista de Avatar, nós encontramos um mito bem reacionário. E esse
é o mesmo problema que eu tenho com Oliver Stone. Se pegarmos, por exemplo, o
primeiro Wall Street, encontramos por trás desse tipo de
capitalismo antifinanceiro uma história edípica comum e chatíssima — a
separação entre o filho e o pai bandido, Michael Douglas, e o pai mocinho,
Martin Sheen, e o que é ainda pior, a única pessoa carismática e com um charme
libidinal é o bandido, Michael Douglas. E ainda têm aquelas frases do filme:
“Se quiser um amigo, arrume um cachorro” etc. Isso é o que filme tem de mais
falso, e é por isso que, para provocar alguns amigos na minha loucura, tentei
recuperar coisas como 24 horas, ou Os 300 de Esparta, que a maioria das pessoas descartava
como fascista, por exemplo. Gosto do final da última temporada de 24 horas, que terminou com um impasse ético: Jack Bauer
tinha duas opções e entra em colapso. Por trás de toda essa ação há um
diagnóstico bastante pessimista e muito mais honesto do que esses filmes
reanimadores da Esquerda hollywoodiana, como Dossiê Pelicano e Todos os homens do Presidente. E isso é muito
importante hoje, não aceitar essa abordagem liberal padrão de quem são os
mocinhos e os bandidos. Também gosto de acompanhar o cinema de outros países,
mas não acho que temos de fetichizar esses filmes — um filme não será bom
só porque foi feito em um país pobre e seja aparentemente autêntico.
Existe um filme do chinês Jia Zhangke, Em Busca da Vida, sobre um homem que vai atrás da
antiga esposa e uma mulher que procura seu marido em uma daquelas cidades tomadas
pelas águas da represa Três Gargantas — é um retrato belíssimo e
desesperado da vida comum no que é a China hoje. É como se fosse um Antonioni
reinventado na China. E ele ocupa um lugar que eu gosto: não está integrado ao
mecanismo do Estado, mas também não é radicalmente dissidente. O engraçado é
que a China está praticamente se tornando uma Hollywood de uma maneira que eu
gosto, veja só esses filmes sobre os grandes guerreiros chineses, como Herói ou O Clã das Adagas Voadoras.
[Rogério] Quero fazer uma pergunta delicada sobre
Jacques-Alain Miller. Pessoalmente acho que ele exerce uma espécie de
manipulação do conhecimento, determinando o que deve e o que não deve ser
publicado dos seminários de Lacan e também sobre os seminários. Quero saber o que
você acha dessa postura e qual a sua relação com Miller.
Participei do círculo de Miller há uns trinta anos.
Daí houve uma série de mal-entendidos, alguns narcisistas, outros não.
Primeiro, eu era um autor relativamente jovem e queria publicar minha tese, O mais sublime dos histéricos, e os lacanianos não se
interessaram etc. Segundo, ele queria me forçar mais na direção de ser
analista. Ainda que ele tratasse de filosofia, suas ideias eram muito mais
kantianas que hegelianas. Também havia o fato de ele não gostar da minha
abordagem à cultura popular, e é engraçado porque, nos últimos anos, ele mudou
totalmente de opinião e começou a escrever análises populares, mais políticas
etc. E infelizmente houve a última ruptura, política. Eu diria que Miller é centro-liberal,
até centro-direitista. Ele publica com certa regularidade no semanário Le point e no diário Le Figaro, que são centro-direitistas. Em termos mais
simples, como coloquei no último capítulo de Menos que nada, acho
que ele adotou e tenta reler em Lacan um tipo de saber cínico e tolerante, e
chego a citar o que considero ser de um autoritarismo bastante cínico. Em
determinado momento, ele adora essa típica estratégia conservadora de que
“embora saibamos que as aparências são falsas, devemos respeitá-las; se
perturbarmos as aparências, talvez haja uma catástrofe” etc. Não acho que esse
tipo de saber cínico seja a verdadeira posição de Lacan.
