quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Entre o mal e o pior - Silvia Pimenta Velloso Rocha

A obra de Slavoj Zizek ocupa posição singular no pensamento contemporâneo. Sua escrita se caracteriza por um estilo prolixo e provocador. Combina a reflexão teórica mais rigorosa com a análise de fenômenos da cultura midiática. Aborda conceitos da tradição filosófica por meio de exemplos inteiramente prosaicos - o Kinder Ovo, o sistema de descarga nas latrinas européias, a prática da cunilíngua -, alternando livros de caráter fundamentalmente acadêmico com outros de caráter mais polêmico - ensaios, entrevistas e intervenções.

Ele não hesita em utilizar a mídia como espaço de expressão. Colabora regularmente com jornais e dá entrevistas na TV. Essa aproximação com o universo pop, aliada a uma persona extremamente carismática, faz com que o filósofo seja considerado por alguns como mero fenômeno da mídia, mas a consistência e a densidade de sua produção teórica desmentem isso.

Zizek nasceu em 1949 em Liubliana, na antiga Iugoslávia. A partir dos anos 80, aproximou-se do pensamento francês, em especial da obra de Lacan. Doutorou-se em filosofia pela Universidade de Paris VIII, sob a orientação de J acques- Alain Miller. Em 1990, candidatou-se pelo partido Democracia Liberal Eslovena à presidência da Eslovênia nas primeiras eleições livres do país - segundo declarou, para impedir que o país seguisse a tendência nacionalista que prevaleceu na Sérvia e na Croácia.

Professor titular de sociologia da Universidade de Liubliana, é regularmente convidado como conferencista pelas principais universidades em todo o mundo.

Ao aproximar Hegel e Lacan, Zizek elabora uma ontologia e uma teoria do sujeito fundadas na idéia de negatividade: o real é impossível de ser totalizado ou plenamente simbolizado, e o sujeito é constituído por uma falta estrutural, que decorre de sua inscrição na linguagem.

Essa ausência radical de fundamento nos situa na impossibilidade de atingir uma plenitude ontológica ou subjetiva, representada pelo conceito de gozo. A ideologia (no campo social) e a fantasia (no campo subjetivo) têm a função de cobrir essa falha, sustentando uma ilusão de totalidade: elas não atuam como um véu que oculta ou recobre a realidade, mas como aquilo que a estrutura, sem o qual não haveria "real" para nós. A partir daí, Zizek desenvolve uma críti ca da ideologia e uma clínica da fantasia, voltadas para a análise de fenômenos contemporâneos. Um dos elementos fundamentais dessa análise é o diagnóstico lacaniano de uma inversão do supereu, que deixa de funcionar como instância repressora e passa a ordenar diretamente o gozo. Ao instaurar um prazer compulsório, o superego dissolve, em última instância, a própria oposição entre prazer e dever. É o que ocorre com a celebração contemporânea do sexo - por um lado, a maratona que se deve cumprir para desfrutar esse prazer está inscrita no regime do dever: ser belo, manter-se jovem e em forma etc. Por outro, a própria atividade sexual se toma compulsória, já que a culpa não decorre mais da presença de desejos proibidos, mas da incapacidade de satisfazê-Ios. A mídia e a esfera do consumo surgem como campo privilegiado dessa incitação ao prazer, pela oferta permanente de produtos que renovam a promessa sempre adiada desse goro impossível.

Outro aspecto marcante do pensamento de Zizek é a crítica à tolerância multicultural e ao politicamente correto. Essa postura esconde duas falácias: a primeira é que, ao recusar a superioridade da cultura ocidental, o multiculturalismo afirma indiretamente a superioridade de sua própria posição de enunciação - a única que reconhece a validade de toda prática cultural, religiosa etc. O que a tolerância politicamente correta não tolera é precisamente a adesão incondicional representada pelo fundamentalismo. Ela constitui assim um exemplo de racismo riflexivo, "que assume a forma de desprezar o Outro como racista, intolerante e assim por diante", como diz em Bem-vindo ao deserto do real.

A segunda falácia é que o Outro é geralmente reduzido a seus traços exóticos, sendo esvaziado de tudo o que poderia constituir um problema - ou seja, de sua alteridade. Tem-se assim um "outro idealizado que nos encanta com suas danças fascinantes, com sua abordagem holística e ecologicamente sensata da realidade, desde que não atentemos para algumas de suas outras práticas, como bater em mulheres e quejandos...", como diz em Paixão na era da crença desccifeinada.

É preciso, portanto, pôr em questão a própria posição relativista. Aquele que percebe o conflito político-ideológico atual como o embate entre os valores democráticos e a intolerância fundamentalista já está numa posição equivocada. A questão não é apoiar o terrorismo ou combatê-Io em nome da democracia liberal, mas perceber que ambos resultam de um mesmo processo: o fundamentalismo é já um efeito da globalização, "a Jihad já é McJihad", como explica em Bem-vindo ao deserto do real. Assim, é preciso "aceitar a necessidade de lutar contra o terrorismo mas redefinir e expandir os termos, de forma a incluir também (alguns) atos dos americanos e de outras potências ocidentais".

O que resta para o sujeito além das promessas de felicidade encarnada em bens de consumo? O que nos resta para além de uma ética fundada no relativismo e no respeito ao outro? O que resta para além de uma política fundada na democracia e nos direitos humanos? Zizek responde a essas questões com base no conceito de ato. Ao contrário das ações correntes, um ato se situa sempre além do bem e do mal- ou, mais precisamente, reconfigura aquilo que se entende por bem e mal. ''Um ato não se restringe a aplicar os parâmetros éticos dados, ele os redefine. Com relação ao problema da escolha, isso significa que uma escolha se toma um ato quando sua efetuação muda o valor de seus ter mos", diz em L'intraitable. Do ponto de vista subjetivo, um ato ocorre quando um sujeito aceita perder a si mesmo e põe em questão aquilo que, a seu ver, o define - experimentando uma destituição subjetiva. No plano político, um ato ocorre quando alguém assume o risco de agir sem garantias, "engajando-se numa espécie de aposta pascaliana de que o ato em si há de criar as condições para sua própria legitimação democrática 'retroativa"': é o que se chama revolução. O ato revela a inexistência do grande Outro, ou seja, de toda instância capaz de garantir nossos atos e fundar nossa vida. O resultado dessa aposta é um salto no abismo, único sentido válido da palavra liberdade.

Felicidade, gozo, democracia, tolerância são valores que operam como um axioma, constituindo o fundamento de nossa ideologia e de nossa fantasia. É precisamente esse axioma que se deve pôr em questão, é esse fundamento que devemos estar dispostos a perder. Ao contrário do ditado corrente, Zizek diz que é preciso jogar fora o bebê e ficar com a água suja do banho. Não se trata portanto de uma escolha entre o bem e o mal (democracia X fundamentalismo, prazer X dever, goro X repressão), mas da escolha entre o mal e o pior, que opõe de um lado a crença num grande Outro capaz de legitimar nossas ações e viabilizar nosso goro, e de outro lado a renúncia a essa crença, que nos leva a uma vida sem fundamento e a uma existência sem garantias.

Disponível na internet, no link: http://www.boitempoeditorial.com.br/publicacoes_imprensa.php?isbn=85-7559-035-9&veiculo=Entrelivros


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