sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O desejo, ou a traição da felicidade. (Entrevista)



Há muitos anos, o filósofo Slavoj Zizek procura explicar a teoria lacaniana do desejo pela análise da cultura moderna. Por ocasião da publicação de
La marionnette et le Nain. Le christianisme entre perversion et subversion, (A Marionete e o Anão. O cristianismo entre perversão e subversão) que propõe uma releitura provocante do cristianismo "entre perversão e subversão", quisemos interrogá-lo sobre a questão do desejo nos dias atuais. Entre ovos Kinder Surprise e café sem cafeína, nossa época sob o prisma do "pequeno objeto a", do Superego e do "Grande Outro".


Como você se situa em relação à idéia de que nós vivemos numa sociedade em que a maioria de nossos desejos seriam alienados?

Slavoj Zizek - É preciso ser prudente. Toda a temática dos anos 1960, em torno da crítica da "sociedade de consumo", tem sido que nos oferecem pequenas satisfações, pequenos momentos de felicidade, prazeres bobos para nos privar dos "verdadeiros" desejos. Eu creio que esta é uma fórmula demasiado ingênua. Em La Marionette et le Nain, eu falo a respeito dos ovos Kinder Surprise. A maioria das crianças compra ovos Kinder pela surpresa. Eles nem sempre se dão o tempo de comer o chocolate. Trata-se de uma lógica do desejo, e não do consumo. Os ovos Kinder são o modelo de todos esses produtos que nos prometem alguma coisa "a mais" do que aquilo que poderíamos consumir, como essas embalagens em que está escrito: "Numerosos prêmios a ganhar no interior". É preciso, pois, resguardar-se ante uma mitologia que oporia nossos "verdadeiros" desejos e uma sociedade de consumo toda ocupada em aliená-los. Tome uma certa vulgata "deleuziana" de nossos dias: ela desenvolve um modelo que repousa sobre a oposição entre a organização hierárquica, sistemática, o Estado, o "Império", e os fluxos nômades, a "multidão" dos desejos. Mas, o capitalismo atual é precisamente nômade. Por que e como se vai combatê-lo, quando se começou a esquecê-lo? É como esses feministas americanos que atacam a sociedade contemporânea, como se ela ainda repousasse sobre um modelo de autoridade patriarcal. A estrutura subjetiva do capitalismo contemporâneo é precisamente a do sujeito nômade, sem identidade fixa. Então nem se pode dizer que é preciso combatê-lo, porque ele "reterritorializa" os fluxos, os desejos, pois a "reterritorialização" é a própria máquina que desencadeia o dinamismo. Os marxistas já tinham este sonho: manter a estrutura, mas sem o lucro, a mais-valia. Eles queriam desembaraçar-se do obstáculo, mantendo o dinamismo puro, mas eles não viram que eles perdiam o dinamismo junto com o obstáculo.

Então, não estou totalmente de acordo com esse tipo de crítica da "sociedade de consumo". O que permanece em mim, é a idéia de que a felicidade não pode ser uma categoria ética. Eu discutia recentemente com amigos espanhóis. Eles me diziam que tinham gostado muito da descrição, que eu faço em Bienvenue dans le désert du réel [Bem-vindos ao deserto do real, livro traduzido para o português], da "felicidade" na Tchecoslováquia comunista dos anos 1970-1980. Todo o mundo era "feliz" naquela época: as necessidades materiais estavam satisfeitas, embora não completamente, se bem que se podia estar satisfeito com o que se possuía; tudo o que estava mal era imputado ao Outro, ao Partido; e havia também um Outro com o qual sonhar de maneira realista, pois ele não estava muito afastado, o Ocidente consumista. Segundo meus amigos, ocorria exatamente a mesma coisa na Espanha durante os dez últimos anos sob Franco. Existe mesmo uma piada espanhola para responder à questão: "Como era a vida sob Franco? - A vida sob Franco era muito agradável". Não se deveria legitimar uma mudança, dizendo que se vai trazer mais felicidade. A verdadeira mudança política consiste sempre em modificar os próprios parâmetros daquilo que se entende por felicidade.

Isso significa que se deve deixar de ser crítico com relação a esse tipo de sociedade?