Então, em primeiro lugar, preciso dizer que ainda o
aprecio. Ele foi o responsável por tornar Lacan acessível para mim — o
início dos anos 1980 foi uma época maravilhosa, nós sentávamos toda semana
durante algumas horas e entrávamos nos detalhes dos textos de Lacan. Miller tem
essa capacidade absolutamente cirúrgica de clarificar o nada que entendemos ao
olhar uma página de Lacan pela primeira vez. Mas depois acabei descobrindo
outros textos sobre Lacan, de outros pesquisadores e outras escolas, que também
eram excelentes. Dois nomes que quero mencionar: François Balmès, que escreveu
sobre Lacan e Heidegger e tem vários outros textos que cito bastante, e Guy Le
Gaufey, que escreveu um livro maravilhoso, Le Pastout de Lacan,
sobre o não-Todo de Lacan. E veja o que considero ser o sinal de que a
orientação de Miller deixou de ser produtiva: só ele publica. Uma das coisas
que me fizeram sair do grupo de millerianos foi que, nos últimos anos com eles,
havia uma espécie de proibição verbal de que não deveríamos publicar livros:
devíamos era fazer algumas intervenções aqui e ali e depois publicar a
transcrição. Conheço pessoas como a matemática Nataly Sharo, que acho que ainda
está com ele. Ela terminou uma tese sobre Lacan e matemática e teve tanto medo
de publicar que acabou fazendo em segredo com uma editora menor. Mas o que me
incomoda um pouco no Miller é como ele muda sua posição nas questões políticas.
[Rogério] Interessante você dizer isso, porque
Belo Horizonte é a segunda cidade da América Latina com o maior número de
lacanianos, mais propriamente millerianos. E sinto que aqui as pessoas levam a
ferro e fogo o que ele diz — veja bem, sou tradutor, não psicanalista, mas
tenho um contato muito grande com analistas que trazem isso pra mim. Se hoje
Miller diz “sigam para cá”, todos os analistas vão atrás; amanhã ele diz “vamos
para lá”, então todos os analistas mudam de direção.
Eu me livrei dessa transferência com ele, primeiro
porque, não sei se você se lembra do escândalo que houve com o seminário A transferência, quando os inimigos publicaram o
maravilhoso Le transfert dans tous ses errata,
citando literalmente centenas de erros no texto publicado por Miller. Ele
reconheceu isso em silêncio porque, durante alguns anos, proibiu a reimpressão
da sua primeira edição, até que surgiu uma nova versão na qual, sem agradecer a
eles, a maioria das críticas foi adotada. Ou, por exemplo, veja o que aconteceu
com o seminário sobre Joyce, O sinthoma. A regra
era publicar apenas o texto, sem introdução, posfácio ou notas. Até que do
nada, nesse seminário, Miller acrescentou umas cem páginas de posfácio
recontando todas as histórias etc. E ainda há o papel social dele — até
cerca de dez ou quinze anos atrás, ele não fazia intervenções públicas, ou
quase nunca: queria ser um lacaniano isolado. Até que de repente, e de uma
maneira muito infeliz, ele começou a participar da vida social. Os melhores
amigos dele hoje são Phillipe Sollers e Bernard-Henri Levy. Quando Levy se
manifestou em 2011 para organizar um bombardeio à Líbia, os lacanianos
millerianos escreveram um texto apoiando publicamente seu intervencionismo
militar, dizendo que essa era a política do “ne pas céder sur son désir”, de
permanecer fiel ao seu desejo etc. Tudo bem, Miller pode ser bacana, mas não é
perfeito — comete erros brutais, não entende o essencial etc. Quando você
encontra com ele pela primeira vez ou está à distância, ele pode ser bastante
sedutor.
