sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Um empreendimento pré-marxista (2000)



Hoje em dia, em meio a uma dolorosa revolução das forças produtivas, é forte a tentação de dar vida nova à velha, desdenhada e quase esquecida dialética marxista de forças produtivas e relações de produção: qual será a influência da digitalização e da globalização não apenas sobre as condições de produção em sentido estrito, mas sobre nossa existência social, nossa práxis e nossa experiência (ideológica) da interação social? Marx gostava de confrontar a revolução política às transformações revolucionárias dos processos de produção. Seu "Leitmotiv" rezava que a máquina a vapor do século 18 contribuíra mais para a revolução da vida social do que todos os espetaculares acontecimentos políticos. Essa idéia não será agora mais relevante do que nunca, quando as transformações mais inconcebíveis da produção são acompanhadas de uma espécie de letargia política? Enquanto nos vemos em meio a uma radical metamorfose da sociedade, muitos pensadores igualmente radicais duvidam da possibilidade de uma ação política à altura.


Ademais, as noções de que dispomos para a descrição da nova constelação de forças produtivas e relações de produção (sociedade pós-industrial, sociedade da informação etc.) não são conceitos genuínos. São soluções de emergência: em vez de nos capacitar a refletir sobre a realidade histórica que designam, elas meramente nos dispensam do dever de pensar, aceitar ou renegar. A resposta-padrão dos pós-modernos, de Alvin Toffler a Jean Baudrillard, é a seguinte: não podemos pensar essa novidade, pois estamos presos aos velhos paradigmas industriais. Mas a verdade é o exato oposto desse lugar-comum: essas tentativas de superar ou obliterar a produção material, descrevendo a transição atual como passagem da produção para a informação, não serão afinal de contas uma tentativa de evitar a dificuldade de refletir sobre a ligação entre essa metamorfose e a estrutura de produção coletiva? Em outras palavras, a verdadeira tarefa não consistiria justamente em pensar o lugar do novo a partir dos conceitos da produção material coletiva? É justamente o que tentam fazer Michael Hardt e Antonio Negri em "Empire", um livro que se propõe a reescrever o "Manifesto Comunista" com vista ao século 21. Hardt e Negri descrevem a globalização como desterritorialização múltipla: o capitalismo global triunfante penetra em todos os poros da vida social, até mesmo nas esferas mais íntimas, e instaura uma dinâmica inédita, que não se baseia mais em estruturas de dominação patriarcal ou hierárquica, mas produz identidades flutuantes e híbridas. Ao mesmo tempo, essa decomposição fundamental de todos os laços sociais essenciais liberta o gênio da lâmpada: ela libera um grande potencial de forças centrífugas, que o sistema capitalista não será capaz de conter. Justamente por conta de seu triunfo global, o sistema capitalista é hoje mais vulnerável do que nunca. Segue valendo a velha fórmula de Marx: o capitalismo produz seus próprios coveiros.

O espaço transnacional

Hardt e Negri descrevem esse processo como a passagem dos Estados nacionais para o Império global, para o espaço transnacional, comparável à Roma antiga, onde proliferavam núcleos híbridos de identidades diversas. A política pós-moderna concentra-se em guerras culturais e lutas por reconhecimento: seu princípio básico é a tolerância sexual, étnica e religiosa, ela prega o evangelho multicultural. À leitura desses autores pós-modernos, é difícil fugir à impressão de que gostaríamos de banir os turcos e os demais imigrantes simplesmente porque não toleramos sua "outridade".

A intolerância sexual e cultural serve de chave para as tensões econômicas, e não o contrário, como nos bons velhos tempos do marxismo ortodoxo. O grande mérito de Hardt e Negri está em sua tentativa de trazer à luz a natureza contraditória do capitalismo turbinado e de identificar as forças progressistas no interior de sua dinâmica. Seu esforço heróico destaca-se da atitude corrente da esquerda tradicional, que cautelosamente procura meios de deter as forças destrutivas da globalização e de salvar o que puder ser salvo do Estado de Bem-Estar Social. Essa atitude é perpassada por uma desconfiança conservadora diante da dinâmica da globalização e da digitalização, em contraste com a confiança marxista nas forças transformadoras do progresso.
Entretanto sente-se já no nível do estilo um antegosto dos limites da análise de Hardt e Negri. Sua análise socioeconômica é pobre de percepções concretas e precisas, o que é escamoteado por meio do jargão deleuziano de multiplicidades, desterritorializações etc. Não é, portanto, de espantar que os três conselhos práticos que fecham o livro soem como um anticlímax. Os autores propalam a luta política por três direitos globais: o direito à cidadania global, o direito à renda mínima e a reapropriação dos novos meios de produção (isto é, o acesso e o controle da educação, da informação e da comunicação). É paradoxal que justo aqui nossos dois poetas da mobilidade, da multiplicidade, da hibridização etc. se saiam com três exigências formuladas na terminologia vigente dos direitos humanos universais.

O problema dessas exigências é que elas pairam entre o vazio formal e o radicalismo impraticável. Tomemos o direito à cidadania global: em princípio, não há como discordar; mas, se isso deve significar algo mais que uma solene declaração no estilo costumeiro da ONU, se ela deve ser levada a sério, então deveríamos nos preparar para um desmoronamento geral, passando pela promulgação de leis globais e pela dissolução das fronteiras nacionais.

Nas condições atuais, isso desembocaria numa invasão dos EUA e da Europa Ocidental pela mão-de-obra barata da Índia, da China, da África, seguida de um levante popular contra os imigrantes de tais proporções que Haider pareceria um modelo de tolerância multicultural. O mesmo vale para as demais exigências: o direito universal à renda mínima seria excelente, mas como alcançaremos as condições socioeconômicas para sua instauração? Essas críticas não se referem apenas a detalhes empíricos secundários.

O problema fundamental de "Empire" está no pouco fôlego de sua análise fundamental: de que modo o processo socioeconômico global poderia abrir espaço para medidas radicais comparáveis à revolução proletária, que, na visão de Marx, superaria o antagonismo fundamental do modo de produção capitalista? Por isso mesmo, "Empire" é ainda um livro pré-marxista.



Texto Retirado de: Zizek, Slavoj. “Um empreendimento pré-marxista”. São Paulo: Folha de São Paulo, 24 de setembro de 2000.

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