Slavoj Zizek - O que seria preciso criticar, é a própria idéia de "consumo". Será que estamos realmente numa sociedade "de consumo"? O modelo da mercadoria é hoje o café sem cafeína, a cerveja sem álcool, o creme fresco sem gordura. A meu ver, isso significa primeiro que se tem mais medo de consumir verdadeiramente. A gente quer comer, mas sem pagar o preço. Caso se queira criticar a sociedade moderna, não é preciso se agarrar a essa idéia de "consumo". Uma chave mais interessante seria a noção de "vítima". É preciso compreender como isso determina nossa noção de tolerância e nossa relação ao desejo do outro. O que quer dizer atualmente "tolerância"? É simplesmente o inverso da noção de "assédio". E, o que quer dizer "assédio"? Isso quer dizer que o Outro, como sujeito de desejos, não deve se aproximar demasiadamente de mim. Em outros termos, a tolerância é hoje exatamente a intolerância. A figura da subjetividade torna-se completamente narcisista; ela se constitui no temor da proximidade dos outros. Isso me lembra de quando Kierkegaard pergunta: "Quem é o próximo que se deve amar?", e ele responde: "Aquele que está morto".

Este problema do Outro está conexo com o do interdito e de seu papel no funcionamento do desejo?

Sim, mas também aqui é preciso avançar, com prudência. De um lado, há hoje um problema com o fracasso das ordens simbólicas - do "Grande Outro", como diz Lacan. Isso conduz a um regime de interiorização das regras, e então, segundo Freud, a uma hipertrofia do superego. Ora, como Lacan o havia visto bem, o superego funciona como imperativo de gozo e também como interdito. A conseqüência paradoxal e trágica é uma corrida desenfreada ao gozo que acaba, evidentemente, na impossibilidade de gozar, pois o superego exige cada vez mais. Meus amigos psicanalistas me contam que hoje em dia o sentido de culpabilidade de seus pacientes não é mais fundado sobre o interdito, mas sobre esta injunção de gozar, "de aproveitar". Agora, as pessoas não se sentem mais culpadas, quando têm prazeres ilícitos, como antes, mas quando não são capazes de aproveitá-los, quando não chegam a gozar. Mas, de outro lado, não se deve concluir, com certos semi-lacanianos como Pierre Legendre, que seja preciso restabelecer a Lei e a Ordem simbólica como espaço de transgressão. Lacan era grande inimigo do pensamento de Bataille, e isso não somente por razões puramente pessoais: o problema, a seus olhos, é que o desejo se encontra justamente, em Bataille, totalmente edificado sobre a transgressão.

A psicanálise tem aqui um papel essencial a desempenhar. Todos os outros discursos adquirem a forma de injunção para gozar, para buscar a felicidade. Mesmo o Dalai-Lama aderiu! A psicanálise é um discurso que não impede de gozar, mas que permite justamente não gozar. Você pode gozar, mas não sob a forma de uma regra, de uma interiorização "superegoica". Por isso, o pensamento freudiano é mais atual do que nunca. Diz-se hoje por toda a parte, mesmo entre pessoas favoráveis à psicanálise, que Freud está ultrapassado, que ele é filho de uma sociedade burguesa, vitoriana, fundada sobre interditos fortes, que já não têm mais sentido hoje em dia. Mas, seu problema jamais esteve na repressão ou no interdito: ele estava antes no paradoxo de uma permissão que bloqueia o gozo. Não é na atualidade que podemos desembaraçar-nos desta imagem simplista de um Freud que combate a opressão sexual. Todos os freudo-marxistas inteligentes o compreenderam. Por isso, Adorno sempre criticou Reich e sua idéia de uma explosão orgástica.

Em Bienvenue dans le désert du réel [Bem-vindo ao deserto do real] você tem esta fórmula, da qual você diz que ela é característica do que nos ensina a psicanálise: "a traição de desejo tem um nome: a felicidade".

A concepção de Lacan - seu lado hegeliano e mesmo sartreano -, é que o desejo é transcendência, falta, abertura, enquanto o prazer, ou a felicidade, é equilíbrio, homeostase. Deleuze defendeu esta idéia de modo ainda mais radical, quando ele disse que o masoquismo ou o amor cortês eram a manifestação do desejo em estado puro, o desejo que não necessita de satisfação, porque ele já é, por si mesmo, sua própria satisfação. Eu desenvolvi esta idéia em Subversion du sujet (Presses universitaires de Rennes, 1999).

O desejo parece, primeiramente, "patológico", ou seja, suscitado e orientado pelos objetos que nos afetam. Ele não tem a dignidade de um a priori transcendental. A idéia que havia defendido Bernard Baas em seu belíssimo livro: Le Désir pur [O desejo puro] (Le Désir pur. Parcours philosophiques dans lês parages de Lacan, ed. Peeters, Lovaina, 1992), é que Lacan "transcendentalizou" precisamente o desejo. É o projeto de seu célebre texto Kant avec Sade: mostrar que existe uma capacidade do desejo puro que não necessita de uma referência ao objeto" - o que Lacan chama de "o pequeno objeto a"(le petit objet a - torna-se, então, precisamente uma posição estrutural, uma espécie de objeto a priori. Ele serve paradoxalmente para subtrair o desejo de sua vinculação ao objeto, à sua realidade patológica. A ética do desejo é de permanecer fiel a este a priori. Como o diz Lacan: o desejo último é, pois, aquele da não-satisfação do desejo, o desejo de permanecer aberto.