Para mim, o grande problema dele, e eu já sabia
disso há mais de 25 anos, é que ele não lê livros. Ele lê o suplemento
literário do The Times e a New York Review of Books. Por exemplo, nesta última ele descobriu Richard
Rorty, e de repente começou a dizer que a posição de Lacan no Mais, ainda em relação à ética social é parecida
com a de Rorty etc. E para completar, veja bem, não tenho nada contra o poder
ditatorial, mas em vez de ser um bom ditador, ele é um estúpido ditador. Não
sei como é no Brasil, mas sei que nos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e
Itália, ele conseguiu ter a inacreditável capacidade de escolher exatamente as
pessoas erradas para organizar e dirigir o movimento lacaniano. Nos Estados
Unidos, por exemplo, há duas décadas, ele escolheu Ellie Ragland-Sullivan, uma
maluca meio psicótica. Ela entrava em conflito com todo mundo e nada acontecia.
É o mesmo na Inglaterra, e é por isso que os millerianos lá são tão marginais,
até mesmo o maior nome entre eles, Darian Leader, que agora está um pouco
afastado. É o mesmo na Alemanha, onde também nada acontece. E essas mudanças
políticas do Miller também são muito desagradáveis. Veja o que aconteceu com
Élisabeth Roudinesco. Antes ele era ambíguo, e recentemente entrou em um
conflito enorme com ela a respeito da morte de Lacan.
É
ridículo, aconteceu com Franz Kaltenbeck, australiano que mora em Paris. Há
vinte anos, quando a diretiva era “Élisabeth Roudinesco é inimiga”, ele a
atacava. Nesse ínterim, antes do conflito mais recente, houve um momento em
que, por conta daquela briga contra a legalização da análise, eles de repente
ficaram amigos. É ridículo, um péssimo stalinismo. Você acha que está seguindo
a diretiva do grupo, de repente a diretiva muda e você é atacado etc. Minha
medida é simples: quer ser stalinista? Não me interessa. Produz boa teoria? Não
acho que ele esteja produzindo uma boa teoria.
Já escrevi sobre isso, Miller ainda segue essa
linha ridícula de que o jovem e o segundo Lacan era ingênuo, mas que no final
Lacan encontrou uma verdade final. Miller sempre quis definir um ponto
final em que Lacan chegou à verdade. Eu e meu grupo esloveno, Alenka Zupančič e
Mladen Dolar, chegamos à conclusão, depois de anos de leitura, que o apogeu de
Lacan aconteceu mais ou menos entre A lógica da fantasia e Mais, ainda. Ali ele encontrou um impasse. Depois, nos
últimos seis, sete anos, por meio dos nós, aquelas maluquices, ele tenta sair
desse impasse, mas fracassa. Cheguei a citar no final do capítulo sobre o não-Todo,
em Menos que nada, a passagem crucial em que o próprio
Lacan admite isso abertamente, ele diz mais ou menos que pensava que o nó
borromeano daria certo, mas que acabou descobrindo que não, que ele estava
errado. Penso que deveríamos estar abertos a essa constatação.
Vou
contar uma história que pode ser interessante. Catherine Millot, que é íntima
de Miller, foi a última amante oficial de Lacan. Ela estava com Lacan no
momento em ele morreu. Não estou dizendo isso para polemizar, apenas por razões
teóricas. Depois que Lacan morreu, surgiu todo um mito, que obviamente ela
alimentou, de que, justo antes de morrer, Lacan contou a ela uma fórmula
secreta, a sabedoria máxima etc. E todo mundo ficou na expectativa de que ela
dissesse que fórmula era essa.
Eu
penso da mesma maneira a respeito dos filósofos. Acho que a grande maioria dos
filósofos, nos últimos anos de vida, ficou presa em uma regressão sem sentido,
como Schelling. Isso não quer dizer que o apogeu de um pensador aconteça quando
ele está prestes a morrer, não é isso. E também não acho que Lacan tenha
regredido, mas apenas que ele estava lutando com um problema sem conseguir
resolvê-lo. Minha leitura, embora arriscada, é esta: se pararmos na produção
intelectual de Lacan mais ou menos em 1973-74, não perdemos nada.
