segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Slavoj Zizek, em tempo - Do Blog Impostura



Ontem terminei de assistir a essa entrevista do filósofo esloveno Slavoj Zizek (na foto), para o programa Roda Viva. Ainda não li nenhum livro completo dele, mas fiquei positivamente impressionado com a sua fala. Alguém me disse, certa vez, que se tratava de um "marxista", mas vi que está longe de ser apenas isso. É um pensador dos mais inteligentes e mostra isso na entrevista. O vídeo é de fevereiro de 2009, portanto de quatro anos atrás. Entretanto, todos os temas abordados são relevantes e atuais e eu recomendo muito que vocês confiram, especialmente aqueles que não se contentam com o óbvio. Além disso, há ainda a presença da psicanalista Maria Rita Kehl e do filósofo Vladimir Safatle, que ajudaram a enriquecer o debate com perguntas importantes (para um personagem como o Zizek, não tinha mesmo como usar aqueles joprnalistas limitados, que geralmente formulam as perguntas) E ela vale também alguns comentários. Tecê-los-ei.

Primeiro, ele mostra ter uma visão extremamente avançada sobre a função da figura do Estado no que tange ao controle (e à própria existência) do mercado. Ele cita o caso do governo dos EUA, que processou a Microsoft por monopólio há alguns anos, para mostrar que, mais do que regular o mercado, o Estado garante-lhe a própria existência, já que, sem a intervenção estatal, o mercado já teria abolido a si próprio. Teria abolido a si próprio porque sem a intervenção de algum tipo de regramento, a tendência é sempre a de que os maiores engulam os menores. Essa parte do mercado que é vorazmente darwinista precisa, portanto, da intervenção do Estado, da lei e dos limites, para que seja garantida inclusive a própria existência da possibilidade de um mundo dos negócios mais protegido de si mesmo. Todo Eike Batista, todo Silvio Santos, todo Bispo Macedo, precisam de um texto de lei e de um estado que os limite, para que não engulam todo o resto, com a justificativa cínica de que estão fazendo o "jogo do mercado". E isso porque de fato o mercado vive nessa ambiguidade constante, entre liberar geral e, ao mesmo tempo, se auto-controlar minimamente. Nesse sentido, inclusive, valem mais uma vez elogios aos esforços dos presidentes de alguns países da América Latina, como Hugo Chavez, Rafael Correia e Evo Morales (além de Cuba, é claro), por continuarem a manter a dialética Estado-mercado, mesmo e a despeito de toda a pressão da mídia corporativa para que se faça o contrário.

Outro ponto bastante atual - e que tenho comentado já há algum tempo em meus textos - é o da questão do prazer como obrigação, no capitalismo contemporâneo. Em cima de uma pergunta da Maria Rita Kehl, Zizek, que é também um leitor e estudioso de Freud e Lacan, chama a atenção para mais essa ambiguidade atual: hoje, a maioria das pessoas sente uma imensa culpa quando não sente algum tipo de prazer com o que faz. Por isso, inclusive, as incontáveis queixas de depressão (que é chamada de "a doença do século XXI") que chegam aos consultórios dos psicanalistas, nos últimos tempos. O superego antigo, que agia por meio de repressões voltadas para a sublimação (ou seja, para uma economia pulsional bem regrada pela lei), hoje reprime através de uma curiosa pressão inversa, pelo gozo incessante. As pessoas não sabem mais verbalizar nada que não seja da ordem do prazer e da tal "felicidade", que é a cantilena de quase todos os discursos que hoje tenham motivações mercadológicas. Evidentemente que esse gozo incessante não vem. E além de não vir, há outro ponto (que acrescento aqui, para além da fala do Zizek): a estrutura mesma do desejo é uma estrutura ambígua. O desejo deseja não desejar, como sabe quem estuda a psicanálise a fundo. Isso significa que todo desejo é de morte. Ou seja, a realização do desejo é, também, o seu esfacelamento. A tal "realização" é algo da ordem do inviável, e isso é estrutural. E aí vem o ponto abordado por Zizek: quando há um superego à moda antiga ("Não pode!"), o gozo do desejo figura como transgressão (o que é mais próximo do obsessivo freudiano). No superego de hoje, não. O gozo é histérico, porque o investimento é na insatisfação constante. É assim que funciona o capitalismo atual. A promessa cínica do "satisfação garantida" e a troca incessante de produtos por outros "mais modernos", que supostamente suplantam os anteriores, aliada a um proposital descaso com qualquer tipo de educação que visasse redefinir esses valores. Por isso, o crédito do PT não é esquerda a isso e por isso a Marina Silva também não é esquerda a isso. O que esses dois discursos fazem é defender símbolos ideológicos que repetem a cantilena do prazer liberal. Zizek, ao contrário, vai propor que o papel da reflexão, hoje, é o de superar as exigências masoquistas do prazer a todo custo, para que as pessoas possam pensar sobre a alternativa de escolher não ter prazer, vez por outra. Isso significa não abdicar do prazer, como poderiam pensar os mais apressados. Significa, na verdade, perceber que a mediação com os símbolos é aberta e que isso permite que não entendamos, por exemplo, um filme sempre como apenas uma peça de gozo, mas também, e principalmente, como uma peça de fruição intelectual e/ou de alimento para a reflexão crítica. E coisas do tipo.

