Por Slavoj Zizek, publicado originalmente no Le Monde
Diz-se frequentemente que a vitória de Barack Obama representa a realização do sonho de Martin Luther King de uma emancipação total dos Negros: aquilo com que o pastor sonhava tornou-se realidade. A sério? Na Primavera de 2008, enquanto os Estados Unidos comemoravam a morte trágica de Martin Luther King, Henry Louis Taylor comentava com amargura que "a única coisa que sabemos é que este homem tinha um sonho. Não sabemos qual era esse sonho".
Este apagamento da memória histórica diz respeito particularmente à época situada depois da Marcha sobre Washington, em 1963, onde King foi aclamado como "o líder moral da nossa nação". Apoiou de seguida os problemas da pobreza e do militarismo, pois pensava que estas questões, e não apenas o espectro da fraternidade racial, eram decisivas para tornar a igualdade numa realidade. Pagou por isso um preço elevado, uma vez que foi, cada vez mais, sendo tratado como um pária. O perigo a que Obama se expôs durante a sua campanha foi esse, o mesmo a que a censura histórica submeteu, mais tarde, King, o mesmo que Obama já impôs a si próprio: a "limpeza política" do seu programa de temas polémicos para garantir a sua eleição.
Lembremo-nos de A Vida de Brian, que tem lugar na época de Cristo: o chefe de uma organização de resistência judia afirma que os romanos só trouxeram miséria aos judeus; quando os seus discípulos comentam que os romanos introduziram o ensino, construíram estradas, desenvolveram a irrigação, etc., ele conclui em tom triunfante: "De acordo, mas tirando o sistema sanitário, o ensino, o vinho, a ordem pública, a irrigação, as estradas, o sistema de água potável e a saúde pública, o que é que os romanos fizeram por nós? Só nos trouxeram miséria!" As últimas declarações de Barack Obama não seguem a mesma lógica? "Eu represento uma ruptura radical com a política de Bush! Claro, advogo o apoio incondicional a Israel, mantenho o boicote a Cuba... mas represento a ruptura radical com a política de Bush!"
O discurso inaugural de Obama deu o toque final a este processo de "limpeza política" - por isso foi uma desilusão para muitos liberais de esquerda dos Estados Unidos. A sua mensagem dirigida "a todos os povos e a todos os governantes que nos vêem hoje" foi: "Estamos de novo prontos a desempenhar o nosso papel de líderes. Não vamos pedir desculpa pela nossa forma de vida nem hesitaremos em defendê-la". Durante a campanha eleitoral, sublinhou-se várias vezes que quando Obama falava da "audácia da esperança", da mudança em que podíamos acreditar, empregava uma retórica de mudança que não tinha qualquer conteúdo concreto: que esperança devíamos ter? Em que mudança acreditar?
Hoje, as coisas estão um pouco mais límpidas: Obama propõe uma mudança táctica que tem por fim reafirmar os objectivos fundamentais da política americana: a defesa do modo de vida americano e o papel preponderante dos Estados Unidos. O império americano será mais humano e respeitador dos outros, preferirá o diálogo à imposição violenta da sua vontade. Se a administração Bush representava o império de rosto bárbaro, a partir de agora deveríamos ter um império de rosto humano, mas será sempre o mesmo império.
No entanto, para responder adequadamente aos problemas que enfrentamos, os Estados Unidos deveriam precisamente aceitar o facto de pertencermos a um mundo multicêntrico, no qual nenhuma superpotência poderá desempenhar sozinha um papel preponderante, mas também que o modo de vida americano faz parte do problema, de modo que os Estados Unidos deveriam, já que não pedem desculpa, pelo menos começar a vê-lo com um olhar crítico.
COMO?
Tomemos só um exemplo. A 23 de Outubro de 2008, a Associated Press relembrava algumas observações pertinentes feitas por Bill Clinton sobre a crise alimentar mundial aquando de uma reunião das Nações Unidas por ocasião do Dia Mundial da Alimentação. O ponto principal do discurso de Clinton era que a crise alimentar mundial mostra que "todos falhámos nesta questão, incluindo eu quando era presidente", tratando os produtos alimentares como mercadorias em vez de os ver como um direito vital para os pobres de todo o mundo. Clinton imputava, assim, a responsabilidade não só a um país em particular mas à política ocidental mundial imposta a longo prazo pelos Estados Unidos e pela União Europeia, e posta em prática durante décadas pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e as outras instituições internacionais. Esta política forçou os países da Ásia e de África a explorar as terras mais férteis para a produção destinada à exportação, aplicando um golpe fatal à auto-suficiência alimentar desses países.
Tais "ajustamentos estruturais" traduziram-se na integração da agricultura local na economia mundial: enquanto as colheitas eram exportadas, os camponeses expulsos das suas terras estavam fechados em favelas, tornando-se mão-de-obra disponível para os postos de trabalho clandestinos que asseguravam a subcontratação, e esses países dependiam cada vez mais da alimentação importada. Desta forma, são mantidos num estado de dependência pós-colonial e estão cada vez mais vulneráveis às flutuações de mercado - a rápida subida do preço dos cereais (igualmente causada pela utilização dos cereais nos biocombustíveis) nestes últimos anos já está na origem de fomes em vários países, do Haiti à Etiópia.
Esta relação com o Terceiro Mundo é uma parte inerente do modo de vida americano. Clinton tem razão ao dizer que "a alimentação não é uma mercadoria como as outras. Deveríamos voltar a uma política de auto-suficiência alimentar máxima. É absurdo pensar que podemos contribuir para o desenvolvimento de países no mundo inteiro sem reforçar a sua capacidade de se alimentarem pelos seus próprios meios". No entanto, devemos acrescentar aqui duas coisas.
Em primeiro lugar, devemos ter em conta que, impondo a globalização da agricultura aos países do Terceiro Mundo, as nações ocidentais desenvolvidas tratam de manter a sua própria auto-suficiência alimentar, concedendo ajudas financeiras aos seus próprios agricultores (lembramos que a ajuda financeira aos agricultores representa mais de metade do orçamento total da UE) - na verdade, o Ocidente desenvolvido nunca abandonou a "política da auto-suficiência alimentar máxima".
Em segundo lugar, devemos tomar consciência de que a lista de produtos e de coisas que não são "mercadorias como as outras" é bem mais longa: não só a defesa (como o sabem todos os "patriotas"), mas sobretudo a alimentação, a água, a energia, o ambiente enquanto tal, a cultura e a educação, a saúde... Quem determinará estas prioridades e como, se não as podemos abandonar ao mercado? São estas as verdadeiras questões que se nos colocam hoje em dia.
Silvio Berlusconi fez um comentário de mau gosto sobre Barack Obama, dizendo que ele era jovem, bonito e bem bronzeado - uma observação condescendente que só vê na cor da pele de Obama uma simples questão de estilo, uma excentricidade simpática. No entanto, podemos interpretar este comentário de uma forma completamente diferente: alguns intelectuais negros deixam-se identificar com o mundo universitário branco e liberal, que os aprecia precisamente porque eles parecem ser "um dos nossos", brancos com a pele escurecida. É o que parece ser Obama no plano político: um branco liberal que se cobriu de sombras.
Traduzido do inglês por Christine Vivier. Traduzido para português por Rui Maio
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