[Rogério] E não seria esse o mesmo problema de
Jean-Paul Sartre, por exemplo? Quando começa a lutar com a razão dialética, ele
se perde por completo.
Concordo totalmente contigo, e nesse sentido
estamos indo contra a visão predominante de que esse segundo Sartre é o bom
Sartre marxista ou coisa do gênero. Não, essa leitura está errada! Talvez
possamos imaginar um Sartre diferente, que prosseguiria nas suas constatações
iniciais sem se envolver com toda a questão marxista. Mas veja só, infelizmente
Sartre foi meio esquecido, e muita gente tem dificuldade de reconhecer isso.
Ele ainda é bastante influente, por exemplo, em toda essa linha compartilhada
de maneiras diferentes por Deleuze e Badiou, essa ideia de não representação da
política, de que há uma espécie de produtividade imediata que acaba sendo
tolhida ou oprimida por uma totalidade edípica etc. Deleuze segue essa
abordagem do anti-Édipo e até menciona Sartre algumas vezes. Não podemos nos
esquecer de que o pensamento de Deleuze começou com a fenomenologia. Até
Badiou reconhece essa influência de Sartre! Ele nunca adotou o estruturalismo,
mas naquela época estava mais do lado de Sartre. Portanto, concordo plenamente
que ele abandonou essa produtividade local e espontânea em oposição a uma
organização totalizadora falha etc. Na verdade, sou ainda mais reacionário:
prefiro as primeiras coisas que Sartre escreveu. Adoro A náusea, a repugnância, essa experiência brutal do
real, e por razões muito pessoais: eu me sinto exatamente desse jeito. Por
isso também adorei Melancolia, do Lars
Von Trier: concordo plenamente com a protagonista, a vida é ruim, repugnante, é
bom quando acaba etc. [risos]
[Rogério] Em O ano em que sonhamos
perigosamente, você traz à tona um princípio atribuído a Yahya ibn Ziyad,
de que, em última análise, a escolha do próprio destino depende do poder de
cada um. Qual sua posição sobre isso, nós temos mesmo uma escolha? Temos razão
para continuar resistindo?
Mais
uma vez digo que é por isso que não gosto da fórmula da resistência. Aceitamos
que o poder existe, resistimos e começamos a gozar com a resistência. Acho que
é preciso tomar uma decisão. É claro que agora não podemos deixar de resistir,
mas qual é nossa verdadeira meta? Não gosto da posição crítica que não assume
uma responsabilidade — o Estado existe, nós o criticamos, mas precisamos
manter distância. Nesse sentido, sou muito pragmático: se não há alternativa,
prepare-se para sujar as mãos. Falemos do poder, por exemplo. Eu estava
envolvido numa discussão na Grécia e me disseram que a maior ambição da
Esquerda era tentar tomar o poder. Acho que o sonho secreto da Esquerda radical
nas últimas décadas consistiu no que ela mais temia, a perspectiva real de
tomar o poder. Eles têm medo do poder. Acho que nesse sentido temos de ser
brutais e não ter medo do poder. Eis o motivo do meu conflito com Simon
Critchley. Ele dizia “temos de ficar de fora e pressionar o poder para que seja
um pouco melhor etc.”. Penso que se esse for o caso, então não somos nada,
então abandonamos a perspectiva radical. No entanto, a pergunta básica é esta:
o sistema capitalista global está aí para ficar ou nós ainda acreditamos na
existência de um antagonismo que, de uma forma ou de outra, torna a mudança
necessária? Nada pra mim é imutável — as coisas já estão mudando
loucamente, estamos no meio da mudança.
[Rogério] Fofoca filosófica: em O ano
em que sonhamos perigosamente, você disse que o fist-fucking era
a prática sexual predileta de Foucault. De onde vem isso?
