sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Slavoj Žižek - Biografia comentada por Christian Ingo Lenz Dunker



A trajetória biográfica e intelectual de Žižek reúne uma série improvável de encontros e circunstâncias. Improvável a ponto de que quando tentamos compreender como o “fenômeno Žižek” se tornou possível somos arrastados para uma multiplicidade de contextos cuja reunião nos dá apenas um resultado: contradição. Os comentadores são unânimes em apontar que Žižek move-se tão rapidamente, produz de modo tão prolífero e toma posições de tal forma contrastantes, que nunca se consegue dirimir exatamente qual é seu projeto. Žižek não é um pensador sistemático que nos convida para a arqueologia e a reconstrução do movimento de seus conceitos, ao gosto da prática universitária corrente; mas também não corresponde ao intelectual edificante, ensaístico ou opinativo, interessado apenas em questões pontuais e intervenções localizadas. O modo mais eficaz de captar a lógica de seus textos é atentar para constância de seu estilo, que se desenvolve como intelectual engajado, um pensador que, sobretudo, toma posições. Em geral tais posições nos fazem rever o próprio mapa, ou as coordenadas simbólicas de que dispomos para localizar a questão tratada. Daí a importância da noção de ato, onipresente na obra de nosso autor.

Žižek nasceu em 1949, em Liubliana, capital da Eslovênia, a mais próspera das províncias da antiga República da Iugoslávia, e a primeira a se tornar independente em 1991. Em 1971 ele completa sua graduação em filosofia e ciências sociais e em 1975 apresenta sua tese sobre A relevância prática e teórica do estruturalismo francês. Filho de comunistas linha-dura, vê fracassar suas possibilidades de rápido ingresso no sistema burocrático-universitário. Reprovado no concurso para professor de filosofia amarga a dura e marcante experiência do desemprego. Žižek acompanha a formação do discurso nacionalista sérvio e particularmente a construção ideológica de Kosovo como objeto que completaria a unidade iugoslava tendo papel importante na organização do movimento que culmina na independência eslovena.

Žižek encontra-se, portanto, no interior da engenharia discursiva do nacionalismo balcânico às voltas com a produção de uma mitologia histórica. O marxismo edulcorado dos herdeiros de Tito (o socialismo de empreendimento ou o socialismo de mercado) legitimava-se teoricamente como socialismo apenas na tese da burocracia como classe universal. Porém, esta tese é mais hegeliana do que marxista. Isso nos dá uma primeira indicação do caminho teórico de Žižek, que vai de Marx a Hegel e não o contrário.

É nesta posição crítica - entre a impostura do socialismo iugoslavo e o crescente interesse do capital ocidental na emancipação da Eslovênia - que Žižek procura uma alternativa engajando-se na resistência cultural e política em torno da Escola Lacaniana da Eslovênia. Tal grupo se constitui em uma ampla frente de resistência à burocracia que inclui o teatro, as artes plásticas e a música. Figuras emblemática desta frente é a banda de punk rock chamada Laibach o movimento Nova Cultura Eslovena. Este último combina um retorno ao construtivismo russo com práticas de intervenção popular. O NSK chega a fundar um novo Estado, que emite passaportes, tem uma constituição e ministérios, mas ele é um Estado sem fronteiras, um Estado no tempo, não no espaço.  A combinação entre manifesto cultural e ato político desta frente adota uma curiosa estratégia: recusa-se a ser reconhecida como uma dissidência e ocupar assim o lugar de oposição. Tal lugar está prescrito e calculado pelo próprio sistema burocrático, de tal forma que toda dissidência torna-se inócua. Os exemplos vão dos expurgos periódicos à pseudo-oposição necessária para manter a burocracia como discurso hegemônico e produzir um efeito de liberdade de pensamento. Autores de esquerda como Adorno e Horkheimer, críticos das formas de vida inautênticas como Heidegger, teóricos da liberdade, como Sartre eram abertamente utilizados pelo sistema para justificar as práticas conservadoras e discursos retrógrados, formando assim em Žižek uma atitude de suspeita e ironia em relação à geografia espontânea e consagrada tanto das formas de saber (popular e erudita), quanto das modalidades convencionais de distribuição do potencial crítico dos discursos teóricos (de esquerda e direita).