Esses limites da liberdade e do gozo estão presentes também na reflexão que Zizek faz sobre o tema da violência. O limite da liberdade é o sofrimento e a prova disso é a depressão e o excesso de culpa que verbalizam todos esses que procuram os analistas (ou então os livros de auto-ajuda) para se tratarem do seu sentimento de fracasso diante do fato de que não podem gozar tudo a toda hora. Aliás, não somos a sociedade do viagra à toa. Nesse sentido, Zizek mostra mais uma vez o seu compromisso com o deslocamento das ideias fixas, quando diz que não se pode ser ingênuo com a questão da violência. O que é a violência? Fundamentalmente afrontar algum tipo de ordem estabelecida. Alterar a ordem de alguma coisa. Nesse caso, o filósofo supera a sedução de se limitar à mera análise da violência física e parte para novos horizontes. Propõe que a violência é um fator fundamental da manutenção da liberdade, a despeito de toda a ambiguidade que isso carrega. E cita alguns exemplos esclarecedores. Por exemplo, Guantánamo, uma prisão de tortura, mantida pelo governo dos EUA dentro do território cubano, e sem o consentimento de Cuba. Os estadunidenses ladram aos quatro ventos que são os defensores da liberdade. E entretanto, são os que mais torturam. É preciso, portanto, ser intolerante com Guantánamo e com toda atitude que envolva a tortura. E Zizek diz mais uma verdade, ou seja, a de que não é propor que existe um sistema perfeito, onde a tolerância eterna vai vingar, mas sim pensar de forma madura o mundo atual, para que se mantenha um certo nível de conflito e confronto entre as diferenças, ao invés daquela outra cantilena que tanto ouvimos, sobre a tal "igualdade", que hoje é moda entre os defensores das tais "identidades". Zizek vai além e diz que Gandhi foi muito mais violento que Hitler, porque, se o alemão matou milhões de judeus porque tinha medo de que as coisas mudassem, a atitude de Gandhi foi diferente. Liderou greves, boicotes e interrupções de todo o funcionamento da economia da colônia, justamente porque queria mudar a lógica vigente. E a violência de Gandhi é exatamente essa, a da intolerância que é inerente ao exercício da tal "liberdade" (com todas as ressalvas que essa palavra exige).