Sim,
li isso em um livro que ia bem contra Foucault… Esqueci o nome do autor, um
idiota da New School for Social Research. Havia alguns rumores de que… não me
importa, não acredito neles, mas a ideia é que quando Foucault soube que tinha
Aids, ele quis ter sexo promíscuo com o máximo de pessoas possível, já que ia
morrer. E esse sujeito diz que esse tipo de sexo era o que mais fascinava
Foucault quando ele estava com 42-3 anos em San Francisco, ensinando em
Berkeley.
Sou
muito romântico nesse sentido, penso como Badiou. Acho que sexo sem amor, além
de não ser subversivo, encaixa-se muito bem na constelação ideológica de hoje.
Acho que em muito pouco tempo o amor e a paixão se tornarão um pouco
subversivos. Acho mesmo que sexo sem amor encaixa-se perfeitamente no foco de
subjetividade de hoje, não há nada de subversivo nele.
[Rogério] E no caso das mulheres, elas podem
mesmo pensar para além da prisão do mito do eterno feminino? Refiro-me aqui a
Simone de Beauvoir.
Sim, concordo com ela porque o eterno feminino é um
mito estritamente masculino. Lacan confirma isso quando diz que — é assim
que interpreto aquela frase maravilhosa e enigmática dele — a
Mulher, La femme, é um dos Nomes-do-Pai. Essa ideia de que por
trás da subjetividade feminina, frágil e histérica, existe uma mulher primordial,
isso não diz respeito às mulheres, é um mito masculino.
Mas aí chegamos a outro problema lacaniano. Muitas
pessoas discordam da minha leitura do pas tout, o
não-Todo. As pessoas tendem a interpretá-lo no sentido de que o homem é todo na
ordem simbólica enquanto existe uma parte da mulher que resiste a essa ordem
simbólica, que a mulher só está presa parcialmente nessa ordem simbólica. Para
mim essa leitura é totalmente equivocada, vejo exatamente o oposto — a
ideia de exceção, de que parte da mulher não está presa na ordem simbólica, é
precisamente uma posição masculina. A mulher é não-Toda justamente porque ela
está tão inteira dentro da ordem simbólica que não há exceção a partir da qual
ela possa totalizar sua posição. Infelizmente, a leitura predominante baseia-se
muito em algumas passagens do Mais, ainda. Quando
Lacan fala de Santa Tereza, por exemplo — que a mulher goza, que ela não
sabe o quê, mas simplesmente, sem palavras, goza.
É
interessante pensarmos em Santa Tereza nesse sentido. Se há uma pessoa que não
existiu fora da ordem simbólica, ela é Santa Tereza. Ela escrevia o tempo
inteiro, é uma pessoa de escrita histérica. Essa é a posição feminina, não esse
tipo de mãe primordial.
Mas quem propôs a noção de ewig-Weiblichen, eterno feminino? A pessoa mais
asquerosa da história da literatura, Goethe. Está no último verso de Fausto. Tudo bem, não serei tão radical e dizer que
nada presta em Goethe, mas ele representa o tipo de saber que eu detesto. Há
biografias recentes que mostram como ele delatava os amigos e era cruel e
extremista. Não foi o tipo de intelectual que participa do governo local com o
príncipe para fazer algo de bom. Ele era o linha-dura dentro do governo
— convenceu o príncipe a prender mais pessoas, a exercer um controle maior
etc. Pra mim, a Alemanha teve outros sujeitos interessantes naquela época, como
Heinrich Von Kleist, por exemplo, não Goethe.
[Rogério] Gosto muito do Kleist, sempre volto
a um texto dele, Sobre o teatro de marionetes, sabe?