Uma estratégia de resistência adotada contra este englobamento instrumental das concepções críticas pelo poder é a superidentificação (overdidentification). Trata-se de recusar a distância cínica entre a cultura “oficial” e a cultura “alternativa”, distância que produz uma separação artificial e enganosa, alienando o sujeito em uma falsa posição “externa” ao sistema. Pela superidentificação, ao contrário, trata-se de tomar as formas simbólicas dominantes pelo seu valor de face e a partir de sua repetição reflexiva produzir desestabilizações internas ao sistema. Renúncia da consciência pessoal, de gostos, juízos e convicções, aceitação voluntária e deliberada do papel da ideologia. Um exagero da falsa aparência cujo objetivo é mostrar seu caráter insensato. A superidentificação tenta reverter, através de intervenções pontuais, a oposição tradicional entre Estado e Sociedade Civil, tematizada por Gramsci e amplamente explorada pela Liga Comunista Eslovena. Observe-se como tal estratégia será empregada, com inúmeras variações, nos textos, entrevistas e declarações públicas de Žižek. São intervenções que, tomando ao pé da letra o enunciado ideológico, mostram, em ato, a falsidade de sua enunciação.

A teorização desta estratégia se alimentará da experiência em Paris, durante a década de 80, quando Žižek estuda psicanálise. Sua tese de doutorado, acerca das relações entre Hegel e Lacan, bem como a análise pessoal empreendida neste período, começam a sedimentar uma combinação entre crítica da cultura, prática política e estudos acadêmicos, baseados em autores clássicos, que raramente se encontra.  Temos então um retorno a Hegel como forma de crítica ao marxismo tradicional. Neste retorno impõe-se a influência de Lacan.

É neste contexto que em 1990 Žižek lança-se como candidato à presidência da Eslovênia em uma curiosa aliança com o partido Liberal Democrata. O partido liberal esloveno reunia, neste momento, uma diversidade de minorias organizadas: feministas, ecologistas, contracultura artística, radicais independentes. O contato com a diversidade político-cultural emergente não se reduz em Žižek a uma experiência teórica, no sentido tradicional de distanciamento e neutralidade, mas por uma fidelidade e engajamento em causas sociais, principalmente a recuperação da nossa capacidade de imaginação política e de apostar em experimentos de transformação e invenção de novas formas de vida. Ao afirmar inúmeras vezes que seu único interesse teórico reside no idealismo alemão, principalmente Shelling e Hegel, faz pensar que sua prática intelectual  recupera algo do engajamento romântico.

A dificuldade e as contradições para articular um projeto político neste contexto levam Žižek a participar de uma posição política que resulta em apoiar o “choque de capitalismo” em 1995. Diante da alternativa de bombardear a Sérvia - desacreditando completamente o papel da ONU - ou não bombardear a Sérvia - e condescender com o morticínio da purificação étnica – Žižek afirmará: “como alguém de esquerda, minha resposta ao dilema ‘bombardear ou não? é: as bombas não são suficientes, e elas vem muito tarde” (Žižek,1999:70)  Em outras palavras, o bombardeio não é um meio legítimo e eficaz, como queria a alternativa ocidental, e para Milosevic as bombas deveriam ter vindo antes. Dois enunciados verdadeiros mostrando a falsidade da enunciação, ou seja, do próprio lugar impossível de onde o dilema é colocado. Neste tipo de crítica já se mostra o tema lacaniano da lógica temporal (muito cedo e muito tarde). Estratégia semelhante será assumida diante do ataque de 11 de setembro a Nova York (Žižek,2002), bem como no caso da invasão do Iraque (Žižek,2003).

