quinta-feira, 28 de julho de 2011

Oscar Pilagallo - "O sistema está aí, e a história continua"

Para Slavoj Zizek, quatro “antagonismos” põem em xeque a economia de mercado 

Seria muito fácil descartar como ultrapassado ou extemporâneo um livro que, mais de duas décadas depois da queda do Muro de Berlim, considera que ainda há no horizonte uma hipótese comunista. 

Antes de deixar o pequeno volume de lado, no entanto, o leitor interessado nos desafios do capitalismo deveria prestar atenção em duas ou três observações de Slavoj Zizek sobre algumas fragilidades do sistema hoje hegemônico. 

O livro se insurge contra a tese do “fim da história” de Francis Fukuyama, segundo a qual, com a ausência da polarização ideológica desde o desmoronamento do comunismo, o capitalismo se impôs de tal maneira que não pode mais ser confrontado, restando apenas a possibilidade de reformas para aprimorá-lo. 

Em seu livro, Zizek sustenta que a história continua viva. O título é tirado da resposta de Marx a Hegel em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Na atualização de Zizek, a tragédia foram os ataques de 11 de setembro de 2001. A farsa seria a crise financeira mundial, a partir de 2008. Os dois eventos, diz o filósofo esloveno, desmontam a concepção de Fukuyama. 

Ao contrário de muitos analistas de esquerda, no entanto, Zizek não cai na esparrela de ficar aguardando a crise terminal do capitalismo a cada solavanco das economias mais ricas. Pensador sofisticado, ele identifica fissuras mais estruturais — daí a relevância de seu livro, independentemente da ideologia do leitor: onde o comunista lerá oportunidades, outros poderão ler alertas. 

O autor identifica quatro “antagonismos” que ameaçam o sistema capitalista global: o perigo da catástrofe ecológica, a inadequação da noção de propriedade privada em relação à propriedade intelectual, as implicações socioéticas da biogenética e as novas formas de apartheid, como muros para conter a imigração e favelas. 

Esses são fatores estruturais. Mas Zizek se debruça também sobre a conjuntura atual. Sobre a bilionária operação de salvamento do sistema bancário, nota a “superposição inesperada” da visão da esquerda com a dos conservadores. De fato, enquanto o documentarista iconoclasta Michael Moore falou em “roubo do século”, os republicanos falaram em “socialismo de Estado”. 

Para o filósofo, não se trata de nenhuma das duas coisas. É claro que não é socialismo — “se for, é de um tipo muito peculiar”, para ajudar os ricos, e não os pobres. Mas também não é roubo. “O slogan populista ‘salvem o povo das ruas, não Wall Street!’ é totalmente enganoso, uma forma de ideologia em seu grau mais puro, porque passa por cima do fato de que, no capitalismo, o que sustenta o povo das ruas é Wall Street! Sem ela, o povo das ruas se afogará no pânico e na inflação”. E conclui: “O paradoxo do capitalismo é que não se pode jogar fora a água suja da especulação financeira e preservar o bebê saudável da economia real”. 

É por isso que Zizek afirma que os democratas que apoiaram o plano de salvamento “não foram incoerentes com sua orientação esquerdista”. Embora não poupe elogios a Barack Obama, o filósofo admite que a atitude do presidente americano não é favorável à perspectiva comunista. “A verdadeira tragédia de Obama é que ele tem toda a probabilidade de vir a ser o derradeiro salvador do capitalismo e, como tal, um dos grandes presidentes conservadores americanos.” 

Como foi possível a Obama capitanear tal processo? Para Zizek, há coisas progressistas que só um conservador consegue fazer. Foi, por exemplo, o republicano Nixon que restabeleceu relações com a China. Da mesma maneira, há coisas conservadoras que só um progressista é capaz de fazer. Foram as credenciais progressistas de Obama, diz Zizek, “que lhe permitiram impor os ‘reajustes estruturais’ necessários para estabilizar o sistema”. 

O autor considera ingênua a esperança de que a crise “abra necessariamente espaço para a esquerda radical”. Seu primeiro efeito, ao gerar o medo, seria, ao contrário, a reafirmação “das premissas básicas da ideologia dominante”. Daí a possibilidade de a principal vítima não ser o capitalismo, “mas a própria esquerda, na medida em que sua incapacidade de apresentar uma alternativa global tornou-se novamente visível a todos”. 

Se o edifício do capitalismo suporta bem o abalo da crise financeira, haveria algo que pudesse comprometê-lo? 

Talvez o distanciamento entre capitalismo e democracia. Ao longo de décadas, e com raras exceções, o sistema econômico e o regime político foram inextricáveis. A China, no entanto, tem praticado o capitalismo num ambiente autoritário, ou, como diz Zizek, “com valores asiáticos”. É um exemplo de que “o potencial autêntico da democracia [...] está perdendo terreno hoje para a ascensão do capitalismo autoritário, cujos tentáculos vêm se aproximando cada vez mais do Ocidente”. 

Ele lembra outros dois exemplos: “O capitalismo de Putin, com seus ‘valores russos’ (demonstração violenta de poder) [e] o capitalismo de Berlusconi, com seus ‘valores italianos’ (exibicionismo cômico)”. 

Tais realidades contrastam com os tempos em que o capitalismo absorvia mudanças sociais, incorporando as ameaças ao sistema como novos valores. Foi assim depois de Maio de 68, quando “o novo espírito do capitalismo recuperou triunfantemente a retórica igualitária e anti-hierárquica [...], apresentando-se como uma revolta libertária bem-sucedida contra as organizações sociais repressoras”. 

Zizek não é, evidentemente, um democrata. Para ele, eleições “tendem a refletir a doxa predominante determinada pela ideologia hegemônica”. Mas não despreza a liberdade formal burguesa “que pôs em marcha o processo de demandas e práticas políticas ‘materiais’, do sindicalismo ao feminismo”. Reduzir isso a mera ilusão “seria cair na velha hipocrisia stalinista”, que zombava da ineficácia das liberdades burguesas, mas as proibia. 

Sim, Zizek é também um crítico do comunismo. Não aceita, por exemplo, o argumento de que Stalin teria traído a revolução. Se o comunismo não deu certo, é porque havia erros no próprio marxismo, e não apenas em sua aplicação. Embora conceba o comunismo como uma “ideia eterna”, rejeita voltar ao ponto em que a experiência foi interrompida. Para ele, é preciso zerar. A propósito, cita Samuel Beckett várias vezes: “Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor”. 

Saudado como uma novidade no campo teórico da esquerda, o autor sabe jogar com os elementos midiáticos que lhe projetam uma imagem de filósofo pop. Carismático e intenso, Zizek cita filmes de Hollywood com a mesma naturalidade com que usa o jargão marxista. Pode ser debatido numa arena política ou citado num jantar inteligente — e nesse caso será útil saber como se pronuncia seu sobrenome: é jijék. 

Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa é um livro que se lê no ritmo acelerado em que parece ter sido escrito. O estilo agitado é também caudaloso, mas o autor consegue evitar digressões, voltando sempre em tempo ao argumento principal: as mazelas do capitalismo. 

Aliás, trata-se de algo em comum com Marx: Zizek tem mais a falar sobre o sistema econômico em que vive do que aquele em que sonha viver. 

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Oscar Pilagallo é jornalista, autor de A Aventura do Dinheiro (Publifolha).

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