Sim, Kleist é um gênio! Não só as narrativas, mas
também algumas peças como Príncipe de Hamburgo ou Pentesileia. Ele escreveu duas coisas que considero
maravilhosas, esse ensaio curto que você mencionou sobre as marionetes e outro
texto chamado Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no
discurso, no qual ele diz, de uma maneira bem lacaniana, como nossos
maiores pensamentos surgem quando queremos dizer algo, mas somos levados pelo
erro. Há toda uma teoria de como dizemos uma coisa, dizemos demais, depois não
sabemos o que queríamos dizer até que tentamos inventar uma coisa desse jeito
etc. É uma teoria maravilhosa, incrível mesmo.
[Rogério] Falando sobre linguagem, então. Você
costuma conversar com seus tradutores? Como pensa a questão da tradução?
Se tenho uma coisa importante a dizer, ela deve
sobreviver à passagem por uma língua estrangeira. Não acredito na fórmula de
que algo só possa ser dito na nossa própria língua.Quase nunca converso. Mas o verdadeiro horror pra
mim é a China. Eles já traduziram cerca de dez livros meus para o chinês, e
amigos da minha confiança me disseram: “se quiser continuar dormindo bem, não
queira saber dessas traduções”. Soube que são traduções descritivas péssimas,
que deturpam totalmente o que eu disse, tornam passagens ridículas etc.
Sobre
a tradução, acho que posso dizer sobre a minha relação com línguas
estrangeiras. Acho que há 25 anos escrevo quase exclusivamente, com exceção de
declarações políticas, em inglês. E gosto do inglês justamente por ser uma
língua que me força a ser um pouco mais disciplinado comigo mesmo, um pouco
mais preciso, mais conciso etc. Eu seria muito pior se escrevesse na minha
língua. Não me comparo de forma megalomaníaca com os outros, mas é como Samuel
Beckett, que era irlandês, mas acabou escrevendo em francês.
[Rogério] Ou Nabokov.
Sim,
Nabokov, Joseph Conrad, eu gosto deles. Veja só, eis o meu momento
anti-heideggeriano. Heidegger diria que devemos permanecer fiéis às nossas
raízes, à nossa língua, que apenas a língua original é autêntica. Mas eu gosto
dessa ideia de quando Lacan fala sobre o passe no tratamento psicanalítico, de
como, para autentificar a experiência analítica, é preciso de dois idiotas
capazes de transferi-la para o expectador ou algo do tipo — é a ideia de
que sua mensagem tem de sobreviver a essa passagem pelo conhecimento comum de
dois idiotas que a relatam. O mesmo acontece comigo: se tenho uma coisa
importante a dizer, ela deve sobreviver à passagem por uma língua estrangeira.
Não acredito na fórmula de que exista algo que só possa ser dito na própria
língua. É por isso, por exemplo, que nunca tive esse fascínio de Heidegger pela
língua grega. Eu gosto de latim por ser uma língua mais externa, mecânica etc.
Por
conta do meu posicionamento geral, o mesmo vale para os grandes escritores.
Acho que os maiores escritores, ou artistas compositores, são aqueles que não
estão limitados ao seu momento ou contexto histórico.
Vejamos Shakespeare. É claro, para entender o que
ele de fato quis dizer, é preciso conhecer toda a situação da Inglaterra, mas o
que há de especial em Shakespeare é que podemos descontextualizá-lo totalmente,
retirá-lo de seu contexto, reinventá-lo — e sim, por isso gosto dessas
versões modernas da obra dele, como o último Coriolanus, que
Ralph Fiennes adaptou para o cinema. Sinto o mesmo com as óperas de Wagner, por
exemplo.
[Bernardo] Mas como você vê a questão da
linearidade das obras traduzidas como um todo? Como acha que pode ser mantida
uma unidade de estilo e terminologia em outra língua com uma obra tão vasta
quanto a sua?