Você não deu solução ao dilema. De um lado, tem-se, pois, o apelo a um restabelecimento da ordem simbólica, da Lei: do outro, a crítica pós-moderna, relativizando as normas e chegando a uma interiorização que finalmente bloqueia o gozo, erigindo a ele próprio em norma suprema. Mas, o que mais se poderia ter?

Slavoj Zizek - Eu creio que o próprio Lacan não encontrou a fórmula. Em Freud há uma concepção da civilização como produto do crime original. A sociedade se transforma em comunidade no crime, no assassinato do Pai. É o modelo que se encontra em Totem e Tabu. A questão é: existe um outro modo de socialização, além da relação a uma ordem simbólica? Este é também o problema da ética psicanalítica. Há um Lacan de quem não gosto. É aquele que diz que o fim da experiência analítica é a "travessia do fantasma", vivida como experiência intensiva, excepcional. Depois, só se poderá retornar ao espaço social e simplesmente "jogar o jogo", com mais ironia. O problema, para mim, é que esta postura é precisamente aquela à qual induz o capitalismo contemporâneo. A psicanálise precisa dar-se conta que a posição antiga, na qual a sociedade carrega os interditos e o inconsciente as pulsões desregradas, está hoje invertido: é a sociedade que é hedonista, desregrada, e o inconsciente que regula.

Vê-se muito bem com o estatuto das crenças, que me interessam particularmente em La Marionette et le Nain: hoje se quer bem crer, mas por meio dos outros, de maneira distanciada. Conta-se esta história a propósito de Niels Bohr: um amigo que o visitava, viu presa à porta uma ferradura de cavalo. Ele lhe comunicou seu espanto em face de tal marca de superstição. E Bohr teve esta resposta: "Sem dúvida não creio nisso, mas me disseram que isso funciona mesmo que não se creia nisso". Para mim, este é o arquétipo da crença moderna. Todos os meus amigos judeus dizem: "Não se come carne de porco, mas, certamente não se crê nisso". Trata-se de uma crença objetivada, o que se chama hoje em dia de uma "cultura".

Isso ainda não nos dá resposta ao dilema...

Slavoj Zizek - Eu creio que o exemplo de solução foi dado pelos esforços de Lacan para fundar uma sociedade analítica. Num sentido, trata-se de um fiasco total, mas a idéia estava aí: construir um espaço social, onde não se estaria reunido apenas pela figura do Pai, do Mestre, mas pelo objeto do próprio desejo. A aposta é que o campo social não é somente um domínio de ilusões, de aparências, em que só se pode jogar o jogo - a única diferença sendo a de saber se o mesmo é levado a sério ou se é feito de maneira irônica. Será que se poderia criar um espaço social que não tivesse necessidade de fantasma, de "significante-mestre"? Foi isso que meu deu a idéia, após a leitura de Alain Badiou (Saint Paul, La fondation de luniversalisme, ed. PUF, Les Essais du Collège international de philosophie , 1997), de que se tem um exemplo desse projeto em São Paulo, na idéia de "comunidade dos crentes" (Sobre a recepção de Paulo no Ocidente e sobre o livro de Badiou, confira a edição da revista IHU On-Line publicada em abril deste ano e disponível nesta página). O outro exemplo em que se pode pensar encontra-se em certos partidos revolucionários. É uma via média entre o individualismo hedonista e o retorno a um modelo autoritário. Como Badiou mostrou de um modo que me parece convincente, este tem sido precisamente o problema de Paulo. De um lado, o sistema judeu, fundado sobre a Lei; do outro, o individualismo romano. Toda a questão é a de construir a "comunidade dos crentes", como terceira possibilidade.

Eu creio que é preciso aceitar este risco, ou desafio, de que a Lei não é o último horizonte. Aqui se deve ir mais longe do que aqueles que procuram relativizar a mensagem de Paulo. Para eles, tratar-se-ia simplesmente de dizer que, quando se está no amor de Cristo, não se tem necessidade da Lei, porque se faz o que diz a Lei naturalmente. É a versão humanista. Mas, ela mascara simplesmente o lado horrível da proposição. Santo Agostinho diz: "Se tu amas Deus, tu podes fazer o que tu queres". Uma vez, ele esquece mesmo "Deus": "Ama, e podes fazer o que tu queres". É um risco, ou desafio, a enfrentar. Há um momento de suspensão do regime da Lei. Para mim, é esta a perspectiva do último Lacan.

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