Por último, vale comentar mais uma boa sacada do Zizek. Meu nobre amigo Gustavo Ribas, do facebook, deve se lembrar de uma discussão acirrada que tive com o Emir Sader, aqui mesmo na internet, há um ano e pouco atrás. O Emir Sader, que há alguns anos publicou um livro muito bom sobre a revolução cubana, agora decidiu cair de amores pelo PT. Virou defensor de carteirinha de tudo o que o PT faz, sem o critério e o afastamento reflexivo que exige a posição de quem se pretende um intelectual. Uma das divergências que tive com ele (o Gustavo deve se lembrar) foi a de que ele insiste numa tal ideia de "realidade concreta" que simplesmente vira as costas para o caráter ideológico de todo símbolo e de todo jogo simbólico. Essa defesa dele se deve justamente ao fato de que, péssimo leitor do Marx, Emir se agarra ao materialismo do alemão para defender o pragmatismo petista, através de expressões como "vida real" e "o importante é o fazer", expressões que qualquer iniciante minimamente introduzido no debate filosófico sabe serem completamente ultrapassadas. O resultado disso é óbvio: Emir entende "teoria" como algo inútil, já que abstração e não "realidade concreta". Não escrevo este texto para explicar a diferença entre essas duas coisas (até porque, já o fiz na época), mas apenas para comentar que o Zizek deu o mesmo puxão de orelhas no Emir nessa entrevista. O Emir foi convidado para ser um dos entrevistadores e entrou numa de questionar que tipo de proposta "concreta" o Zizek teria para o mundo de hoje. Zizek primeiro diz que é preciso escapar do "evolucionismo" com que se trabalha o materialismo dialético, desde sempre. Nisso, já dá o primeiro chega-pra-lá no Emir, porque o progressismo ingênuo de muitos marxistas tende a achar que a dialética é sempre "pra frente" (na verdade, eu nem gosto muito desse termo, "dialética", justamente por isso - prefiro usar termos como "deslocamento", ou "re-arranjo", que são mais amplos e protegidos desse otimismo). Diz ainda que há uma lacuna e uma inconstância que são inerentes à própria realidade (pra um marxista, ouvir isso deve ser terrível..). E aponta exatamente a importância de se reler o Hegel (assim como fiz eu na época da minha discussão com o Emir), que é a fonte do equívoco do Marx, que leu de forma apressada certos apontamentos seus. A dialética hegeliana não cai no positivismo em que caiu o Marx, porque o Hegel entendeu que a percepção caminha de uma forma espiral (ou "cíclica e retroativa", como chama o Zizek) e não linear. Marx se apaixonou pela tal "matéria" como verdade objetiva em si mesma e ignorou a ideologia, para propor um sistema que abolisse a própria dialética, através de uma utopia finalista que fosse de todos e de ninguém, o comunismo.  E então o Zizek termina dizendo ao Emir que não há nunca uma "resposta concreta" e que a dele seria: "Discordo radicalmente de que tudo esteja claro e que o trabalho intelectual seria hoje apenas o de explicar o que aí já está dado para as pessoas. Não! Hoje, mais do que nunca, precisamos de teoria" (por volta do minuto 49-50).

Assino embaixo da colocação do Zizek e aproveito pra destacar novamente que essa é uma das minhas motivações com o blog e com as intervenções críticas que faço em qualquer texto. Fazer teoria. Uma teoria-poema, na medida em que não vejo teoria apenas como um deslocamento da cristalização vigente, mas também, e principalmente, a proposta de uma outra posição intelectual, que supere a estagnação, não pra trocá-la por outra, mas sim pra trocá-la por algo que permita um ampliamento do olhar.

Enfim, vale muito a pena ver a entrevista do Zizek. É pra quem gosta de pensamento de alto nível. Pra quem sabe que há, sim, visões que se deve jogar fora. São todas essas que nada acrescentam, no sentido de nos fazer refletir de forma mais ampla o nosso mundo. O que é o papel de todos os pensadores comprometidos com a complexidade e com o rigor, como é o caso do Zizek.

Fonte: http://im-postura.blogspot.com.br/2013/02/slavoj-zizek-em-tempo.html

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Clique aqui para assistir a entrevista de Zizek no programa Roda Viva.

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