Bem,
depois de ter péssimas experiências com alguns tradutores (não de países
latinos), adotei a postura da completa ignorância para não ter dor de cabeça:
prefiro não saber o que acontece com as traduções das minhas obras, se são
fiéis ou não etc. Mas se eu tivesse de escolher uma solução, preferiria
definitivamente que meus livros fossem traduzidos por uma única pessoa. Não
acredito no diálogo entre tradutores do mesmo autor.
[Rogério] Você conhece literatura brasileira?
Infelizmente sou muito limitado ainda nesse
campo. Mas gosto, por exemplo, do Manuel Puig, que não é brasileiro, mas
teve uma relação especial com o Brasil. Não gosto tanto do filme, gosto mais do
romance, O beijo da mulher aranha, dessa ideia de ir aos
extremos: de um lado o fato brutal da tortura de prisioneiros políticos, e de
outro um mundo maluco de fantasias, gays etc. Eu me lembrei dele porque quem
faz a mulher fatal no cinema é a Sônia Braga. (Por sinal, adoro a sobrinha
dela, Alice Braga.)
E preciso te dizer de um escritor que não gosto
muito, conhecido no meu país, inclusive: Jorge Amado. Não gosto muito desse
estilo materialista sexual ou algo do tipo [risos]. Gosto muito
de alguns filmes brasileiros mais recentes, Cidade de Deus, Central do Brasil, mas o que realmente é bacana e
conhecido na minha região é o maior produto intelectual de exportação do
Brasil, as novelas. Lembra-se de Escrava Isaura? Há
30 anos, essa novela foi algo totalmente mítico no meu país, ainda sob regime
comunista; a atriz principal visitou Liubliana. Acreditou-se que talvez alguns
fãs se interessariam, então publicaram no jornal o nome do hotel em que ela
estava hospedada. Foi uma loucura completa, mais de cem pessoas se juntaram na
porta do hotel. Entende como pra mim é errado dizer, “Ah, mas isso é tipicamente
do Brasil”? Sim, é claro, mas a genialidade é que as novelas brasileiras também
dão certo em uma sociedade totalmente diferente como a nossa. Foi maravilhoso
ver uma série simples como Escrava Isaurasuperar
a audiência das séries norte-americanas.
Esse
é um dos bons efeitos da globalização. Paradoxalmente, a globalização não quer
dizer que, em termos culturais, como pensam alguns idiotas, todos conseguiremos
assistir Hollywood. Globalização é justamente a possibilidade de países como
Brasil — ou até menores, como Romênia, Coreia do Sul, Irã — terem seu
momento global. Nesse nível, ela é maravilhosa.
E
outra coisa, eu levo muito a sério essa questão das novelas, não estou fazendo
piada de uma maneira pós-moderna. A tradição das novelas brasileiras é uma
contribuição genuína para a cultura mundial. É única a maneira como vocês
pegaram uma coisa aparentemente monopolizada pela TV norte-americana, Hollywood
ou pela Europa e deram a ela um novo sentido. Elas ainda fazem sucesso?
[Rogério] Muito sucesso. Recentemente, por
exemplo, o país inteiro se mobilizou por conta de Avenida Brasil,
cujo tema era vingança.
Ah, vingança, eu adoro o tema! Um exemplo patético:
se eu mato sua esposa, você primeiro deve me matar e só depois me perdoar. [risos]
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Rogério Bettoni é filósofo e tradutor. De Slavoj Žižek, traduziu, entre
outros, O ano em que sonhamos perigosamente e Mais que nada (no prelo), ambos pela
Editora Boitempo. Editor do Umbigo das Coisas.
Bernardo Malamut é psicólogo e psicanalista. Editor do Umbigo das Coisas.
Regina Miraaz é jornalista e socióloga. Membro do conselho editorial e colaboradora do Umbigo das Coisas.
Bernardo Malamut é psicólogo e psicanalista. Editor do Umbigo das Coisas.
Regina Miraaz é jornalista e socióloga. Membro do conselho editorial e colaboradora do Umbigo das Coisas.