segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Os excessos do imaginário - Maria Rita Kehl

Por Maria Rita Kehl

Em "Bem-Vindo ao Deserto do Real!", Slavoj Zizek discute as transformações ideológicas ocorridas nos EUA e na Europa depois do 11 de Setembro

Logo na introdução aos cinco ensaios que compõem este livro, Slavoj Zizek adverte o leitor: ao contrário do que rezam os pressupostos liberais, a liberdade de pensamento não é o fundamento da liberdade política. Talvez ocorra aos leitores brasileiros a frase que encabeçava a coluna dos aforismos de nosso grande filósofo Millôr Fernandes: "Livre pensar é só pensar". 

Para Zizek, esse "só pensar" de que nos ocupamos na sociedade pós-moderna -criticando, questionando, desconstruindo as convicções que sustentam estratégias do poder- pode ser condição não de nossa liberdade, mas de nossa servidão. A falta de referências dogmáticas, a falta de um mestre inquestionável a quem enfrentar, a doce indiferença com que a cultura pós-moderna acolhe toda contestação, fazem do livre pensamento uma atividade intelectual ociosa e agradável, mas inútil. "O único modo de assegurar a servidão social é através da liberdade de pensamento", escreve o filósofo esloveno que compreende -com Chesterton, mais do que com Kant- que o engajamento subjetivo é o modo mais eficiente de fazer com que as pessoas colaborem com sua própria dominação. Assim, inauguramos a leitura de "Bem-Vindo ao Deserto do Real!", questionando a validade da própria empreitada; se o livro de Slavoj Zizek convoca o leitor a pensar, questionar e desconstruir suas idéias e convicções, isso não lhe garante nenhum acréscimo de liberdade para intervir na esfera pública, na estrutura dos poderes que, esses sim, determinam de fato até os limites da vida mais privatizada.

O que o pensamento de Zizek critica é a própria noção de liberdade privada, tão cara à vida "civilizada" contemporânea em oposição à qual ele vai resgatar o sentido forte da ação política. A reclusão à esfera da intimidade, hoje, é toda ela preenchida por "fórmulas de autenticidade privada propagadas pela indústria cultural", cuja expressão mais recente são as "confissões públicas de segredos íntimos nos shows de televisão". Contra a generalização desse eficiente dispositivo de alienação, Zizek não se constrange em propor que "hoje, a única forma de romper com as restrições da mercadização alienada é inventar uma nova coletividade" (pág. 105).

Cinema e TV

Os analisadores da "mercadização alienada" utilizados pelo autor neste livro, como em todas as suas obras, são os produtos da indústria cultural no sentido adorniano do termo. São notícias de jornal, programas de televisão, peças de publicidade e principalmente o cinema, representado pela produção hollywoodiana recente. A frase que dá título ao livro, por exemplo, é tomada do filme "Matrix", dos irmãos Wachowski. Lembra a passagem em que os protagonista desperta da realidade virtual controlada pela matriz. Ao se confrontar com o "deserto do real", a reação dele não é de libertação, mas de horror. 

Esse é o paradigma da sedução operada pela ideologia: ela nos faz desejar a dominação e repudiar o alto preço cobrado pela liberdade. Ninguém melhor do que Zizek, um filósofo que leu e compreendeu Lacan à luz de Hegel, para nos confrontar com os significantes mestres da ideologia que impregnam nosso modo de vida nos menores detalhes, de modo a tornar a alienação mais fascinante que a liberdade. Nos cinco ensaios que compõem este livro de 2002, editado recentemente no Brasil pela editora Boitempo, Slavoj Zizek analisa as transformações ideológicas que se produziram na Europa e nos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, sem dissociá-las do panorama psicossocial que produziu as condições do próprio atentado. O mundo contemporâneo estaria mergulhado na "paixão pelo real" (expressão tomada do filósofo francês Alain Badiou), da qual o terror fundamentalista é apenas a expressão mais espetacular. O real é o elemento traumático que resiste a ser integrado simbolicamente na vida social e/ou na realidade psíquica.

A impossibilidade de integração compele à repetição, como no caso dos pesadelos recorrentes que levaram Freud a indagar: se o sonho é realização de desejos, por que queremos repetir, no pesadelo, a experiência do horror? Só que paixão pelo real não é o avesso da ideologia: é a força propulsora das formações imaginárias que recobrem todos os aspectos da vida que não podemos compreender. É precisamente do imaginário que se alimenta a ideologia. Aliada a todas as formas de gozo, tal paixão gera o impulso cego que nos precipita, em ato, a intervir diretamente sobre o real, nos casos em que todo o campo simbólico parece estar tão perfeitamente recoberto pelo imaginário que nenhuma mudança substancial parece possível.

Sacrifício

O suicídio de Antígona e o atentado que destruiu as torres gêmeas do WTC em 2001 possuem essa característica em comum: são intervenções diretas sobre o real -que trazem à tona sua face extrema, a morte- que não alteram as condições simbólicas originárias, mas, ao contrário, contribuem para reforçá-las. A morte sacrificial de Antígona confirma a lei patriarcal imposta por Creonte, assim como a queda das torres fez por reafirmar a potência do império que o ato terrorista quis desafiar. Esse é o paradoxo da paixão pelo real: ela é alimentada pelas formações do imaginário, que no caso contemporâneo são produzidas na escala superindustrial do espetáculo globalizado. 

Se a demolição das torres gêmeas foi uma intervenção direta sobre o real, isso não impediu sua imediata tradução nos termos do imaginário das produções cinematográficas que formatam o mundo mental do cidadão norte-americano. Expressões como "a guerra do bem contra o mal", utilizadas pelo próprio presidente George W. Bush para mobilizar o mundo a favor de sua "guerra contra o terror", são evidências disso. A idéia de um "bem" absoluto só se sustenta em termos imaginários, indissociável da crença em um "mal" absoluto do qual ela é o oposto complementar. "O que um homem mau odeia não é o bem", escreve Zizek, lembrando Novalis: "Ele odeia excessivamente o mal" (pág. 164).

O texto de Zizek revela o esforço permanente do autor em subverter a cena imaginária na qual nosso pensamento é capturado e oferecer possibilidades alternativas de interpretação dos fatos. Só no campo simbólico tal mobilidade é possível. A própria lei simbólica deve ser reconsiderada, não como uma determinação sobre-humana e intransponível, mas como "um conjunto de arranjos sociais contingentes abertos à mudança" (pág. 120). É a simbolização da lei que mantém aberto o espaço para o ato.

Risco radical

Isso porque, para Zizek, o ato capaz de produzir diferença significativa nas condições do poder é aquele que incide sim sobre o real, mas aposta na possibilidade de ressimbolização, produzida "après coup", por efeito do próprio ato. Um ato, escreve ele, sempre envolve um risco radical: se é sempre situado em um contexto concreto, isso não significa que esteja inteiramente determinado por esse contexto. "Um ato altera retroativamente as próprias coordenadas em que interfere. Essa falta de garantias é o que os críticos (da noção de ato) não podem suportar: eles querem um ato sem riscos" (pág. 175).

Nas páginas finais do livro, o autor abre espaço para uma discussão tão delicada quanto atual para o leitor brasileiro: será que, nas democracias representativas modernas, sustentadas por lobbies de interesses e atreladas ao capital globalizado, existe espaço para um ato transformador? O conceito leninista de revolução é aventado por ele, que encaminha o último ensaio do livro até esse ponto extremo sem nos oferecer o lenitivo de uma conclusão.

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Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros.
Texto disponível em: http://www.boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?isbn=85-7559-035-9&veiculo=Folha%20de%20S.%20Paulo

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