O engajamento de Žižek deve ser encarado de modo diferente da participação ritual em movimentos sociais. Ele estará sempre desconstruindo sua própria posição, produzindo aberturas e se relocalizando em novos debates. Como ele afirma em uma entrevista: “Não se esqueça que comigo as coisas sempre são o contrário do que parecem”. Esta capacidade para ajustar o discurso a seu auditório e em seguida surpreendê-lo foi sintetizada por Homer: “O sucesso de Žižek deve-se em grande parte à sua habilidade em contar piadas” (HOMER,2001). O chiste, o humor, a capacidade de reunir erudito e popular, trafegando pela vasta gama de problemas e autores das ciências humanas, do passado e do presente, em linguagem clara e provocativa, colocaram Žižek definitivamente em evidência no final da década de 90. Žižek conseguiu absorver aspectos da retórica do pós-modernismo sem endossar suas teses.

Boa parte desta recepção pode ser atribuída ao que se supunha estar presente no programa de Žižek. Um autor que parecia representar uma verdadeira e fiel reflexão acerca da desintegração dos Estados socialistas do leste europeu. Um novo alento para os teóricos da democracia radical e do pós-marxismo. Mas também um autor que parecia colocar finalmente o pensamento lacaniano para fora de sua clausura institucional, em contato com as grandes questões do pós-estruturalismo francês, com a filosofia da linguagem anglo-saxônica e com a tradição dialético-fenomenológica germânica. Um autor que trazia, a partir de sua forma original de tratar a cultura, uma franca interlocução com o universo popular do cinema, com a teoria feminista e com o ativismo multiculturalista. Sua vasta presença internet o torna um dos primeiros intelectuais nascido e criado na era digital (http://www.lacan.com/bibliographyzi.htm).
Três públicos que tornaram Žižek especialmente convincente no ambiente acadêmico norte-americano, no universo dos estudos lacanianos e na mídia política digital. Suas reflexões sobre a religião e sobre a fragmentação política do capitalismo pós-moderno, o tornavam palatável para um público amplo, cativado pelo humor de seus textos. Como os novos filmes para crianças, como Schreck, que são produzidos para agradar adultos e jogar premeditadamente com níveis de recepção, os textos de Žižek são produzidos para gerar a sensação permanente de que há mensagens “secretas” ou “compartimentalizadas” por toda parte.

Atualmente Žižek é professor na European Graduate School e no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubiana, preside a Sociedade de Psicanálise Teórica da Eslovênia e é diretor internacional da Universidade de Birkbeck, de Londres.

Sobre Zizek

(2004) Parker, I. – Slavoj  Žižek: a critical introduction. Pluto Press, London.
(2005) Dunker, C.I.L. & Prado, J.L.A. Prado - Žižek Crítico – Política e Psicanálise na Era do Multiculturalismo. Hacker, São Paulo.

Bibliografia de Zizek em Português

(1989) O Sublime Objeto da Ideologia. Jorge Zahar, Rio de Janeiro.
(1996) O Mais Sublime dos Histéricos: Hegel com Lacan. Jorge Zahar, Rio de Janeiro.
(1999) “Como Marx inventou o sintoma”, in Um Mapa da Ideologia. Contraponto, Rio de Janeiro.
(2004) Bem Vindo ao Deserto do Real. Boitempo, São Paulo.
(2005) As Portas da Revolução – escritos de Lenin de 1917. Boitempo, São Paulo.
(2006) A Marioneta e o Anão. Relógio D´Água, Lisboa.
(2006) Arriscar o Impossível: Conversas com Žižek. Martins Fontes, São Paulo.
(2008) Visão em Paralaxe. Boitempo. São Paulo.
(2008) Robespierre: Virtude e Terror. Zahar, Rio de Janeiro.
(2008) Mao: sobre a prática e a contradição. Zahar, Rio de Janeiro.
(2009) Lacrimae Rerum. Boitempo, São Paulo.
(2010) Como Ler Lacan. Zahar, Rio de Janeiro.
(2011) Em defesa das Causas Perdidas. Boitempo, São Paulo.

*Psicanalista, Professor Livre Docente Instituto de Psicologia da USP

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