O burburinho no foyer do Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, só crescia à medida que se aproximava o momento de abertura do auditório, marcado para as 14 horas. Em cartaz, a segunda rodada de palestras do seminário Revoluções, uma política do sensível. No programa, filósofos de longínquos quadrantes gastariam o verbo para discorrer sobre os grandes desafios da contemporaneidade. O título do seminário não deixava margem a dúvidas. Estaria em curso um desfile de ideias, por assim dizer, de viés esquerdista. Por suposto, esperava-se a presença de grupos organizados de movimentos sociais e suas indefectíveis bandeiras, a proferir palavras de ordem. Ledo e rotundo engano. A impressão é que toda a jeneusse dorée de Sampa estava por lá, moçoilas e rapagões a trocar impressões filosóficas numa ágora improvisada no espaço e no tempo.
Havia uma explicação para tamanho frisson. O convidado do dia, responsável pelo grand finale do seminário, era ninguém menos que o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Com suas performances pontuadas por gestos estabanados e declarações polêmicas, Zizek conseguiu atrair os holofotes da mídia como um insigne porta-voz das causas perdidas, resgatando da mofa e do oblívio termos como comunismo e revolução.
Num canto do foyer, um estande improvisado punha à venda os livros do filósofo lançados no Brasil pela Boitempo Editorial. Pelo programa do dia, Zizek daria uma sessão de autógrafos após a palestra, rabiscando seus gatafunhos para a posteridade. Na atmosfera descontraída do teatro, podia-se respirar séculos de saber filosófico. Um rapagote discorria com entusiasmo sobre as ideias zizekianas, deixando bem claro para seu interlocutor que não era possível entender o mestre sem antes ter lido Kant, Hegel e, naturalmente, Lacan.
Já passava das 17 horas, quando um mediador de gestos calmos anunciou o nome de Slavoj Zizek, depois de falar os rapapés de praxe. Adentrando o palco pelo lado esquerdo – palavra! -, Zizek venceu a distância até a mesa num segundo, como se impulsionado por uma descarga elétrica. Aboletou-se em sua cadeira, tirou o relógio do pulso e o pôs sobre a mesa para controlar o tempo, conferiu algumas folhas amarfanhadas e deu início a sua peroração.
Em poucos minutos, Zizek levou a plateia à primeira gargalhada da tarde, uma entre muitas que viriam, graças a sua habilidade em entremear conceitos, piadas e exemplos extraídos de fatos do cotidiano, principalmente de filmes de Hollywood, muitos deles analisados pelo filósofo à luz da psicanálise lacaniana. Onze de setembro de 2001, crise financeira de 2008, Bill Gates, Obama, Hitler, Stalin, tudo funciona como referência para suas diatribes contra aquilo que chama de “farsa do liberalismo econômico”.
Por suas referências marxistas e menções a Stalin, Zizek tem sido acusado por seus críticos de defender certa postura totalitária. Mas ele tenta pôr os pingos nos ii. “Marx defendia a transformação das relações sociais. Não há mensagem totalitária nisso”. Aplausos, risadas, excitação da plateia, que se diverte como se estivesse num programa de auditório. Em sua palestra, Zizek faz questão de eliminar as camadas vetustas do léxico filosófico. Nada de episteme, doxa, gnose ou assemelhados. Com uma dicção peculiar que o faz acentuar a pronúncia dos esses como num crepitar, Zizek fala um inglês carregado porém fluente, pondo por terra uma certa máxima tupiniquim de que só é possível filosofar em alemão.
Por seus gestos irrequietos, o filósofo recebeu o epíteto de “Elvis da filosofia”, que ele aceitou. No palco, seus cacoetes incluem esfregões reiterados no nariz, que descem para o queixo e terminam com um safanão nos cabelos. Sua torrente verbal é também pontuada por puxões na camisa e extrema agitação das mãos, como se quisesse exortar uma multidão invisível. Zizek mostrou que é um ótimo frasista. “Não sou um catastrofista”, disse ele, numa alusão ao título de sua palestra – “Revolução: quando a situação é catastrófica, mas não é grave”. E, para quem o acusa de professar o memento mori do capitalismo, surpreendeu o público com mais uma colocação aparentemente contraditória. “O capitalismo não é só exploração, mas uma forma eficiente de organização”. Como um bom provocador, cutucou velhas bandeiras (“A sustentabilidade é um mito”). E expôs o receituário que explica o fracasso das revoluções passadas: “Se você tem um projeto, tem que incluir como esse projeto vai dar errado”. Por seu sabor atemporal, a frase poderia ser usada como um ensinamento típico da autoajuda. Por que não? Zizek atingiu o proscênio ao teorizar os fenômenos sociais e culturais por meio de uma análise que põe no mesmo liquificador a psicanálise de Lacan, a filosofia de Marx e Hegel. Numa de suas frases, proferida em alto e bom som, ele disse: “Sou um hegeliano”. A rigor, não é o primeiro filósofo a atingir o status de pensador discutido por um público mais amplo. Outros luminares já frequentaram as hostes midiáticas com leituras criativas da sociedade e, como que obliterados por uma espécie de lei implacável do esquecimento, retornaram aos muros da academia e aos índices remissivos. Enumeremos alguns: Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, nos anos 1980; Noam Chomsky e Jürgen Habermas, nos anos 1990; Pierre Bourdieux e Jean Baudrillard, nos anos 2000. Grosso modo.
A cortina já estava prestes a descer, quando Zizek disparou mais uma de suas frases de efeito: “O comunismo é o grande problema central hoje”. Seu tempo de palestra acabou. Aplausos frenéticos, como ao final de um show. Zizek surpreendeu-se com os primeiros papelotes que chegaram às mãos do mediador, contendo as perguntas enviadas pela plateia. O filósofo levou as mãos à cabeça, num teatral gesto de desespero. Mas respondeu todas, com o mesmo vigor com que iniciou sua palestra. Deixou o palco com o mesmo arranque com que entrou, e lá ao canto do palco foi cumprimentado por Emir Sader e outras personalidades que foram ouvi-lo. Zizek é pop.
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